Palavras-chave
artroplastia de quadril - cimentos para ossos - articulação do quadril - estudos de
acompanhamento
Introdução
As hastes não cimentadas são amplamente utilizadas nas artroplastias total de quadril
(ATQs). No entanto, o termo não cimentado é uma descrição genérica e denomina um grande
grupo de implantes que não utiliza o polimetilmetacrilato (PMNA) como interface entre
o osso hospedeiro e a prótese. A inexistência do PMNA exige que a haste tenha uma
fixação direta no osso, sendo assim, mais dependente da forma, da porosidade, do tipo
de metal empregado e do design.
Existe grande diversidade na combinação dessas características, fato que, por fim,
gera resultados variáveis dos implantes não cimentados. Diversos modelos de hastes
apresentaram excelentes desfechos clínicos e radiográficos; outros, porém, não tiveram
este bom desempenho, e alguns demonstraram resultados catastróficos.[1]
[2]
[3]
Nos anos 1990, embora o mundo apresentasse um boom nas hastes não cimentadas e uma facilidade no acesso a estes implantes, alguns países,
por peculiaridades socioeconômicas, experimentaram escassez e dificuldade de acesso
aos implantes não cimentados de qualidade. Esta, a nosso ver, foi a situação do Brasil
ou de grande parte do país.
Neste cenário, iniciou-se o projeto de desenvolvimento de uma haste não cimentada
com design quadrangular e dupla cunha, considerado pelos autores o mais adequado. Além disso,
a haste deveria ter todos os testes exigidos pela Administração de Comidas e Remédios
dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês), pela American Society for Testing and
Materials (ASTM) e, sobretudo, alto padrão de qualidade quando submetida aos mais
rigorosos testes laboratoriais.
O resultado foi a produção de um implante não cimentado, com núcleo básico reto quadrangular,
em dupla cunha, com aletas nas faces anterior e posterior, forjada em uma liga de
titânio, alumínio e vanádio. O ângulo cérvico-diafisário adotado foi de 135°, e com
cone Morse 12/14 mm. Todo o implante é recoberto por jateamento com textura grossa
e seu terço proximal recebe uma camada porosa circunferencial de titânio puro depositado
por termo aspersão (plasma spray). Estes implantes foram produzidos nos tamanhos 8, 9, 10, 11,25, 12,5, 13,75 e 15.
Hastes mais robustas, de tamanhos 16, 18 e 20, possuem características similares,
porém a camada de titânio recobre quase a totalidade da haste[4] ([Fig. 1]).
Fig. 1 Haste femoral não cimentada Logical – modelo inicial.[4]
Apesar dos primeiros passos serem exitosos e as premissas básicas em termos de metalurgia,
dos rigorosos testes biomecânicos, dos testes com elementos finitos e o controle laboratorial
validarem a produção e a qualidade do implante,[4] ainda não atestam e nem garantem o seu sucesso no ambiente clínico, ou seja, quando
submetida a toda a sorte de situações in vivo ([Fig. 2]).
Fig. 2 Fotografias de uma haste Logical removida devido a infecção. Imagens demostrando
nítido crescimento ósseo para a superfície porosa da haste.
Com o objetivo de avaliar o desempenho da haste não cimentada Logical (Baumer, Mogi
Mirim, SP, Brasil), realizamos uma avaliação de todos os casos de artroplastia primária
do quadril que utilizaram este implante em nossa instituição, entre os anos de 2004
e 2015. Preencheram os critérios de inclusão 632 pacientes.
Material e Métodos
Todos os pacientes que foram submetidos a ATQ com haste Logical, entre os anos de
2004 e 2015, seguidos no ambulatório de Cirurgia do Quadril, tiveram seus dados coletados
no sistema de arquivo eletrônico e físico. Embora o banco de dados contivesse > 1.000
pacientes, foram excluídos aqueles nos quais a haste foi utilizada nas fraturas do
fêmur proximal, nas revisões de artroplastia e nas fraturas decorrentes de metástases
ósseas ou de tumores ósseos primários. Restaram 632 pacientes.
Todas as cirurgias foram realizadas ou supervisionadas por quatro ortopedistas especialistas
em cirurgia do quadril. A via posterolateral foi utilizada em todos os casos. A profilaxia
com antibiótico adotada foi a cefazolina endovenosa conforme o protocolo institucional
e a tromboprofilaxia pós-operatória foi realizada com enoxaparina subcutânea. Os pacientes
retornaram no 15°, 45° e 90° dias do pós-operatório; após este período inicial, os
retornos ocorriam a cada 6 meses nos primeiros 18 meses e então anualmente. Radiografias
de controle foram obtidas no pós-operatório imediato, no 45° dia, e no 180° dia. A
partir disso, os exames radiográficos eram realizados anualmente.
O desfecho avaliado foi a necessidade de revisão do componente femoral por sinais
radiográficos de afrouxamento do componente femoral ou por dor associada à cirurgia.
Para fins de desfecho, consideramos a data da indicação cirúrgica como a data da falha
do implante.
Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: ter realizado ATQ primária por
artrose do quadril, primária ou secundária, com a haste Logical, e ter realizado seguimento
periódico no serviço de ortopedia. Foram excluídos os pacientes submetidos a artroplastia
parcial ou bipolar do quadril por fratura do fêmur proximal, as revisões de artroplastia
com haste Logical, e os pacientes operados devido a fratura patológica do fêmur proximal.
Tabularam-se os dados epidemiológicos como gênero, idade e indicação cirúrgica. Também
foi coletado o tamanho dos implantes utilizados, além dos índices de infecção, de
fratura femoral transoperatória e de fratura periprotética pós-operatória.
Devido ao grande número de casos, foi selecionada aleatoriamente uma amostra de 55
casos para análise radiográfica, realizada por dois autores distintos (Galia C. R.
e Diesel C. V.), separadamente e em momentos distintos. A concordância entre os avaliadores
foi aferida pelo índice kappa.
Para a análise radiográfica, foram utilizadas radiografias de bacia em anteroposterior
e avaliadas a migração axial da haste, a presença de stress shielding, a presença de linhas de radioluscência nas zonas de Gruen e a formação de pedestal
na ponta da haste. A migração axial foi considerada presente quando a distância do
topo do grande trocanter-ombro da haste estivesse > 5 mm, com um intervalo de 1 ano
entre as radiografias ([Fig. 3]).
Fig. 3 Aspecto radiográfico da haste não cimentada Logical – artroplastia do quadril esquerdo
realizada em 2012.
Consideramos o afrouxamento radiográfico quando observada migração axial > 5 mm, especialmente
com progressão ao longo dos anos e associada com formação de pedestal na ponta da
haste. Utilizaram-se, também, a formação de linhas de radioluscência > 2 mm, progressivas,
nas zonas de Gruen, como marcador de afrouxamento do implante.
As curvas de sobrevida foram calculadas pelo teste de Kaplan-Meier e expressas nas
respectivas curvas de sobrevida. As diferenças de sobrevida entre os sexos foram avaliadas
pelo teste de Mantel-Cox. As demais variáveis numéricas forram apresentadas em percentuais.
Resultados
Foram incluídos no estudo 632 pacientes, todos tendo realizado cirurgia de ATQ utilizando
o implante LOGICAL CM. Destes, 54,7% (346) eram do sexo feminino e 45,3% (286) eram
do sexo masculino. O seguimento médio total foi de 6,41 ± 3,1anos (média ± desvio
padrão [DP]) com mínimo de 2 anos de acompanhamento e máximo de 13 anos.
Para um entendimento melhor da análise, os sujeitos da pesquisa foram divididos em
2 grupos de momentos distintos: pacientes operados de janeiro de 2004 a dezembro de
2009 (totalizando 244 pacientes) e pacientes operados de janeiro de 2010 a dezembro
de 2015 (totalizando 388 pacientes).
Dos pacientes operados de janeiro de 2004 a dezembro de 2009, o seguimento médio foi
de 9,73 ± 1,42 anos (média ± DP), com mínimo de 8 anos e máximo de 13 anos de acompanhamento.
A sobrevida destes pacientes está exibida nas [Figs. 4]
[5]
[6].
Fig. 4 Sobrevida do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro de 2004 e dezembro
de 2009. Um total de 95,1% dos implantes tiveram uma sobrevida média de 12,72 ± 0,09
anos (média ± desvio padrão), sendo 12,57–12,87 anos o intervalo de confiança.
Fig. 5 Sobrevida do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro de 2004 e dezembro
de 2009 avaliando diferenças entre os sexos. Não houve diferença na sobrevida média
do implante comparando os sexos masculino e feminino. Foi utilizado teste de Log Ranl
(Mantel-Cox) (p = 0,878). Sobrevida média de 12,74 ± 0,10 anos para o sexo feminino e de 12,73 ± 0,13
meses para o sexo masculino.
Fig. 6 Risco cumulativo de falha do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro
de 2004 e dezembro de 2009 ao longo de 12,5 anos foi de 10,7%.
Dos pacientes operados de janeiro de 2010 a dezembro de 2015, o seguimento médio foi
de 4,32 ± 1,74 anos (média ± DP), com mínimo de 2 anos e máximo de 8 anos de acompanhamento.
A sobrevida destes pacientes está exibida nas [Figs. 7]
[8]
[9].
Fig. 7 Sobrevida do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro de 2004 e dezembro
de 2009. Um total de 98,5% dos implantes tiveram uma sobrevida média de 7,89 ± 0,04
anos (média ± desvio padrão), sendo 7,81–7,98 anos o intervalo de confiança.
Fig. 8 Sobrevida do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro de 2004 e dezembro
de 2009 avaliando diferenças entre os sexos. Não houve diferença na sobrevida média
do implante comparando os sexos masculino e feminino. Foi utilizado teste de Log Ranl
(Mantel-Cox) (p = 0,287). Sobrevida média de 7,94 ± 0,04 anos para o sexo feminino e de 7,85 ± 0,06
anos para o sexo masculino.
Fig. 9 O risco cumulativo de falha do implante LOGICAL CM dos pacientes operados entre janeiro
de 2004 e dezembro de 2009 ao longo de 8 anos foi de 6,51%.
Os principais tamanhos dos componentes femorais utilizados estão dispostos na [Fig. 10].
Fig. 10 Tamanhos dos componentes femorais.
Nenhum paciente foi revisado por dor residual na coxa, ou por migração axial da haste > 5
mm. No período, foram observadas 14 fraturas periprotéticas transoperatórias (0,02%),
a maior parte resolvida por cerclagem com fios metálicos.
Não foram observados casos de atrofia óssea (stress shielding) na amostra radiográfica analisada.
Discussão
A crença norteia muitos passos da evolução do conhecimento. A fusão da crença e de
princípios físicos, mecânicos e biológicos na área da ortopedia pode resultar em soluções,
produtos de sucesso ou não. Institucionalmente, havia a crença de que o design mais
adequado para uma haste femoral não cimentada seria o quadrangular e cuneiforme. Esta
crença era sustentada pelos pilares mecânicos e biológicos já estudados por diversos
autores e com sucesso comprovado ao longo dos anos como nas hastes femorais CLS (Zimmer.
Warsaw, Indiana, USA).[5]
[6]
[7] O resultado disso foi o desenvolvimento de uma haste não cimentada, quadrangular,
cuneiforme, com porosidade e aletas proximais.
A haste Logical foi utilizada nas mais diversas situações e indicações, como nas ATQs,
nas artroplastias parciais para o tratamento das fraturas do fêmur proximal, no tratamento
das lesões metastáticas do terço proximal do fêmur e nas revisões do componente femoral.
Foram implantadas, desde o ano de 2004, mais de 1.000 hastes femorais em nossa instituição.
Os anos iniciais foram dedicados aos ajustes e aperfeiçoamentos nos instrumentais,
além da observação da evolução pós-operatória dos pacientes. Também foram os anos
despendidos para curva de aprendizado do implante.
A observação da evolução dos primeiros casos foi encorajadora, e passou-se a uma maior
liberalidade nas indicações dessa haste não cimentada. A faixa etária, os conceitos
de Dorr e do índice morfocortical foram, aos poucos, deixando de ser critérios utilizados
na indicação desta haste não cimentada.
Não encontramos, na amostra radiográfica avaliada, migração axial da haste femoral.
Embora a totalidade das radiografias não tenha sido analisada, o design do implante
e sua adaptação ao canal femoral, além do baixo número de indicação de revisões, nos
faz crer que este evento seja realmente raro.
Observamos um total de 14 fraturas periprotéticas transoperatórias (0.02%). Embora
os números encontrados na literatura sejam variáveis (entre 0,1% e 27,8%),[8] atribuímos este baixo número de casos à experiência institucional com esta haste
não cimentada – a única utilizada na instituição desde 2004.
Também não encontramos, como não tínhamos a expectativa de identificar, na amostra
radiográfica analisada, indícios de atrofia óssea cortical (stress shielding). Atribuímos isso às características deste implante não cimentado (em dupla cunha,
com porosidade proximal e biocompatível). Estas características somadas, entre outras,
aumentam a distribuição de carga na interface implante-osso e reduzem a incidência
da atrofia óssea.
Embora um seguimento de médio prazo ainda seja insuficiente em termos de seguimento
de implantes ortopédicos, os resultados obtidos e expressos nas curvas de sobrevida
são muito animadores.
Atualmente, já estão adaptados à haste Logical, as cabeças de cerâmica e seu conjunto
acetabular conta com o polietileno tipo crosslinked. Nos casos analisados, esperamos um maior número de indicação de revisão destas hastes
ao longo do tempo, visto o par tribológico utilizado, na grande maioria deles, ser
o metal-polietileno de ultraelevado peso molecular. Aspectos relacionados com a geração
de partículas e sua repercussão na sobrevida das artroplastias são bem conhecidos.
Consideramos, dessa forma, os próximos anos como muito desafiadores.