Palavras-chave
ferida - infecção - mama - tuberculose
Introdução
A tuberculose é uma infecção bacteriana causada pelo Mycobacterium tuberculosis, que se espalha pelo ar a partir da tosse, espirros ou saliva de pessoas infectadas,
e pode ser inalado por outras pessoas. Estima-se que um quarto da população mundial
já se infectou com a bactéria.[1] Contudo, a maior parte das pessoas não chega a desenvolver doença, de modo que não
a transmite. O risco de adoecer é maior em pessoas imunocomprometidas, diabéticas,
desnutridas, fumantes, e naquelas que vivem com HIV, e chega, na população em geral,
a entre 5 e 10% ao longo da vida.[1]
A doença afeta majoritariamente os pulmões, e apresenta como sintomas clássicos a
tosse persistente seca ou produtiva, febre vespertina, sudorese noturna e emagrecimento.[2] Pode, ainda, apresentar-se também de forma extrapulmonar, a exemplo das tuberculoses
pleural, ganglionar periférica, meningoencefálica, pericárdica e óssea. Os métodos
diagnósticos mais utilizados são o clínico, bacteriológico, por imagem e histopatológico.[2]
Apesar dos avanços no diagnóstico e tratamento, a tuberculose ainda hoje contagia
mais de 10 milhões de pessoas a cada ano, e é responsável pela morte de 1,25 milhões
de pessoas no mundo.[3] Quase 90% dos casos incidem sobre adultos, e a taxa de mortalidade sem tratamento
chega a 50%.[3] Trata-se da principal causa de morte de pessoas com HIV, e tem papel relevante no
desenvolvimento de resistência antimicrobiana.[3]
No Brasil, a tuberculose persiste como grande desafio para a saúde pública, e seu
enfrentamento foi prejudicado em grande medida pela crise sanitária da pandemia de
doença do coronavírus 2019 (coronavirus disease 2019, Covid-19, em inglês), que levou a uma redução no acesso ao diagnóstico e ao tratamento
da doença. Segundo o Ministério da Saúde, as interrupções causadas pela pandemia ocasionaram
queda de 12,1% no número de pessoas diagnosticadas entre 2019 e 2020, com recuperação
parcial em 2021 e 2022, mas ainda sem atingir os patamares pré-pandêmicos.[4] Em 2022, a incidência da doença foi de 36,3 casos por 100 mil habitantes (78.057
casos). Já o coeficiente de mortalidade, que vinha lentamente se reduzindo nas últimas
2 décadas, aumentou em 2021, e chegou a 5.072 óbitos e a um coeficiente de 2,38 óbitos
por 100 mil habitantes.[4] Tratou-se de aumento de 11,9% no total de óbitos por tuberculose.
Destacadamente, em 2022, o Rio de Janeiro foi o estado que apresentou o maior risco
de morte por tuberculose na população (5,0 óbitos por 100 mil habitantes),[4] sendo, ainda, o terceiro estado com maior coeficiente de incidência, de 68,6 casos
por 100 mil habitantes, 1,88 vezes maior do que o coeficiente nacional.
Objetivo
O objetivo deste artigo é relatar um caso de tuberculose mamária em paciente com histórico
de câncer de mama.
Materiais e Métodos
Trata-se de estudo observacional descritivo de caso de mulher de 35 anos com histórico
de câncer de mama, que foi diagnosticada com tuberculose mamária, realizado a partir
de análise de prontuários e registros fotográficos, de agosto de 2017 a março de 2024,
no Hospital e Maternidade Santa Lúcia, no Rio de Janeiro. O estudo foi submetido à
Plataforma Brasil e aprovado pelo parecer do Comitê de ética em Pesquisa (CEP) de
número 7.423.804 (CAAE: 85224924.2.0000.0227).
Relato de Caso
Uma mulher de 35 anos foi diagnosticada com carcinoma medular, multicêntrico, triplo
negativo (sem receptores para estrogênio, progesterona e receptor tipo 2 do fator
de crescimento epidérmico humano [human epidermal growth factor receptor type 2, HER2,
em inglês]) na mama direita em 2017. A paciente foi submetida a mastectomia em agosto
de 2017, seguida de tratamento adjuvante com 16 sessões de quimioterapia, sendo 4
sessões com ciclofosfamida e paclitaxel e 12 sessões com doxorrubicina, entre outubro
de 2017 e abril de 2018, além de 26 sessões de radioterapia, em agosto de 2018.
A reconstrução da mama foi realizada em duas etapas. A primeira, em abril de 2019,
consistiu em cirurgia com retalho do músculo grande dorsal à direita e implante de
silicone, acrescida de mastopexia à esquerda sem prótese. A paciente evoluiu com deiscência
em sutura na mastopexia, tendo sido realizada a ressutura em bloco cirúrgico no 36°
dia de pós-operatório.
A segunda etapa de reconstrução, em março de 2020, envolveu a realização de mastopexia
à esquerda com prótese. Uma vez mais, houve evolução para deiscência em sutura, a
qual foi tratada de maneira conservadora, tendo em vista a eclosão da pandemia de
Covid-19. Em junho do mesmo ano, a paciente apresentou eritema na mama esquerda. Foi
realizada biópsia em bloco cirúrgico por equipe de mastologistas, e foi prescrito
Clavulin BD (GlaxoSmithKline). O resultado indicou discreto infiltrado linfocitário
perivascular superficial.
Posteriormente, em 2021, foi identificado o deslocamento da prótese submuscular para
a região lateral da mama esquerda. Deliberou-se nova abordagem cirúrgica para troca
de prótese.
Em 08 de fevereiro de 2023, foi realizada mamoplastia à esquerda com prótese submuscular,
em hospital privado, no Rio de Janeiro. O aspecto da ferida cirúrgica observado na
primeira troca de curativo, em 23 de fevereiro de 2023, 15 dias após o procedimento,
é retratada na [Fig. 1].
Fig. 1 Ferida durante troca de curativo em 23 de fevereiro de 2023, 15 dias após a cirurgia.
No dia seguinte, em 24 de fevereiro de 2023, a paciente foi novamente internada no
Hospital e Maternidade Santa Lúcia para a realização de sutura e de cultura na ferida.
Foi prescrito novamente o antibiótico clavulin BD 875mg. Então, a paciente foi encaminhada
para a realização de 13 sessões de terapia hiperbárica, em Niterói, no estado do Rio
de Janeiro, entre 27 de fevereiro e 13 de março de 2023. A evolução da ferida pode
ser observada na [Fig. 2].
Fig. 2 Evolução da ferida durante as 13 sessões de terapia hiperbárica, entre 27 de fevereiro
e 13 de março de 2023.
A cultura realizada em 24 de fevereiro de 2023 foi positiva para Pseudomonas aeruginosa, bactéria gram-negativa oportunista, de modo que se prescreveu ciprofloxacino 500 mg
de 8 em 8 horas por 10 dias.
Em 13 de março de 2023, foi suspensa a terapia hiperbárica, e a paciente foi internada
uma vez mais em um hospital particular, para o tratamento com terapia por pressão
subatmosférica, ou vacuum-assisted closure, VAC, em inglês). O estado da ferida nessa data encontra-se ilustrado na [Fig. 3].
Fig. 3 Ferida da paciente em 13 de março de 2023, data da nova internação para a realização
de terapia por pressão subatmosférica (vacuum-assisted closure, VAC, em inglês).
A terapia VAC foi realizada entre 16 e 21 de março de 2023. A evolução da lesão pode
ser verificada na [Fig. 4].
Fig. 4 Evolução da ferida durante a terapia VAC, em 2023.
Em 20 de março de 2023, houve novo resultado para a cultura realizada em 24 de fevereiro
de 2023, desta vez apontando a presença de M. tuberculosis. Então, estabeleceu-se o diagnóstico de tuberculose cutânea na mama esquerda, sendo
a paciente encaminhada para tratamento por meio do Programa Municipal de Tuberculose
de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro. A primeira etapa do tratamento, com rifampicina,
isoniazida, pirazinamida e etambutol foi realizada de maneira estendida por 3 meses,
em vez do padrão de 2 meses, entre 20 de março e 20 de junho de 2023. Após esse período,
seguiu-se o tratamento com rifampicina e isoniazida por mais 6 meses. Para corrigir
a hiperuricemia e o quadro de gota apresentados como efeitos colaterais, prescreveu-se
alopurinol 300 mg.
A cicatrização da lesão na mama esquerda foi acompanhada em ambulatório no Amil Espaço
Saúde, em Niterói, onde foram feitos os curativos, e pode ser vista na [Fig. 5]. Foram usados os produtos Aquacel (Convatec), um curativo de hidrofibra, Biatain
Ag (Coloplast), um curativo de espuma de prata, e Pielsana (DBS), um produto a base
de ácidos graxos essenciais (AGEs), vitaminas A e E, e óleos de copaíba e melaleuca.
Fig. 5 Curativo em lesão na mama esquerda, acompanhado pelo ambulatório Amil – Niterói,
entre 21 de abril e 10 de junho de 2023.
Finalmente, a paciente realizou 4 sessões de laserterapia entre 15 e 26 de junho de
2023, com acompanhamento com enfermeira estomaterapeuta. A melhora da lesão durante
as sessões é apresentada na [Fig. 6].
Fig. 6 Evolução da ferida durante laserterapia, entre 15 e 26 de junho de 2023.
Após 3 meses da conclusão do tratamento da tuberculose, a paciente retornou com mamas
bem cicatrizadas e ausência de sinais flogísticos ([Fig. 7]).
Fig. 7 Evolução da ferida após conclusão do tratamento para a tuberculose cutânea e retorno
após 3 meses do término da medicação, em março de 2024.
Discussão
A tuberculose mamária é uma forma rara de tuberculose extrapulmonar. Em países desenvolvidos,
sua incidência entre as lesões de mama é de 0.1%, chegando, em regiões com maior incidência
de tuberculose, como a Índia e países africanos, a 3 ou 4%.[5]
A doença acomete majoritariamente mulheres jovens em idade reprodutiva, sobretudo
lactantes e multíparas, sendo muito mais rara em meninas pré-púberes, mulheres na
pós-menopausa e homens.[6] O estado geral do paciente é bom, e sintomas constitucionais, como febre, perda
de peso e sudorese noturna, clássicos de tuberculose, não estão presentes em grande
parte das pessoas.[7]
Entre os sinais e sintomas podem encontrar-se nódulos, úlceras, múltiplas fístulas
com secreção e abcessos recorrentes nas mamas, sendo os nódulos geralmente irregulares,
mal definidos e mais comumente dolorosos do que aqueles em carcinomas.[8] Retrações da pele e dos mamilos, características inflamatórias e linfadenopatia
axilar podem ocorrer, ao passo que lesões múltiplas e acometimento bilateral são menos
comuns.[6]
Suas principais apresentações são nodular, disseminada e esclerosante. A variante
nodular pode ser confundida com carcinoma ou fibroadenoma, ao passo que a forma variada
com frequência leva à formação de fístulas.[5] Já a forma esclerosante afeta mulheres mais idosas, tem crescimento mais lento e
está associada a processos fibróticos mais extensos.[5]
Os pilares principais do seu diagnóstico são exame clínico, avaliações radiológicas
e amostras histopatológicas. Contudo, diante de seus achados clínicos e radiológicos
inespecíficos, além de sua raridade, o diagnóstico da tuberculose mamária muitas vezes
é difícil, pois ela pode facilmente ser confundida com abcessos ou tumores de mama,
sendo muitas vezes necessária uma biópsia para excluir esse último diagnóstico diferencial.[9]
A tuberculose mamária deve ser considerada em todos os pacientes que apresentam abcesso
ou massas atípicas nas mamas, em especial quando presentes fatores de risco como sexo
feminino, idade reprodutiva, multiparidade e coinfecção com HIV.[10] Deve ser igualmente considerada, com especial atenção, em regiões de maior incidência
da doença.
Além do tratamento padrão com rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol por
2 meses, seguido de rifampicina e isoniazida por 4 meses, técnicas auxiliares podem
ajudar na cicatrização de eventuais feridas, como a terapia hiperbárica, a terapia
VAC, e a laserterapia de que fez uso a paciente. A terapia hiperbárica pode ajudar
na cicatrização de úlceras,[11]
[12] assim como a laserterapia, que pode auxiliar na redução do tamanho de lesões ulceradas[13] e na maior cicatrização de feridas.[14] A utilização de VAC, por sua vez, pode estar associada a desfechos como menores
taxa de mortalidade,[15] taxa de recorrência, falha de tratamento, tempo de internação, tempo de internação
na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e custo de tratamento.[16]
Conclusão
O diagnóstico da tuberculose mamária pode ser um desafio para a equipe de saúde, tendo
em vista a apresentação frequente de sinais e sintomas inespecíficos, que podem ser
confundidos com outras patologias. Sua incidência, contudo, não deve ser desprezada,
em especial em países de considerável incidência da doença, como no Brasil, sendo
sua identificação precoce fundamental para o correto manejo do caso.
Bibliographical Record
Manoel Vicente Andrade de Souza, Bianca Maria Barros Ohana, Juliana Carreiro Avila,
Bruno Soares da Silva Ranger, Jackeline Aires de Oliveira Lopes. Tuberculose mamária
em paciente com histórico de câncer de mama: Um relato de caso. Revista Brasileira
de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2025; 40: s00451810591.
DOI: 10.1055/s-0045-1810591