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CC BY 4.0 · Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2024; 39(03): 217712352024rbcp0944pt
DOI: 10.5935/2177-1235.2024RBCP0944-PT
Relato de Caso

Síndrome de Morel-Lavallée: Relato de caso tratado com sucesso em hospital secundário

Artikel in mehreren Sprachen: português | English
1   Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
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2   Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP, Brasil.
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2   Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP, Brasil.
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TIAGO HENRIQUE COSTA
2   Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP, Brasil.
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1   Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
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2   Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP, Brasil.
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▪ RESUMO

A lesão de Morel-Lavallée é descrita como uma lesão de partes moles secundária a um trauma com cisalhamento da pele e tecido celular subcutâneo contra a fáscia muscular sem perda de continuidade da pele. O diagnóstico é confirmado com auxílio de exames de imagem, sendo a ressonância magnética o exame mais específico. O tratamento é multimodal, dependendo de variadas técnicas cirúrgicas, antibióticos e medidas de ressuscitação e suporte. Homem de 36 anos, vítima de politrauma, evolui com lesão complexa no membro inferior e sepse, necessitando de abordagens cirúrgicas variadas e tratamento de suporte clínico. Avaliamos a importância das várias estratégias empregadas, momento oportuno e impacto no desfecho do paciente. Concluímos que o manejo da síndrome de Morel-Lavallée é complexo, mas pode ser realizado em hospital secundário.


INTRODUÇÃO

A lesão de Morel-Lavallée (LML) é uma condição rara e potencialmente grave, caracterizada por um acúmulo de fluido e tecido necrótico entre a pele e a fáscia muscular subjacente, causado por uma força de cisalhamento. Embora seja um evento incomum, é importante reconhecer os sinais e sintomas da lesão para diagnóstico e tratamento precoces.

A lesão é frequentemente associada a traumas de alta energia, como acidentes automobilísticos, quedas ou lesões esportivas, e afeta mais comumente áreas de protuberância óssea, como coxas, quadril e região lombar[1]. Por ser uma lesão incomum, há poucos dados estatísticos sobre sua prevalência, sendo estipulada uma razão aproximada de 2:1 em homens em relação a mulheres, provavelmente pelo maior número de casos de politraumas em homens[2], além de uma prevalência de 8,3% da lesão no contexto de trauma pélvico[3].

O diagnóstico preciso da LML é crucial para um tratamento adequado e prevenção de complicações. O diagnóstico é tipicamente realizado por meio de exame físico, história clínica e exames de imagem, como ultrassonografia (USG) e ressonância magnética (RM). A USG pode revelar uma imagem anecoica em meio a uma massa hiperecoica, enquanto a RM pode apresentar uma lesão homogênea hiperdensa, localizada anteriormente à camada muscular e posterior à hipoderme. No entanto, é importante ressaltar que os achados de imagem não são específicos, e devem ser considerados juntamente com a história clínica e exame físico para um diagnóstico correto[4].


OBJETIVO

Este artigo tem como objetivo relatar um caso de sucesso no tratamento da lesão de Morel-Lavallée em um hospital secundário, destacando a abordagem cirúrgica realizada e os resultados alcançados.


RELATO DE CASO

Homem de 36 anos com história de queda de moto em alta velocidade com lesão exclusiva de membro inferior direito apresentando apenas escoriações no joelho direito, procura atendimento no médico Hospital São Luiz Gonzaga, em São Paulo-SP após 3 dias do acidente, com o aparecimento de edema local, calafrios e sinais flogísticos. Paciente tabagista, sem outros antecedentes relevantes.

Realizada USG de membro inferior direito, evidenciando pele íntegra com tecido celular subcutâneo espessado e de aspecto heterogêneo por todo o membro inferior direito ([Figura 1]), além de uma tomografia computadorizada (TC) evidenciando as mesmas alterações ([Figura 2]).

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Figura 1. Ultrassonografia de membro inferior direito no 4º dia de internação evidenciando pele e tecido adiposo subcutâneo espessado, de aspecto heterogêneo e com finas lâminas líquidas de permeio.
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Figura 2. Tomografia computadorizada de membros inferiores no 4º dia de internação evidenciando edema difuso de pele e subcutâneo, sem perda de continuidade.

Logo no início da internação, houve piora do quadro, apresentando febre, náusea e aumento do edema e necrose tecidual, com necessidade de antibioticoterapia guiada por hemocultura (piperacilina/tazobactam + oxacilina) associada a escarectomia e desbridamento do tecido desvitalizado no centro cirúrgico após 4 dias de internação e novamente após 19 dias ([Figura 3]).

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Figura 3. Desbridamento da lesão no centro cirúrgico.

Na quarta semana, foi repetido o desbridamento do tecido desvitalizado em centro cirúrgico sob raquianestesia, associando desta vez um curativo a vácuo na lesão por 48 horas, sem sucesso na estabilização do quadro infeccioso local. Optou-se pelo escalonamento da antibioticoterapia para meropenem e polimixina B por 13 dias em conjunto com a lavagem e troca de curativo simples diária, associada a novo desbridamento do tecido desvitalizado e infeccionado semanalmente por duas semanas.

Na sexta semana, com controle do quadro infeccioso, foi realizada sutura com inversão das bordas, sutura elástica nos tecidos viáveis na coxa ([Figura 4]) e desbridamento nos demais tecidos lesionados ([Figuras 5] e [6]), com retirada da sutura elástica após 7 dias. Os níveis de hemoglobina foram mantidos acima de 10 g/dl durante todo o tratamento, com suporte transfusional de 9 concentrados de hemácias no total.

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Figura 4. Aspecto pós-operatório da sutura elástica.
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Figura 5. Lesão na perna direita.
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Figura 6. Lesão na coxa direita.

Com o sucesso na redução do leito cruento da lesão, foi programada troca de curativo a cada 3 dias com sulfadiazina de prata e novo desbridamento em centro cirúrgico semanal. Na nona semana, foi realizada enxertia de pele parcial em tornozelo e dorso do pé direito com área doadora de coxa esquerda, seguida de enxerto de pele parcial na coxa direita após mais duas semanas devido ao não fechamento total da lesão após a sutura elástica devido à dimensão da lesão ([Figura 7]).

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Figura 7. Enxerto de pele parcial na coxa direita.

Durante a internação, foi realizada fisioterapia motora em dias alternados visando a manutenção da funcionalidade do membro inferior. O paciente apresentou resolução total do quadro após 3 meses, com manutenção da internação por mais um mês para realização de fisioterapia por razões sociais, recebendo alta após 4 meses de internação, deambulando sem auxílio, com o enxerto integrado sem deiscência ([Figura 8]).

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Figura 8. Pós-operatório de 30 dias da enxertia de pele parcial na coxa direita e perna direita.

DISCUSSÃO

O tratamento da LML é altamente individualizado, levando em consideração a extensão da lesão, a presença de complicações associadas e a resposta do paciente ao tratamento inicial. As opções terapêuticas podem variar desde abordagens conservadoras até intervenções mais invasivas, dependendo da gravidade e da evolução da lesão.

Em lesões de menor gravidade, a drenagem do fluido acumulado é frequentemente realizada por meio de aspiração percutânea guiada por imagem ou uso de drenos fechados, visando a remoção do líquido e o estabelecimento de um ambiente propício à cicatrização. O desbridamento cirúrgico é uma opção terapêutica mais invasiva que pode ser indicada em casos de tecido necrótico extenso, presença de abscessos ou infecção persistente. A remoção completa do tecido desvitalizado e contaminado é essencial para promover a cicatrização adequada e evitar complicações infecciosas subsequentes[5], [6].

O caso relatado ilustra bem essa abordagem terapêutica. O paciente sofreu o trauma, apresentando apenas escoriações no joelho direito inicialmente, mas evolui com edema local, sinais flogísticos e febre após três dias. A ultrassonografia e a tomografia computadorizada confirmaram o diagnóstico de LML. O paciente evoluiu para sepse, necessitando de antibioticoterapia direcionada e múltiplos desbridamentos cirúrgicos para remover o tecido necrosado. Durante a internação, a complexidade do manejo incluiu a utilização de curativos a vácuo, troca de antibióticos e repetidos desbridamentos, demonstrando a importância de uma abordagem agressiva, individualizada e multimodal para casos complicados.

Após o desbridamento cirúrgico, o uso de curativos a vácuo desempenha um papel fundamental na estabilização da lesão e progressão para tecido de granulação. Esses curativos ajudam a reduzir a formação de seroma, promovem a aderência dos tecidos, minimizam o risco de infecção secundária e favorecem a cicatrização por segunda intenção[7].

Em situações mais graves, em que há envolvimento significativo do tecido muscular subjacente, a cirurgia pode ser necessária para a remoção do tecido necrótico e para a reparação das lesões musculares[8]. Nesses casos, a reconstrução tecidual pode ser realizada por meio de enxertos de pele, retalhos musculares ou técnicas de fechamento primário, dependendo da extensão da lesão e das características do paciente[9], [10]. Esses procedimentos visam restabelecer a integridade estrutural e funcional da região afetada, permitindo a recuperação adequada da função muscular.

O tratamento do nosso paciente incluiu várias dessas estratégias, culminando em enxertos de pele e sutura elástica para a recuperação funcional. A fisioterapia foi essencial para a reabilitação, permitindo que o paciente recuperasse a funcionalidade completa do membro afetado. O processo de recuperação foi prolongado, com alta hospitalar após quatro meses de internação, destacando a necessidade de um manejo multidisciplinar e prolongado para otimizar os resultados clínicos.


CONCLUSÃO

O caso apresentado ressalta a importância crucial do diagnóstico rápido e do manejo cirúrgico precoce na lesão de Morel-Lavallée. A prontidão na identificação desse tipo de lesão é fundamental para evitar complicações graves e favorecer uma recuperação mais eficaz.

A intervenção cirúrgica com o desbridamento dos tecidos desvitalizados em ambiente cirúrgico emerge como um elemento-chave para limitar o avanço da lesão, prevenir infecções secundárias e promover a cicatrização saudável, com posterior aplicação de enxertos de pele parciais conforme necessário.

Além disso, a abordagem multidisciplinar é um aspecto vital desse processo, evidenciado pela colaboração estreita com uma equipe de fisioterapia motora. A integração de estratégias de reabilitação desde as fases iniciais do tratamento é fundamental para otimizar a função motora e acelerar a recuperação do paciente.



Conflitos de interesse:

não há.

Instituição: Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP, Brasil.



*Autor correspondente:

Bruno Losi Zacharias
R. Dr. Cesário Mota Júnior, 112, Vila Buarque, São Paulo, SP, Brasil, CEP: 01221-010

Publikationsverlauf

Eingereicht: 16. März 2024

Angenommen: 27. Juli 2024

Artikel online veröffentlicht:
22. Mai 2025

© 2024. The Author(s). This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

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Bibliographical Record
BRUNO LOSI ZACHARIAS, GIACOMO MARTINS MENEGAZZO, PEDRO CHIARAMELLI, TIAGO HENRIQUE COSTA, VINÍCIUS ALVES DE ANDRADE, LUIZ GUILHERME NAGY DE MELO. Síndrome de Morel-Lavallée: Relato de caso tratado com sucesso em hospital secundário. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2024; 39: 217712352024rbcp0944pt.
DOI: 10.5935/2177-1235.2024RBCP0944-PT

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Figura 1. Ultrassonografia de membro inferior direito no 4º dia de internação evidenciando pele e tecido adiposo subcutâneo espessado, de aspecto heterogêneo e com finas lâminas líquidas de permeio.
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Figura 2. Tomografia computadorizada de membros inferiores no 4º dia de internação evidenciando edema difuso de pele e subcutâneo, sem perda de continuidade.
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Figura 3. Desbridamento da lesão no centro cirúrgico.
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Figura 4. Aspecto pós-operatório da sutura elástica.
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Figura 5. Lesão na perna direita.
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Figura 6. Lesão na coxa direita.
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Figura 7. Enxerto de pele parcial na coxa direita.
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Figura 8. Pós-operatório de 30 dias da enxertia de pele parcial na coxa direita e perna direita.
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Figure 1. Ultrasonography of the right lower limb on the 4th day of hospitalization showing thickened skin and subcutaneous adipose tissue, with a heterogeneous appearance and with thin layers of liquid between them.
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Figure 2. Computed tomography of the lower limbs on the 4th day of hospitalization showing diffuse skin and subcutaneous edema without loss of continuity.
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Figure 3. Debridement of the lesion in the operating room.
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Figure 4. Postoperative appearance of elastic suture.
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Figure 5. Injury to the right leg.
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Figure 6. Injury to the right thigh.
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Figure 7. Partial skin graft on the right thigh.
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Figure 8. 30 days postoperative of partial skin grafting on the right thigh and right leg.