Palavras-chave
lesões dos tecidos moles - retalho perfurante - extremidade inferior
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 50 milhões de vítimas de
acidentes de trânsito vivem incapacitadas ou com sequelas.[1] No Brasil, dados do Sistema Único de Saúde (SUS) apontam um custo estimado de R$
2,9 bilhões em decorrência de acidentes de trânsito.[2]
Os pedestres, os ciclistas e os motociclistas constituem os grupos mais vulneráveis
a acidentes de trânsitos. A maioria das vítimas provêm de acidentes de moto, e são
jovens (25 a 35 anos) e do sexo masculino.[3] O politraumatismo decorrente do acidente de moto acarreta lesões mais graves na
cabeça e nas extremidades, sendo as principais causas de óbito as fraturas de membros
e da pelve, seguidas de trauma, laceração ou ruptura de órgãos abdominais, e traumatismos
crânioencefálicos.[4]
Acidentes de trânsito levam a traumas ortopédicos. Os avanços na medicina estimulam
o aprimoramento das técnicas cirúrgicas.[5] As lesões incluem ferimentos complexos em membros inferiores, o que é um desafio
quanto ao tipo de tratamento mais adequado.[6] Cirurgias reconstrutoras são complexas em função das características anatômicas
que levam à dificuldade no tratamento das lesões de partes moles.[7]
Os retalhos consistem em tecido mobilizado, mantido ligado ao seu pedículo vascular,
garantindo a irrigação adequada.[8] O uso de retalho em hélice para a cobertura de lesões de partes moles teve início
em 1991 como uma abordagem cirúrgica à perda substancial ocasionada por traumas. Sua
utilização na prática clínica foi aprimorada à medida que aumentou o conhecimento
a respeito do sistema vascular cutâneo. Os fatores envolvidos na escolha da técnica
cirúrgica mais adequada incluem a localização, a extensão da lesão, a exposição de
estruturas nobres, e a experiência do cirurgião com as técnicas de reconstrução.[9]
O uso do retalho em hélice para a cobertura de lesões é uma opção quando a área a
ser tratada tem tamanho pequeno a médio, e está localizada em uma região bem vascularizada
e circundada por tecidos saudáveis. Deve-se considerar nessa técnica a qualidade e
o volume do tecido mole transferido, a orientação da cicatriz, e o planejamento adequado
do retalho, para permitir o fechamento direto do local doador sem tensão na área.
Quando essas indicações são respeitadas, o retalho em hélice apresenta grande taxa
de sucesso, baixa morbidade, rápida recuperação, bons resultados estéticos, e custos
reduzidos.[10]
O objetivo do presente artigo foi avaliar o uso de retalho em hélice para cobertura
de lesões de partes moles em membro inferior, bem como identificar as principais causas
de traumas e complicações decorrentes da técnica cirúrgica.
Materiais e Métodos
Tratou-se de um estudo transversal retrospectivo, que foi feito mediante revisão de
prontuários, utilizando-se uma amostra de conveniência. Os dados foram obtidos a partir
do prontuário eletrônico de pacientes (PEP) atendidos e cadastrados no software Conecte/w (Wareline do Brasil, Goiânia, GO, Brasil) no pronto-socorro de ortopedia
do Hospital de Urgências, no período de julho de 2018 a junho de 2019, para tratamento
cirúrgico de lesão de partes moles em membros inferiores. A coleta dos dados foi realizada
no Setor de Arquivo Médico e Estatística (SAME).
Após selecionados os prontuários, foram avaliados os aspectos clínicos: 1) sexo; 2)
faixa etária; 3) tipo de lesão; 4) causa da lesão; 5) diagnóstico inicial; 6) local
acometido; 7) técnicas de incisão e identificação; 8) planejamento cirúrgico; 9) desenho
do retalho; 10) pós-operatório; 11) resultado do retalho em hélice; e 12) complicações.
Os dados foram coletados em formulário próprio, e, para fins de comparação, foram
utilizados os registros fotográficos do procedimento cirúrgico e do pós-cirúrgico,
e estimadas as frequências em relação às variáveis.
Resultados
No período de 1 ano, foram identificados 14 indivíduos com lesão de partes moles em
membros inferiores submetidos à técnica cirúrgica do retalho em hélice. Quanto ao
sexo, todos eram do sexo masculino (n = 14; 100%). A faixa etária média dos pacientes foi de 36,4 ± 8,48 anos, variando
de 26 a 48 anos, sendo a maior frequência de adultos jovens (25 a 29 anos; n = 4; 28,6%) e adultos entre 45 e 49 anos (n = 4; 28,6%). Quanto ao tipo de lesão, a maioria apresentou lesões de partes moles,
com exposição de estruturas nobres como tendões, e sem fratura exposta associada (n = 08; 57%), e o lado direito foi o mais acometido (n = 10; 71,4%).
O acidente de moto foi a principal causa da lesão entre os pacientes submetidos ao
procedimento cirúrgico com retalho em hélice (n = 13; 92,7%). Apenas 1 (7,1%) paciente sofreu lesão decorrente de acidente com automóvel.
Entre as áreas afetadas ([Tabela 1]), a face posterior do terço distal da perna direita foi a mais frequentemente acometida
(n = 5; 35,7%), seguida da face medial do terço distal do mesmo lado (n = 3; 21,5%).
Tabela 1
Caso
|
Idade (anos)
|
Retalho (cm)
|
Local acometido
|
Complicações
|
Processos adicionais
|
1
|
42
|
10 × 2
|
Face medial de terço distal de perna direita
|
Não houve
|
Enxerto de pele
|
2
|
37
|
7 × 7
|
Face medial de terço distal de perna esquerda
|
Sangramento
|
Emagrecimento do retalho
|
3
|
48
|
10 × 7
|
Face posterior distal de perna direita
|
Não houve
|
Enxerto de pele
|
4
|
46
|
8 × 3
|
Face posterior de terço distal de perna esquerda
|
Sangramento
|
Não houve
|
5
|
48
|
11 × 4
|
Face posterior distal de perna direita
|
Não houve
|
Enxerto de pele
|
6
|
48
|
7 × 5
|
Face medial de terço distal de perna direita
|
Não houve
|
Não houve
|
7
|
35
|
9 × 4
|
Face medial de terço distal de perna direita
|
Não houve
|
Não houve
|
8
|
35
|
5 × 3
|
Face medial de terço médio de perna direita
|
Não houve
|
Não houve
|
9
|
26
|
6 × 4
|
Face posterior distal de perna direita
|
Necrose parcial do retalho
|
Enxerto de pele
|
10
|
28
|
5 × 3
|
Face posterior distal de perna direita
|
Deiscência do retalho
|
Não houve
|
11
|
27
|
4 × 3
|
Face média de terço médio de perna direita
|
Não houve
|
Não houve
|
12
|
32
|
6 × 4
|
Face lateral de terço distal de perna esquerda
|
Necrose parcial do retalho
|
Não houve
|
13
|
27
|
6 × 4
|
Face lateral de terço distal de perna direita
|
Não houve
|
Enxerto de pele
|
14
|
31
|
8 × 3
|
Face medial de terço distal de perna esquerda
|
Não houve
|
Enxerto de pele
|
O desenho do retalho para cobertura de ferimento variou de 4 × 3 cm a 11 × 4 cm. As
dimensões do retalho variaram de 12 cm2 a 70 cm2, com tamanho médio de 29 cm2 e intervalo interquartil de 21 cm2 a 38 cm2. As complicações pós-cirúrgicas imediatas estavam presentes em 35,7% (n = 5) dos casos, e incluíram sangramento excessivo (n = 2; 14,3%), necroses parciais (n = 2; 14,3%), e deiscência do retalho (n = 1; 7,1%). Em 42,9% (n = 6) dos casos, foi necessário o enxerto de pele para a cobertura da área doadora
([Tabela 1]). Em relação ao resultado da técnica cirúrgica utilizada, treze pacientes apresentaram
ótima cobertura, e em apenas um houve perda do retalho.
Quanto ao planejamento cirúrgico utilizado, em todos os casos seguiu-se o procedimento
resumido a seguir. Os retalhos de perfurantes foram indicados para a cobertura de
feridas no terço distal da perna e na região perimaleolar do tornozelo. Os eixos arteriais
foram a artéria tibial posterior e a artéria tibial anterior. Nas feridas de localização
anteromedial e posterior, a opção foi pela artéria tibial posterior e lateral e pela
artéria tibial anterior. A escolha do retalho de perfurante obedeceu aos critérios
citados anteriormente. O paciente foi anestesiado no centro cirúrgico, foi feita a
exsanguinação do membro inferior, e, posteriormente, foi confeccionado o desenho do
retalho e marcado o ponto provável da localização do pedículo (artéria perfurante),
não sendo possível o uso de Doppler para a identificação do pedículo em função da indisponibilidade do equipamento no
hospital.
Para a técnica cirúrgica, o procedimento utilizado nos casos foi o resumido a seguir.
Após o desenho do retalho e a marcação do provável ponto da perfurante, foi feita
uma incisão de pele e subcutâneo até a fáscia. Elevou-se a fáscia de maneira subfacial
para a localização da artéria perfurante para a nutrição do retalho. Identificada
a artéria perfurante, foi realizada a confirmação de sua origem no eixo principal,
na artéria tibial posterior ou anterior, e da entrada no retalho por via fascial.
Então, foi feito um molde com uma compressa recortada no tamanho da ferida a ser reconstruída
até o pedículo. e então, o retalho foi dissecado e elevado junto à fáscia. Em todos
os procedimentos, assegurou-se que a fáscia fizesse parte do retalho, visto que ela
seria responsável pela perfusão do retalho. Depois, realizou-se a rotação do retalho
em 180° com aba maior cobrindo a ferida. Posteriormente, foi liberado o garrote, verificada
a perfusão do retalho, e realizada a sutura. A falha na área doadora foi coberta com
enxerto de pele quando necessário.
O pós-operatório descrito em prontuário consistia na troca diária de curativo não
compressivo e manutenção do membro elevado. Após a alta hospitalar, era feito o acompanhamento
ambulatorial. Em um período de duas a quatro semanas, já eram relatadas em prontuário
a boa manutenção do retalho e a cobertura da lesão. Nas [Figuras 1] e [2] são apresentados os registros fotográficos disponíveis em prontuário referente ao
procedimento cirúrgico com retalho em hélice realizado nos pacientes dos casos 1 e
5, respectivamente ([Tabela 1]).
Fig. 1 (A) Lesão de partes moles com exposição de tendões; (B) localização da artéria perfurante;
(C) dissecção do retalho; (D) rotação do retalho; (E) cobertura e enxerto; (F) resultado
pós-cirúrgico.
Fig. 2 (A) Lesão de partes moles com exposição de tendões; (B) localização da artéria perfurante;
(C) dissecção do retalho; (D) rotação do retalho; (E) resultado pós-cirúrgico.
Discussão
No estado de Goiás, foram registrados em média 91 acidentes de trânsito por dia no
primeiro semestre de 2019. Cerca de 60% das vítimas de acidentes de trânsito em Goiânia
neste período estavam em motos. Indivíduos do sexo masculino, entre 20 e 29 anos,
representam 42% do total de envolvidos em acidentes motociclísticos no país,[11] dados semelhantes aos observados no presente estudo. Sado et al.[12] avaliaram as características das vítimas de acidentes motociclísticos internadas
no hospital de urgências de 1o a 31 de dezembro de 2007, e observaram que a maioria era do sexo masculino (91%),
e as lesões e intervenções cirúrgicas mais frequentes estavam localizadas em membros
inferiores (53,3%).
Shen et al.,[13] ao avaliarem pacientes com lesões em partes moles dos membros inferiores atendidos
em um hospital na China, observaram que a maioria era do sexo masculino (80,6%; n = 29), e a idade média era de 39,7 anos. Mendieta et al.[14] avaliaram o uso de retalho em hélice na cobertura de lesões de tecidos moles de
membros inferiores em indivíduos atendidos em um hospital na Nicarágua; a idade média
dos acidentados foi de 32 anos, e o sexo masculino, o mais frequente (75% dos casos),
dados inferiores aos observados no presente estudo.
Lesões em membros inferiores têm baixa relação com casos fatais, mas exigem cirurgias
reparadoras, corretivas, e, em alguns casos, amputações, o que pode comprometer a
qualidade de vida dos pacientes.[5] Ao avaliarem o perfil dos indivíduos envolvidos em acidentes motociclísticos no
município de São Paulo, Debieux et al.[15] observaram que a maioria das lesões ocorreram em membros inferiores (53,9%) e em
maior frequência na faixa etária de 21 a 24 anos (45%). Rezende et al.,[9] ao avaliarem o perfil epidemiológico, o tratamento cirúrgico, e os resultados pós-operatórios
de pacientes com feridas complexas traumáticas de membros inferiores, observaram que
o acidente motociclístico foi responsável pela maioria das lesões (37,8%), e o terço
inferior da perna foi a região mais acometida pelo trauma (50,4%), seguido do terço
medial (32%).
A exposição de áreas nobres é comum quando ocorrem lesões em terço distal da perna,
exigindo que sejam recobertas com tecidos de boa qualidade e vascularização.[6] O uso de retalhos na cobertura de lesões decorrentes de traumas em partes moles
oferece como vantagens a semelhança em textura ao local do lesionado, boa aparência,
e capacidade de reparo parcial ou completo do local doador. O tamanho dos retalhos
depende da extensão da área a ser coberta.[13] Shen et al.[13] relataram em seu estudo retalhos variando de 10 × 5 cm a 34 × 18 cm, valores superiores
ao relatados no presente estudo. Sasidaran et al.[16] realizaram a reconstrução de defeitos de tecidos moles no membro inferior em 6 pacientes
de um hospital da Malásia nos quais as dimensões dos retalhos variaram de 3 × 3 cm
a 10 × 5 cm, valores mais próximos aos observados no presente estudo.
Bajantri et al.[17] sugerem o uso de retalhos em hélice para defeitos de até 50 cm2, mas D'Arpa et al.[18] afirmam que existem outros fatores que devem ser considerados ao se estabelecer
um tamanho máximo de retalho, visto que ele depende do tamanho corporal e das pernas
do paciente, da flacidez da pele, do volume do retalho, do fechamento adequado do
local doador, e de inúmeros outros fatores. Os autores concluem que retalhos em hélice
ainda são uma opção atraente para defeitos pequenos e médios, especialmente em nível
de perna e pé.
Ao avaliarem o resultado pós-cirúrgico, Nelson et al.[19] encontraram uma taxa total de perda de retalho de 5,5%, e uma taxa de perda parcial
de 11,6%, inferior à observada no presente estudo (14,3%). Sisti et al.[10] realizaram uma revisão da literatura entre os anos de 2005 e 2015, e estimaram a
taxa de complicações pós-cirúrgicas decorrentes da técnica de retalhos em hélice em
22,6%, e a maior frequência foi observada em membro inferior (31,8%), sendo a necrose
parcial do retalho e a congestão venosa as complicações mais frequentes. No presente
estudo, a taxa de complicações foi superior à média observada por Sisti et al.[10] mas com similaridade em relação às complicações mais frequentes.
Conclusão
Apesar do número limitado de prontuários de pacientes submetidos à técnica do retalho
em hélice para cobertura de lesões em membro inferior, o uso desse tipo de retalho
mostrou-se uma boa alternativa na maioria dos casos avaliados, com um bom resultado
cirúrgico, embora tenham sido observadas complicações em alguns casos.