Palavra-Chave
artroplastia de quadril - metais - próteses de quadril - sarcoma
Introdução
A resposta celular às partículas de debris provenientes da degradação de diversos
tipos de materiais constitui a base biológica da osteólise peri-implantar que resulta
nas falhas das artroplastias totais de quadril (ATQs).[1] Os debris de desgaste dos componentes da prótese ativam o sistema monocítico/macrofágico,
promovendo a liberação de citocinas pró-inflamatórias, particularmente de fatores
de crescimento, de interleucinas e da proteína ligante do receptor ativador do fator
nuclear kappa β (RANKL, na sigla em inglês). A ação integrada destas moléculas de
sinalização celular, e em particular a ativação da osteoclastogênese pela interação
do RANKL com seu receptor ativador do fator nuclear kappa (RANK), iniciam o processo
de osteólise. A ativação do sistema RANK/RANKL resulta no aumento do recrutamento
e da atividade dos osteoclastos na interface com o implante, levando à reabsorção
óssea e ao afrouxamento e à soltura da prótese.[1]
A relação entre artroplastia de quadril e o desenvolvimento de sarcoma foi relatada
pela primeira vez em 1984.[2] Em uma revisão compreendendo um período de 30 anos (1974–2003), foi descrita a ocorrência
de 46 tumores malignos (41 sarcomas, 4 linfomas e 1 carcinoma epidermóide) relacionados
a ATQ.[3]
Relato de Caso
Homem, branco, 79 anos, com coxartrose idiopática bilateral submetido a ATQ primária
em 1992 (quadril direito) e 1993 (quadril esquerdo). Nas duas cirurgias, foi utilizado
componente acetabular não cimentado composto por liga de titânio revestido em plasma
poroso, fixado com parafusos acetabulares, núcleo acetabular de polietileno e haste
femoral não cimentada, composta por liga de titânio e superfície rugosa proximal,
recoberta por hidroxiapatia e cabeça intercambiável de cromo-cobalto. Em janeiro de
2001, o paciente apresentou soltura do componente acetabular do quadril esquerdo e
foi submetido a artroplastia de revisão com troca por prótese acetabular não cimentada.
Em setembro do mesmo ano, pelo mesmo diagnóstico, foi submetido a artroplastia de
revisão do quadril direito com manutenção da haste e troca do acetábulo por componente
cimentado. No intraoperatório dos dois procedimentos cirúrgicos, foram observados
desgaste importante do polietileno e focos extensos de metalose no tecido peri-implantar.
Em fevereiro de 2016, o paciente apresentou aumento de volume e dor intensa no quadril
direito e dificuldade para deambular. Ao exame físico, apresentava aumento do volume
da coxa sem flutuação, diminuição do arco de movimento e incapacidade de suportar
carga no membro, sem déficit neurológico. Dois meses após o início dos sintomas, foi
realizado novo procedimento de revisão no quadril direito, tendo como principal hipótese
diagnóstica infecção e como diagnóstico diferencial lesão pseudotumoral por debris
de metalose. No intraoperatório, foram evidenciadas soltura dos componentes acetabular
e femoral e extensas áreas de necrose tecidual e de metalose envolvendo toda a região
periarticular, sem evidência de secreção purulenta ([Fig. 1]). Foi realizado desbridamento da região do quadril e da coxa direita para retirada
dos implantes e coleta de material para cultura microbiológica e avaliação histopatológica.
Devido à extensão da necrose tecidual, não foi possível realizar nova reconstrução
articular. A avaliação histopatológica confirmou o diagnóstico de sarcoma pleomórfico
indiferenciado (SPI) de alto grau e metalose ([Fig. 2]). Os resultados das culturas microbiológicas intraoperatórias foram negativos. Em
julho de 2016, a radiografia do quadril direito evidenciou volumosa massa tumoral
em partes moles e extensa destruição do terço proximal do fêmur ([Fig. 3]). O paciente evoluiu com perda de peso e dispneia, sendo diagnosticado derrame pleural
e múltiplos nódulos metastáticos nos pulmões ([Fig. 4]), e faleceu em agosto de 2016, 24 anos após a realização da ATQ primária.
Fig. 1 Cirurgia de revisão do quadril direito em maio de 2016. (A) Radiografia panorâmica
da bacia em incidência anteroposterior evidenciando artroplastia total bilateral de
quadril. À direita, observa-se sinais de reabsorção proximal do fêmur e migração do
componente acetabular para dentro do ilíaco, que apresenta osteólise difusa. Nota-se
ainda importante aumento de volume de partes moles na região periprotética. A protése
não cimentada à esquerda apresenta afrouxamento do componente acetabular, que se encontra
medializado e verticalizado. O componente femoral está fixo. (B) Imagens do intraoperatório
mostrando metalose (áreas enegrecidas). (C) Áreas extensas de necrose do tecido adjacente
ao implante (setas) que foi desbridado para a retirada dos componentes acetabular
e femoral, não sendo possível realizar nova reconstrução articular.
Fig. 2 Aspecto histopatológico e perfil imuno-histoquímico da lesão associada ao implante
da articulação do quadril direito. (A) Sarcoma pleomórfico indiferenciado de alto
grau caracterizado por grau acentuado de anaplasia celular (setas). (B) Debris de
desgaste dos componentes da prótese identificado pelos pigmentos enegrecidos (setas)
em associação com as células tumorais (*). (C) Ausência de imunomarcação para desmina.
(D) Imunopositividade fraca para proteína S-100. (E) Expressão positiva difusa para
os anticorpos anti-CD 68 e (F) Anti-Vimentina. (A e B) Coloração hematoxilina e eosina
(H&E). Barra de escala: 50µm (A,B), 70µm (C-E) e 100µm (F).
Fig. 3 Radiografia do quadril direito realizada em julho de 2016 após procedimento de artroplastia
de revisão via acesso posterolateral com remoção dos componentes protéticos. Presença
de volumosa massa tumoral em partes moles em associação com extensa destruição do
terço proximal do fêmur.
Fig. 4 Tomografia computadorizada do tórax. Em julho de 2016, o paciente apresentava derrame
pleural e múltiplos nódulos metastáticos em ambos os pulmões e evoluiu para o óbito
em agosto de 2016.
Discussão
As incidências de sarcomas de partes moles na população em geral e em associação com
ATQ foram estimadas em entre 0,5 e 2,0 para cada 100.000 indivíduos por ano[4] e em 1,43 para cada 100.000 indivíduos por ano,[3] respectivamente. A associação a implantes mais frequente é com o SPI de alto grau
(fibrohistiocitoma maligno, segundo a nomenclatura antiga). Contudo, a associação
entre ATQ e outros sarcomas, como osteossarcomas, angiossarcoma e sarcoma sinovial
também já foi descrita.[5]
[6]
[7] Em um grande estudo populacional, foi demonstrado que os implantes de quadril metal-metal
não estão associados a um risco geral aumentado de câncer ou morte por causa oncológica
durante um período médio de acompanhamento de 7,4 anos.[8] Porém, neste estudo, não foram incluídos implantes do mesmo tipo utilizado no presente
relato (polietileno-metal).
Considerando a data do início das queixas do paciente compatíveis com doença neoplásica
(tumoração local, perda de peso e dispneia) com a confirmação histológica do diagnóstico
de SPI, o intervalo de tempo entre a ATQ primária e o desenvolvimento da neoplasia
foi de 24 anos. Este prazo é consideravelmente superior ao tempo médio de 6,7 anos[3] para o desenvolvimento de sarcomas de partes moles relacionados com implantes ortopédicos.
A carcinogênese induzida por partículas de desgaste e corrosão de metais foi investigada
in vitro através da exposição de fibroblastos a partículas de cobalto e cromo. As partículas
dos metais promoveram a geração de espécies reativas de oxigênio que resultaram em
aneuplodia, alterações cromossômicas, fragmentação mitocondrial e danos à rede de
microtúbulos do citoesqueleto.[9] No cenário clínico, apesar dos relatos sugerindo esta associação, o mecanismo através
do qual as partículas de metais induzem a fibrose e estimulam a mutagênese no tecido
periprotético ainda não foram estabelecidos. Em 2015, Sarhadi et al. verificaram anomalias
genéticas no tecido periprotético, incluindo alterações em genes relacionados com
o desenvolvimento de neoplasias malignas. Além disso, as anomalias genéticas mostraram
associação com o maior período de contato do tecido com o implante.[10]
No presente relato, apresentamos um caso de associação de SPI de alto grau e ATQ realizada
há 24 anos em um homem de 79 anos de idade submetido a ATQ bilateral. Considerando
que a ATQ é o procedimento padrão-ouro para o tratamento da osteoartrite do quadril,
realizado mundialmente em grande escala, a sua associação com o desenvolvimento de
uma lesão maligna é um evento extremamente raro. Contudo, cirurgiões ortopédicos e
radiologistas devem ser alertados e estar atentos para a possibilidade da associação
entre alterações dos tecidos peri-implantares causadas por partículas de debris provenientes
da degradação de implantes metálicos e o desenvolvimento de sarcomas em pacientes
com afrouxamento de ATQ. Neste sentido, o diagnóstico precoce e o tratamento cirúrgico
imediato podem evitar uma evolução insatisfatória, com o possível surgimento de metástases
e um desfecho desfavorável para o paciente.