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CC BY 4.0 · Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2024; 39(01): 217712352024rbcp0850pt
DOI: 10.5935/2177-1235.2024RBCP0850-PT
Relato de Caso

Fasciotomia em membro superior após síndrome compartimental por acidente ofídico com posterior enxertia e plástica em Z: relato de caso

Artikel in mehreren Sprachen: português | English
1   Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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1   Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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2   Faculdade de Medicina de Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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1   Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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2   Faculdade de Medicina de Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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1   Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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2   Faculdade de Medicina de Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil.
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▪ RESUMO

Este relato de caso aborda o curso clínico de um envenenamento botrópico ocorrido no município de Jarinu, SP, no ano de 2021. O paciente necessitou de fasciotomia em membro superior após síndrome compartimental aguda com enxertia dermoepidérmica em um segundo momento cirúrgico. No pós-operatório tardio, o paciente evoluiu com retração, necessitando de reabordagem cirúrgica com correção de retração de membro superior esquerdo. Discute-se a gravidade do acidente ofídico, efeitos do veneno nos tecidos, complicações, síndrome compartimental aguda, indicação e técnica da fasciotomia descompressiva com base na literatura.


INTRODUÇÃO

Os acidentes botrópicos são responsáveis pela maioria dos acidentes ofídicos no Brasil, representando aproximadamente 90,5% dos casos. Serpentes da família Viperidae, especificamente dos gêneros Bothrops e Bothrocophias, são encontradas em todo o Brasil, principalmente em áreas agrícolas, costeiras e periurbanas.

Em 2021, foram notificados 31.354 acidentes ofídicos no país, sendo 5.723 casos no estado do Pará, 3.118 casos no estado da Bahia, 3.030 casos no estado de Minas Gerais, 2.238 casos no estado do Maranhão, 2.112 casos no estado do Amazonas e 2.023 casos no estado de São Paulo, classificando-o como o 6º estado com maior incidência nesse período[1] [2] [3]. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o envenenamento por picada de cobra como uma doença tropical negligenciada que representa um problema significativo de saúde pública, com altas taxas de morbidade e mortalidade[4] [5] [6].

A doença tem baixa letalidade, estimada em 0,3%. Entretanto, as complicações decorrentes dos acidentes botrópicos são a maior preocupação nesses incidentes, pois podem causar sangramento, síndrome compartimental, necrose muscular e lesão renal aguda, resultando em sequelas anatômicas ou funcionais significativas. Nestes casos, o tratamento específico é fundamental, principalmente a administração precoce de soro antiveneno para neutralizar as toxinas injetadas[3] [7].


OBJETIVO

Nesse contexto, o objetivo deste relato é descrever o caso de um paciente submetido a fasciotomia em membro superior após síndrome compartimental aguda secundária a envenenamento botrópico, num momento em que o tempo de internação era restrito devido à pandemia de SARS-CoV-2. Além disso, explora a indicação técnica da fasciotomia descompressiva, bem como sua abordagem para enxerto dermoepidérmico em procedimento cirúrgico subsequente.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 52 anos, destro, branco, procedente de zona rural (fazenda), foi encaminhado de um centro médico de Jarinu, SP, Brasil, ao Pronto Atendimento do Hospital de Beneficência São Vicente de Paulo (HCSP), no dia 2 de abril de 2021, em Jundiaí, SP - Brasil. Chegou 4 horas após ser picado por cobra Jararaca (Bothrops) na região tenar da mão esquerda, procurando atendimento médico especializado.

Na avaliação inicial, observou-se pequena perfuração na mão esquerda, sem sangramento. O membro superior esquerdo do paciente apresentava-se edemaciado e endurecido até a região cubital, com sistema neurovascular íntegro. O paciente apresentava estado geral estável, sem sinais de cianose ou icterícia, respirando confortavelmente, com leve confusão mental aguda, mas com nível de consciência preservado. Não houve déficits neurológicos ou ptose. Sua frequência cardíaca era de 85bpm e sua pressão arterial era de 90/60mmHg. A avaliação neurológica foi desafiadora devido à intoxicação.

O manejo inicial foi realizado no pronto-socorro, que incluiu hidratação intravenosa, alívio da dor, corticoterapia, suporte clínico, além de monitorização hemodinâmica e neurológica. Os exames laboratoriais iniciais mostraram aumento progressivo de níveis de creatina fosfoquinase (2.782U/L), tempo e atividade de protrombina prolongados (INR: 1,78) e trombocitopenia grave (18.000/mm3).

Entretanto, não foi necessária transfusão sanguínea, pois os valores melhoraram após o tratamento inicial. Não houve evidência de acidose metabólica (pH 7,37), lesão renal aguda (Cr 0,88mg/dl) ou distúrbios eletrolíticos (sódio 137mEq/L; potássio 5,0mEq/L; cálcio 1,18mmol/L). O Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATox) foi consultado e recomendou a administração de soro antibotrópico, dose única de 120mL, com infusão programada para 7 horas após o evento inicial.

Durante a avaliação de acompanhamento, após 2 horas, o paciente apresentou dor intensa que não respondeu à analgesia com opioides. Foram observadas lesões bolhosas e limitação de movimentos, como extensão e flexão do cotovelo. Apesar de receber soro antiveneno, o edema continuou a se espalhar para a região axilar.

Devido ao agravamento do quadro clínico, acompanhado de parestesia e paresia, foi diagnosticada síndrome compartimental aguda. Consequentemente, foi indicada fasciotomia do membro superior esquerdo após 16 horas. O procedimento cirúrgico consistiu em incisão única na pele e tecido subcutâneo com bisturi frio, iniciando na região palmar da mão, continuando na superfície anterior do antebraço e terço médio do braço, seguindo as linhas naturais de tensão da pele. A hemostasia foi alcançada e a fáscia muscular tensa foi liberada com tesoura de Metzenbaum. Nenhuma evidência de necrose muscular foi observada durante a cirurgia, eliminando a necessidade de incisões adicionais de fasciotomia ([Figura 1]).

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Figura 1. Fasciotomia da região tenar, antebraço e braço distal para liberação de tensão compartimental, sem áreas de necrose muscular.

Durante o pós-operatório imediato na unidade de terapia intensiva, o paciente apresentou estabilidade clínica e melhora gradual da dor, edema e parestesia, mas continuou com extensão limitada dos movimentos dos braços e dedos. Após 12 dias (14 de abril de 2021), foi realizada enxertia dermoepidérmica na área cruenta ([Figura 2]).

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Figura 2. Enxerto dermoepidérmico após integração, sem coleções ou sinais de infecção.

O paciente evoluiu sem sinais de infecção ou coleção, com integração adequada do enxerto. Durante reavaliação ambulatorial pós-operatória tardia (5 meses após o procedimento cirúrgico), o paciente queixou-se de extensão limitada do cotovelo esquerdo. Optou-se por reavaliar o assunto devido à hipótese diagnóstica de contração do enxerto.

No dia 27 de outubro de 2021 foi realizada excisão parcial da área de enxerto de pele do braço e região cubital (áreas fibróticas), com confecção de 2 retalhos de zetaplastia. O paciente manteve-se clínica e hemodinamicamente estável, sem queixas, e recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial. Durante a consulta de seguimento, observou-se o retorno da funcionalidade do membro superior esquerdo, sem novas indicações cirúrgicas ([Figuras 3] e [4]).

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Figura 3. Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço estendido).
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Figura 4. Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço flexionado).

DISCUSSÃO

No Brasil, os acidentes ofídicos continuam sendo um problema de saúde pública e são considerados a segunda causa mais frequente de intoxicação humana, perdendo apenas para as intoxicações relacionadas a medicamentos[8]. O veneno é injetado no corpo através das presas após a picada de cobra. A toxina secretada consiste em misturas complexas de proteínas (90 a 95% do total), peptídeos, aminoácidos, lipídios, carboidratos, enzimas (como acetilcolinesterase, proteases, colagenases, fibrogenases, entre outras), compostos inorgânicos e cátions, que determinam um perfil bioquímico e toxicológico com ampla gama de manifestações clínicas[4] [9].

Esses compostos têm como alvo receptores celulares, proteínas de membrana e coagulação. A ação do veneno de Bothrops resulta principalmente em citotoxicidade, miotoxicidade e hemotoxicidade no corpo humano. Isto leva à hemólise, destruição de células musculares, miócitos e linfócitos, necrose tecidual, aumento da permeabilidade vascular e interferência no sistema de coagulação. As possíveis consequências desse processo incluem lesão renal aguda, falência de órgãos, hemorragia local ou sistêmica, hipotensão, rabdomiólise e síndrome compartimental aguda.

A investigação desta toxina levou não só ao desenvolvimento de tratamentos para envenenamento, mas também a avanços farmacêuticos, como a produção de captopril e outras terapias[4] [9].

As medidas de primeiros socorros após uma picada de cobra envolvem retirar o paciente do local e transferi-lo para um centro médico apropriado, imobilizando e descansando o membro afetado. A identificação da cobra só é aconselhada se puder ser feita em ambiente seguro, sem atrasar o atendimento médico, sendo recomendável tirar foto digital para identificação. Além disso, é aconselhável retirar joias do membro afetado devido ao risco aumentado de síndrome compartimental[10] [11] [12].

No ambiente intra-hospitalar, a abordagem envolve o manejo dos sinais vitais e atenção ao risco de sangramento e choque (hipovolemia por hemorragia secundária a coagulopatia, ação de toxinas ou edema da área afetada). A infusão inicial de solução cristaloide pode ser iniciada ou avançada para transfusão sanguínea com base em parâmetros laboratoriais (hemograma completo).

O tratamento específico consiste na administração precoce e direcionada de soro antibotrópico quando há suspeita do agente. Países tropicais com alta incidência de acidentes envolvendo animais peçonhentos, como a Austrália, utilizam kits combinados de detecção de veneno para esse fim, para identificar o animal mais provável. Entretanto, esse teste não está disponível no Brasil e métodos clínicos são utilizados para distinção[10] [11] [12].

Dentre os desfechos potenciais, a síndrome compartimental se destaca por sua rápida progressão e morbidade significativa, incluindo mionecrose, amputação de membros, neuropatia e até morte, embora a incidência relatada seja baixa (6,6%)[13]. A maioria dos casos ocorre nos membros superiores, correspondendo a 69,6%, conforme observado neste relato[14].

A fisiopatologia da síndrome compartimental envolve aumento da pressão dentro dos compartimentos musculares, que são circundados por fáscia. Essa pressão ultrapassa a pressão de perfusão tecidual e obstrui o retorno venoso no membro afetado, resultando em isquemia e dano celular.

Inicialmente, há dor desproporcional em relação à extensão da lesão, além de alteração na condução nervosa, levando a parestesia e fraqueza muscular quando a pressão do compartimento excede 30mmHg ou quando o gradiente de pressão diastólica dentro do compartimento cai abaixo de 30mmHg. Posteriormente, desenvolve-se isquemia, levando à necrose tecidual.

O monitoramento pode ser feito medindo diretamente a pressão intracompartimental ou avaliando parâmetros clínicos.

É crucial destacar que qualquer compartimento muscular tenso e doloroso após uma lesão pode indicar uma potencial síndrome compartimental. Reavaliações regulares, avaliação cirúrgica especializada e posterior liberação compartimental são necessárias nesses casos[15] [16].

A fasciotomia precoce, idealmente nas primeiras 4 horas do início dos sintomas clínicos, é o tratamento definitivo e reduz a necessidade de amputações. As indicações para o procedimento incluem forte suspeita clínica ou medição da pressão compartimental para confirmar a presença de síndrome compartimental aguda.

A cirurgia deve ser realizada em centro cirúrgico, mas nos casos em que pacientes instáveis não podem ser transportados, pode ser benéfico realizar o procedimento em unidade de terapia intensiva com sedação leve e anestesia local. O objetivo é dissecar cuidadosamente o membro afetado ao longo de planos específicos, liberando a fáscia muscular tensa sob visualização direta e, posteriormente, aliviando a pressão compartimental. Após o procedimento, é importante avaliar a integridade e a aparência dos músculos, tendo cuidado com a síndrome de reperfusão.

Após a resolução da síndrome compartimental, é necessário considerar opções de reconstrução da ferida operatória. Essas opções incluem fechamento primário precoce, aproximação gradual da ferida (a “Técnica Lace”), terapia com pressão negativa (TPN) e enxerto de pele de espessura parcial[16] [17] [18] [19]. De acordo com a literatura, até o momento não se chegou a um consenso sobre o melhor método de fechamento[19]. Consequentemente, a técnica escolhida varia de acordo com a preferência do cirurgião e o contexto em que o paciente está inserido[20].

Em nosso caso, o paciente não foi considerado adequado para fechamento primário precoce, pois estava no pós-operatório com hérnia muscular significativa e alto risco de recorrência da síndrome compartimental[18]. O uso da TPN e da técnica de aproximação gradual da ferida foi limitado pela necessidade para uma internação hospitalar prolongada[17] [20].

Esses procedimentos não foram viáveis devido ao contexto da pandemia de SARS-CoV-2, quando todos os recursos humanos e materiais estavam direcionados aos pacientes com COVID-19. Além disso, a TNP apresentou a limitação adicional de seu custo consideravelmente elevado, principalmente em hospitais carentes de recursos, como os integrados ao sistema público de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS).


CONCLUSÃO

Acidentes envolvendo animais peçonhentos, embora categorizados como doenças tropicais negligenciadas, permanecem altamente prevalentes no Brasil, resultando em baixas taxas de letalidade, mas em morbidade significativa. Uma complicação notável é a síndrome compartimental aguda, uma condição que avança rapidamente e que deve ser levada em conta em tais acidentes. A identificação e o tratamento precoces desta complicação, com ênfase em reavaliações regulares por cuidados médicos especializados, são cruciais para resultados favoráveis. Embora a literatura recomende um tempo máximo ideal de 4 horas, o procedimento foi eficaz na prevenção de maiores morbidades em nosso paciente, mesmo sendo realizado além do tempo recomendado.

Dada a falta de consenso sobre a melhor técnica, a experiência do cirurgião e o contexto do paciente determinam a abordagem mais adequada. Além disso, o acompanhamento pós-operatório é crucial para identificar e tratar possíveis complicações tardias, incluindo deiscência de sutura, necrose tecidual e contraturas cicatriciais.



Conflitos de interesse:

não há.

Instituição: Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí, SP, Brasil.



*Autor correspondente:

Alexandre Venâncio de Sousa
Rua São Vicente de Paulo, 223, Centro, Jundiaí, SP, Brasil, CEP: 13201-625

Publikationsverlauf

Eingereicht: 17. Juli 2023

Angenommen: 05. Dezember 2023

Artikel online veröffentlicht:
20. Mai 2025

© 2024. The Author(s). This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

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Bibliographical Record
FELIPE ANDRADE LOPES, MARIANA FERNANDES INÁCIO, LEONARDO FLUD IDEAL, TONY TOBIAS JUNIOR, GIOVANNA CAVALCANTI BANOV, ALEXANDRE VENÂNCIO DE SOUSA, ROBERTA LOPES BARIANI. Fasciotomia em membro superior após síndrome compartimental por acidente ofídico com posterior enxertia e plástica em Z: relato de caso. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2024; 39: 217712352024rbcp0850pt.
DOI: 10.5935/2177-1235.2024RBCP0850-PT

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Figura 1. Fasciotomia da região tenar, antebraço e braço distal para liberação de tensão compartimental, sem áreas de necrose muscular.
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Figura 2. Enxerto dermoepidérmico após integração, sem coleções ou sinais de infecção.
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Figura 3. Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço estendido).
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Figura 4. Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço flexionado).
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Figure 1. Fasciotomy of the thenar region, forearm, and distal arm to release compartmental tension, with no areas of muscle necrosis.
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Figure 2. Dermo-epidermal graft after integration, without collections or signs of infection.
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Figure 3. Late postoperative outcome following Z-plasty (extended arm).
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Figure 4. Late postoperative outcome following Z-plasty (flexed arm).