Introdução
O envelhecimento propicia modificações morfológicas, funcionais, bioquímicas e psicológicas
que levam à dificuldade de adaptação de um indivíduo ao ambiente no qual está inserido,
ocasionando maior vulnerabilidade e incidência de processos patológicos que interferem
diretamente na qualidade de vida e mortalidade de indivíduos idosos.[1] As fraturas proximais do fêmur (FPFs) representam, nesta população, eventos de grande
significância, tanto pela frequência quanto pela gravidade, uma vez que induzem à
perda da independência e estão associadas à redução da expectativa de vida.[1]
Sabe-se que o trauma que resulta em FPFs em idosos é na maioria das vezes de baixa
energia e está relacionado também a características desta população, como osteoporose,
desnutrição, diminuição da acuidade visual, prejuízo nas funções cognitivas e sarcopenia.[2] Quando presente em idosos, FPFs são correlacionadas a mortalidade de cerca de 30%
desses pacientes no primeiro ano após a lesão, sendo essa a principal causa de morte
por trauma em pessoas com mais de 75 anos de idade.[3] Alguns fatores apresentam clara correlação com o aumento da mortalidade em pacientes
com FPFs, tais como idade, declínio cognitivo, tempo despendido entre a ocorrência
do evento desencadeante e a abordagem cirúrgica, capacidade de mobilidade anterior
à fratura e comorbidades prévias.[4]
[5] A identificação precoce de pacientes com maior predisposição tanto à ocorrência
do evento traumático quanto às suas complicações pode auxiliar no declive das incidências
de mortalidade neste cenário.[6]
Dados referentes à população dos Estados Unidos da América deram a dimensão para a
problemática dessas fraturas, já que na década de 1990 a média anual de ocorrências
destas foi de 250.000 casos, esperando-se um aumento de 2 a 3 vezes da incidência
deste agravo até o ano de 2040.[7] Acredita-se que este incremento exponencial tenha íntima relação com o aumento da
expectativa de vida, uma vez que os fatores de risco associados tornam-se mais prevalentes
ao decorrer do envelhecimento do indivíduo.[8] No Brasil, Loures et al[9] encontrou custo médio total de R$ 1.933,79 para os pacientes submetidos a tratamento
cirúrgico para correção de FPFs na rede pública, tendo como base os anos de 2011 e
2012. No biênio 2007/2008, também no Brasil, o número de fraturas intertrocanterianas
do fêmur foi de 34.284, sendo o gasto público total no ano de 2008 para custeio do
tratamento dessas fraturas de aproximadamente R$ 30,8 milhões.[10]
O presente estudo tem como objetivo avaliar os fatores relacionados ao óbito dos pacientes
com FPFs e idade igual ou superior a 70 anos, sendo estes tratados cirurgicamente
e acompanhados por 6 meses.
Material e Métodos
Trata-se de um estudo observacional do tipo coorte retrospectiva. Foram analisados
os prontuários de 141 pacientes com FPFs submetidos a tratamento cirúrgico no período
de janeiro de 2009 a dezembro de 2015 pelo mesmo cirurgião sênior. Considerou-se como
FPFs as fraturas transtrocanterianas/intertrocanterianas (FITs) com ou sem traço subtrocantérico
e fraturas do colo femoral (FCFs). Para o tratamento de FITs utilizou-se haste intramedular
(HIM) ou dynamic hip screw (DHS), enquanto que para o tratamento de FCFs utilizou-se artroplastia de quadril
(AQ) ou parafusos de compressão em pirâmide invertida (PCPs), não sendo valorizado
para fins estatísticos o tipo de método e implante selecionado para o tratamento de
cada caso.
Para o levantamento amostral, o critério de inclusão foi a existência de prontuário
médico de pacientes com FPFs submetidos a tratamento cirúrgico em hospital de rede
particular pertencente à cidade de Juiz de Fora e em condições de uniformidade pelo
mesmo cirurgião-pesquisador, com destaque para a premissa de abordagem cirúrgica nas
primeiras 48 horas após o trauma, conforme preconizado na literatura.[11] Interpretam-se condições de uniformidade como conjunturas semelhantes no que diz
respeito à estrutura, classificação, conduta, técnica, material e suporte. Os critérios
de exclusão foram: fraturas patológicas por neoplasia, fratura não classificada como
FITs ou FCFs, pacientes com idade inferior a 70 anos e documentos hospitalares que
não contivessem informações acerca das variáveis estudadas. Prontuários de pacientes
que não apresentaram seguimento mínimo por 6 meses também foram excluídos.
O desfecho primário analisado foi óbito nos primeiros 6 meses pós-operatórios. Como
desfechos secundários foram avaliados gênero, idade, total de dias de internação hospitalar,
número de comorbidades prévias, topografia da lesão (fratura) e necessidade de internação
em centro de tratamento intensivo (CTI). No que diz respeito à variável comorbidades, fez-se opção por uma avaliação quantitativa em detrimento da avaliação qualitativa.
A variável internação em CTI se deu unicamente por indicação da equipe de anestesiologia, não se entrando no mérito
da justificativa utilizada para tanto.
O comitê de ética e pesquisa envolvendo seres humanos (CEP) da nossa instituição aprovou
a elaboração deste estudo, sendo 69173717.6.0000.5133 o número corresponde ao Certificado
de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) na plataforma Brasil e o título original
Fatores preditivos de morte após cirurgia para fixação de fratura de fêmur proximal.
Análise estatística
A análise estatística foi desenvolvida em três etapas: univariada, bivariada e multivariada.
Na análise univariada foi realizada a estatística descritiva para caracterização da
amostra através da média, do desvio-padrão, da mediana, da amplitude interquartil
e das frequências absolutas e relativas. Na análise bivariada, utilizou-se o teste
do Qui-Quadrado (χ2) ou o teste exato de Fisher, quando apropriado, para testar a associação entre cada
uma das variáveis independentes (fatores de risco) com a variável dependente (desfecho:
óbito), sendo calculado o risco de ocorrência de óbito sob a forma de razão de chances
(RC) com intervalo de confiança de 95% (IC 95%). Na análise multivariada, utilizou-se
a regressão logística binária. Na construção do modelo, utilizou-se o método enter
com entrada em blocos. A avaliação do ajuste do modelo logístico foi realizada por
meio do likelihood value (-2LL), pseudo R2 de Nagelkerke e teste de Hosmer e Lemeshow. A significância estatística de cada coeficiente
foi analisada com base no teste Wald. Para avaliar a capacidade de previsão do modelo,
utilizou-se a matriz de classificação, usando o valor de 0,3 como ponto de corte.
Os dados foram analisados através do software estatístico SPSS versão 20.0 (IBM Corp.,
Armonk, NY, EUA), sendo adotado o valor de p < 0,05 para a significância estatística.
Resultados
A [Tabela 1] apresenta as características gerais dos pacientes. A amostra apresentou idade média
84,4 anos (±6,8 anos), com idade variando entre 70 e 100 anos, sendo a maioria dos
pacientes do gênero feminino (70,2%) e com ao menos alguma comorbidade associada (81,4%).
Em relação à topografia da lesão, a maioria dos pacientes apresentou FITs (62,9%),
sendo a ocorrência de óbito na amostra total de 34,7% ao final do período de seguimento
de 6 meses.
Tabela 1
Variáveis
|
n
|
%
|
N° de pacientes
|
124
|
100,0
|
Gênero (Mulheres)
|
87
|
70,2
|
Faixa etária (> 85 anos)
|
56
|
45,2
|
Internação hospitalar (> 7 dias)
|
54
|
43,5
|
N° de comorbidades
|
0
|
23
|
18,5
|
1
|
40
|
32,3
|
2
|
35
|
28,2
|
3
|
20
|
16,1
|
4
|
6
|
4,8
|
Topografia
|
FIT
|
78
|
62,9
|
FCF
|
46
|
37,1
|
Internação em CTI (sim)
|
51
|
41,1
|
Desfecho (óbito)
|
43
|
34,7
|
A [Tabela 2] mostra a associação das variáveis categóricas e o desfecho (óbito) com a utilização
da RC como medida de risco. Observou-se que os pacientes com mais de 85 anos de idade
apresentam risco 2 vezes maior de óbito quando comparado aos pacientes com menos de
85 anos. O risco de óbito também é 2,5 vezes maior em pacientes que ficam mais de
7 dias internados. Em pacientes com algum tipo de comorbidade, quando comparados aos
pacientes que não apresentam nenhum tipo de comorbidade, o risco de óbito foi quatro
vezes maior. Além disso, os pacientes que foram internados no CTI apresentaram risco
quatro vezes maior de óbito do que os que não foram. O risco de óbito foi similar
entre homens e mulheres e independente da topografia da lesão (p > 0,05). A análise dos dados mostrou ainda que os pacientes com FCFs que foram a
óbito eram mais velhos, quando comparados aos demais pacientes (p = 0,027) ([Fig. 1]).
Fig. 1 Comparação de pacientes com fratura intertrocanteriana (FIT) ou fratura do colo femoral
(FCF) e seu desfecho em relação à idade *diferença estatisticamente significante,
p = 0,027.
Tabela 2
Variável/categoria
|
Casos de Óbito
|
Valor-p
|
RC
|
IC 95%
|
n
|
%
|
Gênero
|
Masculino
|
14
|
37,80
|
–
|
–
|
–
|
Feminino
|
29
|
33,30
|
0,630
|
0,82
|
0,37–1,83
|
Faixa etária
|
≤ 85 anos
|
18
|
26,50
|
–
|
–
|
–
|
> 85 anos
|
25
|
44,60
|
0,030[*]
|
2,24
|
1,705–4,76
|
Internação hospitalar
|
≤ 7 dias
|
18
|
25,70
|
–
|
–
|
–
|
> 7 dias
|
25
|
46,30
|
0,020[*]
|
2,49
|
1,17–5,31
|
Comorbidades
|
Não
|
3
|
13,00
|
–
|
–
|
–
|
Sim
|
40
|
39,60
|
0,020[*]
|
4,37
|
1,22–15,68
|
Internação em CTI
|
Não
|
16
|
21,90
|
–
|
–
|
–
|
Sim
|
27
|
52,90
|
< 0,001[*]
|
4,01
|
1,84–8,75
|
Topografia
|
FIT
|
24
|
30,80
|
–
|
–
|
–
|
FCF
|
19
|
41,30
|
0,230
|
1,58
|
0,74–3,38
|
A [Tabela 3] resume os coeficientes da regressão logística e sua significância no modelo. O modelo
mostrou-se válido para a classificação do status de mortalidade. Cerca de 20% da variabilidade
no status de mortalidade pode ser explicado pelo modelo. O modelo apresentou acurácia
de 70,2% na classificação dos óbitos, sendo que a sensibilidade (acerto dos óbitos)
foi de 81,4% e a especificidade (acerto dos não óbitos) foi de 64,2%. Observou-se
que uma probabilidade maior de óbito ocorre nos pacientes mais velhos, com tempo de
internação hospitalar (IH) superior a 7 dias, internação em CTI e que apresentavam
FCFs. Importante destacar que internação hospitalar maior que 7 dias e a presença
de FCFs não apresentaram significância estatística, mas foram mantidas no modelo em
razão da plausibilidade biológica e por melhorarem o ajuste final do modelo. O poder
discriminatório do modelo pode ser considerado aceitável. Foi observada uma área sobre
a curva de 0,75 (IC 95% = 0,63–0,82; p = 0,19) ([Fig. 2]).
Fig. 2 Curva característica de operação do receptor (ROC) da capacidade diagnóstica do modelo
logístico em discriminar o desfecho de óbito em pacientes de idade igual ou superior
a 70 anos submetidos a cirurgia para tratamento de fratura proximal do fêmur.
Tabela 3
Variável
|
Estimativa do parâmetro
|
Erro-padrão
|
Valor-p
|
Razão de chances (IC 95%)
|
Idade
|
0,068
|
0,033
|
0,039
|
1,07 (1,00–1,14)
|
IH > 7 dias
|
0,631
|
0,427
|
0,140
|
1,88 (0,81–4,34)
|
FCF
|
0,502
|
0,426
|
0,239
|
1,65 (0,72–3,81)
|
Internação CTI
|
1,106
|
0,426
|
0,009
|
3,02 (1,31–6,96)
|
Intercepto
|
-7,421
|
2,856
|
0,009
|
0,001
|
Discussão
O seguimento da amostra por 6 meses foi proposto com o intuito de estabelecer comparação
entre a taxa de mortalidade da mesma com amostras de seguimento similar e amostras
com seguimento de um ano. Encontramos resultados satisfatórios quando comparamos nossos
achados aos de Forster e Calthorpe,[12] em que obtivemos taxa de mortalidade de 34,7% transcorridos 6 meses de pós-operatório,
em detrimento de 50% após 6 meses e 56% após 1 ano de seguimento do referido autor.
Cabe aqui a ressalva de que os supraditos autores têm seu trabalho embasado em população
com idade superior a 100 anos (média de 101 anos) e tempo de internação hospitalar
médio de 14 dias, dados esses com valor superior aos dados utilizados para avaliação
estatística do nosso estudo. Por esta razão, julgamos que as características da amostra
de Forster e Calthorpe[12] podem justificar a manifestação de taxas de mortalidade mais elevadas em seu estudo,
uma vez que, assim como encontrado em nossa investigação, a idade avançada e um maior
número de dias de internação hospitalar são fatores que incrementam a taxa de mortalidade.[13]
[14]
[15]
[16]
[17]
[18]
[19] Em contrapartida, Garcia et al[20] apresentou taxa de mortalidade inferior ao do presente estudo no que se refere ao
seguimento de pacientes por 6 meses e 1 ano (14% e 30%, respectivamente), assim como
Guerra et al,[13] com taxa de mortalidade após 1 ano de 23,6%. Wood et al[21] e Parker e Pryor[22] obtiveram taxa de mortalidade de aproximadamente 14% em pacientes com seguimento
de 1 ano. Desta maneira, ficam evidentes as divergências na literatura no que se refere
à taxa de mortalidade na população idosa com FPFs.
Observou-se que a taxa de mortalidade pós-operatória encontrada foi inferior à taxa
de mortalidade geral de indivíduos com idade superior a 60 anos no Brasil (34,7% contra
58,6%).[23]
[24] Assunto que permanece controverso na literatura, não encontramos taxa de mortalidade
diferente no que diz respeito ao gênero do paciente, corroborando os achados de van
Laarhoven et al[25] e Antes et al.[26]
Em relação às comorbidades, optamos por uma avaliação quantitativa e não qualitativa,
uma vez que entendemos que, de maneira geral, o paciente que apresenta comorbidade
mais grave também apresenta um número maior de comorbidades. Além disso, assumimos
que a presença de comorbidades consideradas graves muitas vezes se fazem como consequência
de comorbidades prévias de menor gravidade. Tais inferências encontram embasamento
em estudo de Garcia et al,[20] que ao dividir sua amostra de acordo com o número de comorbidades que apresentava
cada paciente, encontrou queda abrupta do número de pacientes com mais de quatro comorbidades,
achado semelhante ao da [Tabela 1]. Somando-se a isso, em revisão de literatura existem estudos que demonstram que
quanto maior o número de comorbidades associadas, pior é o desfecho em relação a óbito,
não levando em consideração a qualificação quanto à gravidade da doença.[27]
[28] Apesar de não avaliarmos a gravidade da patologia e não encontrarmos diferença estaticamente
significativa em relação ao número absoluto de patologias (nossos resultados apenas
permitem afirmações em relação a presença ou ausência de comorbidade), acreditamos
que tanto a gravidade das doenças quanto o número de associações dessas interferem
em proporções distintas e de difícil dissociação quanto ao óbito de um paciente, sendo
que a avaliação unicamente quantitativa no que se refere à comorbidade não invalida
um estudo. Desta maneira, consideramos relevante o achado que demostra o risco de
morte quatro vezes maior em pacientes com ao menos um tipo de comorbidade em comparação
aos que não possuem comorbidades, corroborando Guerra et al,[13] que observou que a ausência de comorbidade é associada ao grupo de seu trabalho
intitulado vivo e a presença de três comorbidades associada ao grupo intitulado óbito. O mesmo ocorre com Shebubakar et al[29] e Campos et al,[30] que demonstram que a presença de duas ou mais comorbidades está associada a um aumento
da taxa de morbidade e mortalidade. Ainda no que diz respeito à escolha por uma análise
puramente quantitativa, também levamos em consideração o fato de termos como objetivo
a criação de uma linha de raciocínio reprodutível e aplicável à população de maneira
geral e não a grupos específicos e seus distintos níveis de acometimento patológico
(cardiopatas, coronariopatas, hepatopatas, nefropatas, pneumopatas, etc).
Considerando-se os achados da [Tabela 3], onde a internação hospitalar maior que 7 dias e a presença de FCFs não apresentaram
significância estatística, pensamos que ainda assim é importante levarmos em conta
ambas as variáveis. A primeira devido ao fato de que a mesma apresentou significância
estatística e RC exuberante nos achados na [Tabela 1] (risco de óbito 2,5 vezes maior). A segunda pelo fato de apresentar RC importante
conforme as [Tabelas 1 e]
[3]. Assim sendo, acreditamos que um número amostral maior pode revelar diferença estatisticamente
significativa em relação ao desfecho óbito no que diz respeito a topografia da lesão
(FITs x FCFs), principalmente quando levado em consideração a demanda por internação
em CTI.
Conclusão
A mostra estudada segue a tendência epidemiológica estabelecida na literatura no que
diz respeito à idade média, gênero e topografia da fratura em relação a mortalidade
de pacientes senis com FPF submetidos a tratamento cirúrgico. Idade avançada, presença
de comorbidade, maior tempo de internação hospitalar e internação em CTI também são
achados já consolidados no que concerne a um número maior de mortes de pacientes da
população em questão, sendo que, da mesma maneira, relacionaram-se a maior mortalidade
em nosso estudo.
Em relação ao desfecho óbito, apesar de não encontramos diferença estatisticamente
significativa no que se refere à topografia da lesão e como essas se comportam no
momento em que coexistem junto a internação em CTI, acreditamos na necessidade de
maiores investigações sob essa ótica na população com o perfil estudado. Justifica-se
esta necessidade uma vez que no modelo de classificação proposto existe uma probabilidade
maior de óbito nos pacientes mais velhos, com tempo de internação hospitalar superior
a sete dias, internação em CTI e que apresentaram FCFs, de maneira que indagamos se
um número amostral maior pode resultar em estatística significante no que tangencia
maior risco de óbito em pacientes com mais de 70 anos com FCFs internados em CTI.