Palavras-chave
síndrome do túnel do carpo - trombose - artérias - síndrome compressiva
Introdução
A síndrome do túnel do carpo é a neuropatia compressiva mais comum do membro superior,
afetando ∼ 4% da população geral.[1] O quadro clínico caracteriza-se por dor e, principalmente, parestesia no território
do nervo mediano, de início insidioso e, nos casos mais graves, observa-se perda de
força e atrofia da musculatura tenar.[2] O túnel do carpo é um canal osteofibroso, inelástico, tendo como teto o ligamento
carpal transverso, por onde passam 10 estruturas: os 4 flexores superficiais e os
4 flexores profundos dos dedos, o flexor longo do polegar e o nervo mediano.
A etiologia da compressão do nervo mediano no interior do canal carpiano está relacionada
à diminuição do continente ou ao aumento do conteúdo. Dentre os fatores congênitos
possivelmente associados ao desencadeamento dos sintomas, encontramos a persistência
da artéria mediana, descrita desde 1958 como um achado intraoperatório na síndrome
do túnel do carpo.[3]
A artéria mediana é um resquício embrionário que pode persistir em 1 a 16% da população.[4] É a artéria dominante na mão embrionária, mas Kleinert et al.[5] observaram participação significativa da artéria mediana no arco palmar superficial
em apenas 0,5% dos casos. É uma variação anatômica que aparece como um vaso satélite
do nervo mediano, seguindo seu trajeto na face anterior do antebraço, passando abaixo
do retináculo dos flexores e se estendendo para a região palmar. Existe grande variabilidade
na origem da artéria mediana, podendo surgir da artéria radial, da artéria ulnar ou
ainda da artéria interóssea anterior. Seu diâmetro varia de 0,8 a 2,5mm, com média
de 1,3mm, e está frequentemente associada ao nervo mediano bipartido.[6]
[7]
A relação entre a persistência da artéria mediana e a síndrome do túnel do carpo,
de evolução crônica, foi enfatizada por Lavey et al.[8] Barfred et al.[9] observaram dois grupos com comportamento distinto: um com os sintomas típicos, de
início insidioso e evolução crônica, e o outro com sintomas agudamente desencadeados,
com dor e parestesia intensas. No primeiro grupo, o achado cirúrgico foi o de uma
artéria mediana pérvia enquanto no segundo havia trombose da artéria. Outros autores
também relataram a trombose da artéria mediana como causa de um quadro agudo de síndrome
do túnel do carpo.[9] Nesses casos, a eletroneuromiografia geralmente não é capaz de confirmar o diagnóstico,
uma vez que o quadro é desencadeado por uma isquemia aguda do nervo e as alterações
detectáveis pelo exame, relacionadas à degeneração axonal, não estão presentes no
início. Assim, frente a suspeita clínica, a ultrassonografia com doppler é o exame
mais indicado para a confirmação diagnóstica.[10]
Como a instalação e a evolução da trombose ocorrem rapidamente, os sintomas surgem
de forma intensa e o tratamento, para os casos agudos, é o cirúrgico, com abertura
do canal e ressecção da artéria trombosada, o que geralmente leva a alívio imediato
dos sintomas.[3]
[6]
Apresentamos aqui um caso atípico de síndrome do túnel do carpo, de surgimento agudo,
desencadeado pela trombose da artéria mediana persistente.
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, 54 anos, branco, sinistro, empresário, portador de HIV,
em uso de esquema tríplice antirretroviral (tenofovir, dolutegravir e lamivudina).
Ele procurou o pronto-socorro referindo o indicador da mão esquerda frio, pálido,
com dor e dormência acentuadas havia 1 dia ([Figura 1]). Negava sintomas semelhantes antes deste episódio. A equipe da cirurgia vascular
foi chamada e, não observando patência do arco palmar pelo teste de Allen, solicitou
uma angiotomografia ([Figura 2]), que mostrou uma artéria mediana persistente e calibrosa, sendo predominante na
circulação da mão, com sinais de trombose ao nível do canal carpiano e embolização
para a artéria digital do 2° dedo. Foi introduzida terapia anticoagulante com enoxiparina
60 mg subcutânea, 2 vezes ao dia, associada a um vasodilatador arterial periférico
(alprostadil 40 μcg em infusão intravenosa, 2 vezes ao dia).
Fig. 1 Aspecto clínico pré-operatório mostrando má perfusão dos dedos indicador e médio.
Fig. 2 Angiotomografia mostrando artéria mediana persistente e dominante. Redução da perfusão
no 2° dedo.
Foi solicitada a avaliação da equipe de cirurgia da mão que, na positividade dos testes
de Phalen e Tinel no lado acometido, indicou tratamento cirúrgico, que foi realizado
no dia seguinte. No intraoperatório, foi observada a artéria mediana calibrosa sob
o ligamento transverso e, após a abertura do mesmo, a artéria encontrava-se pulsante,
endurecida no seu trajeto intracanal ([Figura 3A-B]). Não foi realizada a ressecção do segmento trombosado, pois a artéria mediana era
dominante na mão e, com a terapia medicamentosa instituída, esperava-se a recanalização
do vaso.
Fig. 3 A (esq) - artéria mediana comprimida sob o ligamento transverso. B (dir) - artéria mediana após liberação do túnel do carpo.
No primeiro dia pós-operatório o paciente já referia melhora importante da dor e da
parestesia, mas mantinha perfusão mais lenta e sensação de frio no 2° dedo. Após 7
dias, a perfusão já se encontrava normalizada, sem diferença na sensibilidade, na
coloração ou na temperatura do dedo acometido em relação aos demais ([Figura 4]).
Fig. 4 Perfusão do 2° dedo totalmente reestabelecida após 1 semana da cirurgia.
Discussão
Estudos anatômicos mostram que a artéria mediana pode persistir em até 16% da população,
sendo responsável pelo aumento do conteúdo no interior do canal carpiano e levando
cronicamente aos sintomas típicos da síndrome compressiva do nervo mediano.[4] No entanto, a trombose deste vaso está relacionada, em alguns relatos na literatura,
à síndrome do túnel do carpo na sua forma aguda. A causa da trombose está descrita,
geralmente, como associada ao traumatismo repetitivo sobre as paredes da artéria.[6]
A etiologia das vasculopatias associadas à infecção pelo HIV é provavelmente de origem
multifatorial. Para fins práticos, são classificadas em vasculites associadas ao HIV,
vasculites secundárias à terapia antirretroviral ou ambos. Diversos tipos de lesões
endovasculares têm sido relatadas, geralmente causadas pela vasculite, compondo um
grupo heterogêneo de transtornos caracterizados histologicamente pela presença de
infiltrado inflamatório na parede dos vasos sanguíneos.
No caso apresentado, não se observou trauma ou esforço repetitivo que pudesse justificar
a lesão endotelial causadora da trombose, ficando como hipótese principal a vasculopatia
decorrente da infecção pelo HIV ou ao próprio tratamento antirretroviral.
O exame de escolha para a confirmação da trombose da artéria mediana persistente é
o doppler;[10] no entanto, a angiotomografia pode mostrar mais detalhes e com mais precisão, como
a dominância da artéria mediana na perfusão da mão e a embolização para a artéria
digital. Uma vez confirmado o diagnóstico, o tratamento cirúrgico deve ser instituído,
uma vez que o quadro de dor intensa, decorrente da compressão aguda, não costuma reverter-se
espontaneamente.[3]
[6]
Apesar de ser dominante na fase embrionária, a artéria mediana, quando persiste, apresenta-se
como um resquício, sem repercussão significativa na vascularização da mão.[5] Não encontramos na literatura relato da artéria mediana dominante relacionada à
síndrome do túnel do carpo. O tratamento instituído neste caso diferiu dos trabalhos
anteriores na literatura, sendo realizada apenas a descompressão, sem, no entanto,
ressecar a artéria trombosada.