Palavras-chave artroscopia - quadril - epífise deslocada - impacto femoroacetabular
Introdução
A epifisiólise capital femoral proximal (ECFP) é o transtorno mais comum do quadril
do adolescente, com uma incidência reportada de 10.8 em cada 100 mil habitantes. A
bilateralidade pode ocorrer em até 20% dos casos.[1 ] Fatores mecânicos como obesidade, retroversão femoral e relativa orientação vertical
da fise proximal do fêmur foram associados à etiologia.[2 ]
O colo femoral proximal desloca-se anterolateralmente, no nível da fise, sobre a cabeça
femoral, que permanece dentro do acetábulo. Essa deformidade leva a uma proeminência
no aspecto anterolateral da transição cefalocervical e a uma atitude em rotação externa
do fêmur proximal. Os pacientes subsequentemente podem desenvolver uma deformidade
em “cabo de pistola” próxima à cabeça do fêmur, também denominada “queilo” por alguns
autores.[3 ] Essa deformidade pode sofrer melhora por remodelamento, mas tal potencial é limitado
pela fixação in situ, que compromete o crescimento fisário. Além disso, a ECFP ocorre
numa faixa etária em que a capacidade de compensação de deformidades residuais por
remodelamento não é mais possível.
Até um terço dos pacientes com diagnóstico de ECFP apresentam dor persistente e/ou
impacto femoroacetabular (IFA) resultante da deformidade.[4 ] A proeminência residual (deformidade em “cabo de pistola”) e a relativa retroversão
da cabeça femoral foram definidas como causa de IFA tipo came, com piores resultados
clínicos e radiográficos em longo prazo. Um marco importante dessa deformidade consiste
na compensação reduzida ou ausente entre a cabeça femoral e o colo, que pode ser graduada
radiograficamente.
A proeminência residual na junção cabeça-colo se projeta no rebordo acetabular, gerando
estresse na junção condrolabral, resultando na separação do lábrum da cartilagem articular,
a qual é precursora à lesão condral irreversível. Essa lesão se inicia logo após o
deslizamento na ECFP, e costuma progredir com o tempo, levando à deterioração do quadril
em idades precoces.[5 ]
Há evidências na literatura que apoiam a osteocondroplastia artroscópica do colo femoral
no tratamento do IFA sintomático secundário a ECFP, com resultados animadores,[6 ]
[7 ] e é sugerida a abordagem precoce logo após o deslizamento, a fim de se prevenir
contra a progressão irreversível com piores resultados em longo prazo.[7 ]
Relato do Caso
Paciente do sexo feminino, de 15 anos de idade, sem comorbidades, no 2° ano pós-operatório
de fixação in situ bilateral da cabeça femoral por ECFP. Ela relatava dor e limitação
de movimentos do quadril esquerdo que se agravava com o apoio.
Durante a inspeção, foi observada atitude em rotação externa do membro inferior esquerdo,
mais evidente durante a deambulação. A paciente apresentou leve claudicação em membro
inferior esquerdo durante a marcha, a qual foi associada ao quadro de dor no quadril.
Não foi observado sinal de Trendelenburg.
Ao exame físico, a paciente apresentava limitação importante da rotação interna do
quadril esquerdo associada a quadro álgico durante a manobra. Foi evidenciado sinal
de Drennan à esquerda durante o exame. A paciente não apresentava alterações neurovasculares
nos membros inferiores, e tinha a força muscular preservada neles.
Nas radiografias em incidência anteroposterior (AP) da pelve e de perfil dos quadris
([Figura 1 ]), foi observada epifisiólise do quadril esquerdo, com significativa proeminência
anterolateral na transição cabeça-colo associada a redução da compensação. O sinal
de Trethowan estava presente. A fise de crescimento já se encontrava fechada.
Fig. 1 Radiografias em incidência anteroposterior da bacia (acima) e de perfil de Dunn dos
quadris (abaixo) evidenciando deformidade em região anterolateral do colo femoral
esquerdo, compatível com impacto tipo came.
A anamnese, o exame físico e as radiografias foram compatíveis com IFA tipo came,
secundário ao quadro de epifisiólise. Devido ao quadro álgico sintomático associado
a bloqueio articular, o tratamento preconizado foi a osteocondroplastia por via artroscópica.
Durante a artroscopia, foi evidenciada lesão condrolabral no rebordo anterolateral
do acetábulo ([Figura 2 ]), compatível com IFA tipo came ([Figura 3 ]), o qual foi confirmado durante a avaliação dinâmica no intraoperatório. Foi realizado
desbridamento do lábrum e osteocondroplastia do colo femoral e do rebordo acetabular,
com auxílio de fluoroscopia para controle da compensação cabeça-colo. Após o procedimento,
a avaliação dinâmica não evidenciava mais impacto. As radiografias no pós-operatório
demonstraram correção da proeminência responsável pelo impacto ([Figura 4 ])
Fig. 2 Lesão condrolabral observada durante a artroscopia.
Fig. 3 Deformidade tipo came na transição cabeça-colo.
Fig. 4 Radiografia em incidência anteroposterior (acima) e de perfil de Lauenstein (abaixo)
de bacia no pós-operatório evidenciando a correção da deformidade.
Foi iniciada reabilitação no primeiro dia de pós-operatório, com movimentação passiva
assistida e movimentação ativa, e deambulação com restrição de carga sobre o membro
operado por duas semanas.
No primeiro mês de pós-operatório, a paciente já apresentava melhora significativa
do quadro álgico e da marcha. Houve ganho importante da rotação interna do quadril
esquerdo e da amplitude global de movimentos. Ao terceiro mês, ela deambulava sem
queixas de dor. Ao sexto mês, retornou às atividades esportivas, encontrando-se totalmente
assintomática.
Discussão
A associação entre ECFP, IFA sintomático e lesão condrolabral é atualmente bem estabelecida.[8 ] Mesmo após a estabilização epifisária, casos específicos de ECFP podem ser adequados
para o tratamento artroscópico, que consiste numa técnica emergente com poucos seguimentos
em longo prazo.[9 ] Alguns estudos sugerem que a artroscopia pode ser aplicada mesmo em deformidades
severas de epifisiólise.[10 ]
A queilectomia é um procedimento bem indicado para pacientes na faixa etária dos 10
aos 14 anos com sensação de bloqueio articular secundário a patologias do quadril
na infância e adolescência, consistindo numa técnica relativamente simples e isenta
de maiores complicações, podendo retardar o processo degenerativo da articulação por
até 10 a 15 anos.[3 ]
A seleção de pacientes que podem se beneficiar de uma artroscopia depende da morfologia
femoral. A indicação precisa ainda não foi estabelecida, mas uma osteocondroplastia
pode ser benéfica em casos de ECFPs associadas a impacto tipo came. Se as áreas de
impacto da deformidade estiverem acessíveis a uma abordagem por via artroscópica,
o cirurgião deve considerá-la em vez de uma abordagem aberta. Porém, o efeito mecânico
dos diferentes graus de retroversão do colo femoral, a profundidade e a orientação
acetabulares, e o deslocamento epifisário devem ser considerados antes de se indicar
uma abordagem artroscópica.[11 ]