Palavras-chave
fraturas do planalto tibial - fixadores externos - técnica de Ilizarov - fios de Kirschner
Introdução
A fratura da extremidade proximal da tíbia historicamente representa um espectro de
lesões com alta dificuldade de tratamento. Quando se avaliam as lesões bicondilares
e com dissociação metáfiso-diafisária, sabe-se que as complicações inerentes aos métodos
tradicionais de tratamento são invariavelmente importantes. Portanto, tem-se procurado
formas alternativas com abordagens menos invasivas a fim de preservar as estruturas
biológica e anatômica da região acometida para diminuir, assim, as chances de complicações.
Atualmente, com o advento de técnicas minimamente invasivas, acredita-se que o restabelecimento
do alinhamento axial do membro inferior seja mais importante do que a restauração
absoluta da congruência articular no resultado do tratamento das fraturas do planalto
tibial.[1]
[2]
[3]
Ilizarov desenvolveu a técnica de fixação externa circular para o tratamento de problemas
ortopédicos de difícil manejo. O método se baseia nos princípios biológicos da consolidação
óssea e no uso de um fixador externo de formato circular que utiliza anéis e fios
de Kirschner tensionados transfixantes para a fixação óssea.[4]
Esforços têm sido feitos para simplificar a aplicação e a configuração dos aparelhos
para melhorar o conforto dos pacientes enquanto se mantém a apropriada combinação
de estabilidade e dinâmica do sistema. A redução do número de fios na montagem diminui
a taxa de infecção e melhora o conforto do paciente durante o tratamento, mas simultaneamente
diminui a estabilidade do aparelho. A introdução de pinos de Schanz às montagens de
fixadores externos circulares de Ilizarov propicia a configuração mais simplificada
de um aparelho suficientemente rígido e uma redução das complicações de partes moles
associadas aos fios.[5]
Cardoso et al.[6] compararam biomecanicamente dois tipos de montagem de fixador externo circular em
modelos de ossos compósitos para o tratamento dessas fraturas: uma montagem considerada
clássica (que emprega principalmente fios de Kirschner) e uma montagem proposta, considerada
simplificada (que utiliza majoritariamente pinos de Schanz), e observaram que ambas
apresentaram comportamentos biomecânicos semelhantes.
Portanto, este trabalho tem por objetivo comparar os resultados funcionais de uma
série de casos em que se utilizou a montagem clássica ou a proposta com mais pinos
de Schanz, a fim de avaliar a possibilidade de utilização de uma técnica mais simplificada
do fixador externo circular para o tratamento dessas fraturas.
Dessa forma, considera-se a hipótese de que a montagem simplificada, quando comparada
com a clássica, não alteraria os resultados clínico-radiográficos, o que justificaria
o uso dessa montagem para o tratamento de fraturas complexas do planalto tibial com
fixador externo circular.
Materiais e Métodos
Este é um estudo retrospectivo, quantitativo, comparativo, que usou arquivos de prontuários
médicos dos pacientes com diagnóstico de fraturas do planalto tibial classificadas
como Schatzker V e VI,[7] que foram submetidos a tratamento cirúrgico com fixador externo circular.
O estudo foi aprovado pelo pelo Comitê de Ética e Pesquisa de nossa instituição sob
o número CAAE: 52077521.7.0000.5360.
Coorte e Amostra
A amostra deste estudo foi composta por todos os pacientes (51) que sofreram fraturas
do planalto tibial classificadas como Schatzker V e VI[7] de março de 2012 a junho de 2021, submetidos a tratamento cirúrgico com fixador
externo circular. Os dados foram acessados pelo arquivo dos prontuários dos pacientes.
Foram comparados os desfechos dos pacientes submetidos à montagem clássica do fixador
externo circular de Ilizarov, que utiliza majoritariamente fios de Kirschner transfixantes
(n = 12), com os dos pacientes submetidos a uma montagem simplificada, que substitui
os fios de Kirschner do bloco distal por pinos de Schanz (n = 39). A [Fig. 1] ilustra ambas as montagens utilizadas.
Fig. 1 Ilustração das montagens clássica (à esquerda) e simplificada (à direita) demonstrando
o posicionamento dos fios de Kirschner e dos pinos de Schanz utilizados.
As variáveis descritivas avaliadas foram idade, sexo, mecanismo da lesão, energia
do trauma, lesões associadas, tipo do fixador, tempo de uso do fixador e tempo de
seguimento pós-operatório.
Quanto às análises inferenciais, foram avaliados: o tempo de uso em meses, a presença
de infecção, a qualidade da redução da fratura articular, a amplitude de movimento,
a discrepência residual na medida dos membros inferiores e a dor ao final do seguimento
pós-operatório.
Foram excluídos pacientes com perda de seguimento ou pacientes tratados com fixador
externo circular transarticular. Também foram excluídos pacientes que ainda estavam
em uso do fixador externo circular, seja qual fosse sua montagem.
A análise radiológica do desvio articular foi feita por um grupo de três ortopedistas,
sendo dois com área de atuação em reconstrução e alongamento ósseo, membros da Associação
para o Estudo e Aplicação dos Métodos de Ilizarov (ASAMI) e da Sociedade Brasileira
de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), e um membro da SBOT. Os resultados radiológicos
foram divididos em bom alinhamento, desalinhamento de até 2 mm, desalinhamento entre
2 mm e 4 mm e desalinhamento maior do que 4 mm.
Análise Estatística
Após a definição das variáveis e a coleta de dados, sua computação foi realizada por
meio de planilha do Microsoft Office Excel (Microsoft Corp., Redmond, WA, Estados
Unidos) versão 12.0, e as análises, a partir do programa Jamovi (código aberto), versão
1.2. Inicialmente, foram feitas análises descritivas com o uso de médias e intervalos
de confiança para as variáveis numéricas e medidas de frequência absoluta e relativa
para variáveis categóricas. Em seguida, foram feitas as análises inferenciais.
Para verificar diferenças entre o tempo transcorrido com utilização do fixador e o
tempo de seguimento pós-operatório nos dois grupos, optou-se pelo teste U de Mann-Whitney,
dada a não normalidade da variável dependente e o tamanho da amostra. Nas demais análises,
optou-se pelo teste de associação de qui-quadrado, uma vez que as demais variáveis
eram categóricas. Para determinadas associações, cujas caselas apresentaram valores
absolutos inferiores a 5, optou-se pelo teste exato de Fischer; já para associações
com caselas de valor absoluto 0, foi aplicada a correção de continuidade (Yates).
Em todos os testes de hipóteses, o nível de significância considerado foi de 5%.
Resultados
Foram coletadas informações de prontuários médicos de um total de 82 pacientes. Os
critérios de exclusão foram montagem transarticular (n = 6) e perda de seguimento
(n = 25), de modo que restaram 51 pacientes na amostra.
Quanto à montagem dos fixadores, a técnica clássica foi utilizada em 12 pacientes
(23,5%), conforme ilustrado na [Fig. 2], e a técnica com pino de Schanz, em 39 (76,5%), como demonstrado na [Fig. 3]. A análise foi uma comparação dos resultados obtidos por esses dois grupos de pacientes.
Fig. 2 Imagem clínica e radiográfica demonstrando a montagem clássica em paciente incluído
no estudo.
Fig. 3 Imagem clínica e radiográfica demonstrando a montagem simplificada em paciente incluído
no estudo.
A média de idade dos pacientes tratados com a montagem clássica foi de 46,3 anos,
e a dos pacientes tratados com a montagem simplificada foi de 45,8 anos, não havendo
diferença estatisticamente significativa entre os grupos. Houve predominância do sexo
masculino em ambos os grupos, não havendo diferença estatística significativa na distribuição
de sexo entre os grupos.
Em ambos os grupos houve predominância de traumas de alta energia, majoritariamente
acidentes de trânsito, não havendo diferença estatisticamente significativa entre
os grupos. Do total de lesões associadas avaliadas, a maior parte das fraturas da
tíbia proximal foram isoladas (52,3%), seguidas de fratura associada do fêmur (proximal,
diafisária ou do colo), em um total de 8,4% dos pacientes.
A média de tempo de uso do aparelho, independentemente da montagem, foi de 7,25 meses.
O tipo de montagem não determinou diferença estatisticamente significativa no tempo
de uso do aparelho (p = 0,171), conforme distribuição temporal demonstrada na [Fig. 4].
Fig. 4 Gráfico demonstrando a distribuição de tempo de uso do fixador externo entre os grupos
clássico e simplificado.
A média de seguimento pós-operatório no grupo submetido à montagem clássica foi de
48,5 meses, ao passo que no grupo tratado com a montagem simplificada foi de 42,7
meses; essa diferença não se mostrou estatisticamente significativa (p = 0,629).
Quanto à qualidade do resultado do tratamento, foram usadas duas variáveis: união
sem infecção, e não união e/ou infecção. Entre os pacientes submetidos à montagem
clássica, observou-se que 83,3% evoluíram com consolidação sem infecção, ao passo
que esse número foi de 94,9% grupo da montagem simplificada. Não houve diferença estatisticamente
significativa (p = 0,232) no teste exato de Fischer entre os grupos, conforme demonstrado na [Tabela 1].
Tabela 1
|
Resultado
|
|
Tipo de fixador
|
Não consolidação ou infecção
|
Consolidação sem infecção
|
Total
|
Clássico
|
2
|
10
|
12
|
|
16,7%
|
83,3%
|
100%
|
Simplificado
|
2
|
37
|
39
|
|
5,1%
|
94,9%
|
100%
|
Total
|
4
|
47
|
51
|
|
7,8%
|
92,2%
|
100%
|
No grupo da montagem clássica, observou-se que 66,7% apresentavam bom resultado radiográfico
(considerado como bom alinhamento ou desalinhamento de até 2 mm), ao passo que esse
número foi de 71,8% no grupo da montagem simplificada, sem diferença estatisticamente
significativa (p = 0,65).
Os resultados referentes à amplitude de movimento da articulação do joelho após a
retirada do fixador tampouco apresentaram diferenças estatísticas entre as diferentes
montagens (p = 0,826), conforme demonstrado na [Tabela 2], considerando que no grupo da montagem clássica 83,3% dos pacientes apresentavam
amplitude de movimento maior do que 80°, em comparação com 87,8% dos pacientes da
montagem simplificada.
Tabela 2
|
Amplitude de movimento de joelho
|
|
Tipo de fixador
|
< 80°
|
80°–109°
|
110°–130°
|
> 130°
|
Total
|
Clássico
|
2
|
5
|
3
|
2
|
12
|
16,7%
|
41,7%
|
25%
|
16,7%
|
100%
|
Simplificado
|
5
|
19
|
11
|
4
|
39
|
12,8%
|
48,7%
|
28,2%
|
10,3%
|
100%
|
Total
|
7
|
24
|
14
|
6
|
51
|
13,7%
|
47,1%
|
27,5%
|
11,8%
|
100%
|
Com relação à discrepância residual entre membros, comparando os resultados entre
os grupos, não houve significância estatística (p = 0,51 no teste exato de Fischer associado à correção de continuidade de Yates),
sendo que em 83,3% dos pacientes da montagem clássica e em 92,3% dos da montagem simplificada
não foi observada dismetria entre os membros.
Na avaliação da dor residual após a retirada do fixador externo, também não houve
diferença estatisticamente significativa (p = 0,893) entre os grupos, conforme demonstrado na [Tabela 3], considerando que 25% dos pacientes da montagem clássica apresentavam dor moderada
ou severa no pós-operatório, em comparação com 30,6% dos pacientes da montagem simplificada.
Tabela 3
|
Dor
|
|
Tipo de fixador
|
Ausente
|
Leve
|
Moderada
|
Severa
|
Total
|
Clássico
|
8
|
1
|
3
|
0
|
12
|
66,7%
|
8,3%
|
25%
|
0%
|
100%
|
Simplificado
|
20
|
7
|
10
|
2
|
39
|
51,3%
|
17,9%
|
25,6%
|
5,1%
|
100%
|
Total
|
28
|
8
|
13
|
2
|
51
|
54,9%
|
15,7%
|
25,5%
|
3,9%
|
100%
|
Discussão
Com base na experiência clínica e em estudos biomecânicos, no caso das fraturas graves
do planalto tibial, a melhor estabilização de cada fragmento ósseo por meio da fixação
externa circular é obtida com a fixação em dois níveis e quatro fios inseridos em
ângulos retos. Entretanto, na maioria das situações clínicas, não é possível posicionar
os fios em ângulos retos devido a limitações anatômicas. A redução do número de fios
ou do ângulo entre os fios afeta a estabilidade da fixação dos fragmentos ósseos,
o que em última instância pode afetar o sucesso do tratamento ortopédico.[8]
Não existe consenso na literatura a respeito do tipo de fixação externa a ser utilizada
no tratamento dessas fraturas. Há descrição de utilização de fixadores circulares
e exclusivamente fios de Kirschner, fixadores circulares e variadas associações de
fios de Kirschner e pinos de Schanz, e fixadores que utilizam barras e anéis com fios
de Kirschner na metáfise e exclusivamente pinos de Schanz na diáfise.[9]
A redução do número de fios na montagem diminui a taxa de infecção e melhora o conforto
do paciente durante o tratamento, mas simultaneamente diminui a estabilidade do aparelho.
A introdução de pinos de Schanz às montagens de fixadores externos circulares de Ilizarov
permite a configuração de um aparelho mais rígido e uma redução das complicações de
partes moles associadas aos fios.[5] Com base nisso, foi proposta uma montagem simplificada, em que os fios de Kirschner
do bloco distal são substituídos por dois pinos de Schanz para cada um dos anéis,
conforme ilustrado da [Fig. 1].
Neste estudo, a média de idade dos pacientes com as montagens clássica e simplificada
foi de 46,3 e 45,8 anos, respectivamente, com predominância do sexo masculino. O tempo
médio de uso do aparelho foi de 7,25 meses. Ghimire et al.[10] encontraram dados semelhantes, com predominância do sexo masculino e média de idade
de 39,98 anos, mas com tempo estimado até a remoção dos fixadores de 15,09 semanas.
Em ambos os estudos os acidentes de trânsito foram a causa principal das fraturas.
Ali et al.[9] realizaram estudo com uma montagem padronizada para fraturas complexas do planalto
tibial, e observaram tempo médio de uso do aparelho de 18 semanas. Em nosso estudo,
a montagem, clássica foi utilizada em 23,5% dos pacientes, ao passo que a simplificada,
em 76,5%, sem diferença entre os grupos quanto à amplitude de movimento pós-operatória.
A amplitude de movimento ao final do tratamento em ambas as montagens foi superior
a 80° em mais de 80% dos casos, ao passo que no estudo estudo de Ali et al.[9] a amplitude de movimento média ao final do tratamento foi de 112°.
Neste estudo, a maioria das fraturas da tíbia proximal foi isolada (52,3%), seguida
de fraturas associadas do fêmur (proximal, diafisária ou do colo). A análise radiológica
da consolidação da fratura, a qualidade da redução da superfície articular, e a discrepância
residual entre membros não apresentaram diferenças estatisticamente significativas
entre os grupos.
Em comparação do nosso trabalho com um estudo multicêntrico, prospectivo e randomizado
publicado em 2006 pela Canadian Orthopaedic Trauma Society,[11] os dois estudos avaliaram diferentes abordagens de tratamento para fraturas, sendo
o nosso centrado na comparação entre dois tipos de montagem do fixador externo para
fraturas da tíbia proximal, e o segundo, na comparação do uso de fixador circular
com a redução aberta e fixação interna em pacientes com fraturas variadas. Os estudos
sugerem que tanto o uso de diferentes montagens do fixador externo quanto a utilização
do fixador circular em comparação à redução aberta e fixação interna podem ser considerados
opções viáveis para o tratamento de fraturas. No entanto, é necessário levar em conta
as características do paciente, a natureza da fratura e considerações clínicas individuais
ao decidir a abordagem de tratamento mais adequada. Dessa forma, analisando os dois
estudos, o fixador externo circular simplificado mostra-se uma boa alternativa para
o tratamento de fraturas da tíbia proximal, pois mostrou resultados semelhantes aos
dos demais estudos[11] em relação à qualidade do resultado do tratamento e às complicações associadas.
As principais complicações relacionadas a fraturas do planalto tibial de alta energia
são síndrome compartimental, lesão neurovascular e necrose da pele. A taxa de infecção
pós-operatório com a redução aberta pode girar em torno de 5% a 20%.[12]
[13] Com a montagem percutânea, diminui-se o risco de lesão ao periósteo e mantém-se
preservada a biologia local. Em ambos os grupos estudados, foram encontradas complicações
semelhantes no que diz respeito à perda da mobilidade articular, dor residual pós-operatória
e assimetria do comprimento dos membros. Em relação ao resultado do tratamento, não
houve diferença significativa entre os dois tipos de montagem e o encontrado na literatura
em termos de não-união e/ou infecção.[11]
[14]
Neste trabalho, evidenciou-se que a montagem com a utilização de pinos de Schanz é
uma técnica com alta taxa de consolidação e com baixo risco para infecção profunda,
de acordo com o que é encontrado na literatura.[15]
[16]
Por se tratar de um estudo retrospectivo, uma limitação importante foi a disparidade
entre as coortes estudadas, com predomínio das montagens simplificadas. Além disso,
a natureza do estudo determinou um número limitado de pacientes, com perda elevada
de seguimento. Desse modo, deve-se considerar a realização de novos estudos a fim
de minimizar o viés de seleção.
Conclusão
Visto não haver consenso atualmente quanto ao tipo ideal de montagem do fixador externo
circular no tratamento de fraturas graves do planalto tibial, e, associado a isso,
o objetivo de buscar cada vez mais tratamentos menos invasivos e agressivos biologicamente,
a montagem simplificada se torna uma opção viável e promissora.
Tendo em vista não haver diferenças estatísticas de resultados entre os grupos comparados,
sugerimos a técnica simplificada nos casos descritos neste trabalho. Além disso, novos
estudos podem trazer evidências mais robustas à esta técnica.