Introdução
As fraturas da cabeça femoral, descritas em 1869,[1 ] apesar da rara incidência (de 8% a 26%) em comparação com outras lesões proximais
ou articulares do quadril, apresentam grande importância clínica e científica pela
complexidade cirúrgica e predisposição ao desenvolvimento de disfunções graves.[2 ] De etiologia ligada a acidentes automobilísticos com impactos de alta energia, costumam
ser acompanhadas por deslocamentos posteriores do quadril (de 5% a 15%).[3 ]
[4 ] A abordagem conservadora de tratamento não apresenta bons resultados, sendo assim
a redução aberta com fixação interna a recomendação principal.[3 ]
[5 ] O planejamento cirúrgico depende da severidade da lesão, e inicialmente se orienta
pela classificação de Pipkin (de tipos I a IV)[1 ]
[2 ]
[3 ]
[4 ]
[5 ]
[6 ] ([Fig. 1 ]).[7 ]
Fig. 1 Classificação de Pipkin. (A ) Tipo I: fratura da cabeça femoral inferior à fóvea central. (B ) Tipo II: fratura estendida superiormente à fóvea central. (C ) Tipo III: qualquer fratura da cabeça do fêmur com fratura do colo do fêmur associada.
(D ) Tipo IV: qualquer fratura da cabeça femoral com fratura acetabular associada.[7 ]
As lesões do tipo II apresentam grande controvérsia em relação aos modelos de abordagem
e fixação, com escassa investigação científica.[2 ]
[3 ]
[8 ]
[9 ]
[10 ]
[11 ] Estudos anteriores (relatos de caso e análises retrospectivas) evidenciam resultados
favoráveis com a utilização de parafusos corticais de minifragmento (de 2.0 mm a 2.4 mm)[9 ] e parafusos de Herbert.[8 ]
[10 ] Por outro lado, apesar da sua diferenciada capacidade de compressão comparada a
outras sínteses e sua ampla utilização clínica, os parafusos canulados de 3 mm vêm
sendo associados a uma maior predisposição de desenvolver osteoartrite.[12 ]
A base científica para o planejamento e o planejamento cirúrgico da fratura tipo II
de Pipkin é composta por relatos de caso e estudos longitudinais. A falta de ensaios
mecânicos pautados em metodologias validadas dificulta a realização de uma sólida
medicina baseada em evidências, fato tangível pela sua baixa frequência. Pelo que
sabemos, a investigação biomecânica do tratamento de fraturas tipo II de Pipkin por
meio do método de elementos finitos (MEF) até o momento foi negligenciada. A possibilidade
de execução de estudos biomecânicos complexos, que permitem a visualização do desempenho
mecânico das sínteses e da fratura em análise, demonstra o potencial e explica a utilização
do MEF.[13 ]
[14 ]
Dessa forma, objetivamos avaliar a capacidade biomecânica de duas formas de fixação
de fraturas tipo II Pipkin (parafuso cortical de 3,5 mm e parafuso de Herbert), descrevendo
o desvio da fratura no sentido vertical, as tensões máxima e mínima principais, e
a tensão equivalente de Von Mises nas sínteses utilizadas. Este é o primeiro relatório
biomecânico por meio do MEF voltado à comparação de dois tratamentos para fraturas
tipo II de Pipkin.
Materiais e Métodos
Características Dimensionais e Técnica de Inserção dos Parafusos
O parafuso de Herbert foi formatado apresentando como maior diâmetro de suas roscas,
4,3 mm e 5,3 mm, distal e proximal, respectivamente, e em seu corpo (área sem rosca)
3,3 mm de diâmetro. Já o parafuso cortical de 3,5mm, respeitou criteriosamente as
semelhanças dimensionais por cada parte estrutural, disponível pela marca Depuy-Synthes
(Raynham, MA, Estados Unidos) ([Figs. 2C ] e [D ]).
Fig. 2 Condições e contornos dos ensaios. (A ) Vista frontal. (B ) Vista lateral de modelo com representação de fratura da cabeça femoral tipo II de
Pipkin e posicionamento durante o ensaio. Área verde na base do fêmur: ponto de fixação.
Área rosa na cabeça femoral: local de carregamento. (C ) Parafuso cortical de 3,5 mm. (D ) Parafuso de Herbert.
Análise pelo Método de Elementos Finitos
Para as análises, foram utilizadas imagens tomográficas de um fêmur sintético (Sawbones,
Vashon Island, WA, Estados Unidos, modelo 3403-103, de quarta geração, e de 10 libras
por pé cúbico) de tamanho médio do lado esquerdo.
No estudo pelo MEF, os materiais utilizados são divididos, de acordo com suas características,
em dúcteis e não dúcteis. Os materiais metálicos, por exemplo, as sínteses, pertencem
ao grupo dos dúcteis, e têm a tensão medida pelo ensaio de tensão equivalente de Von
Mises. Entretanto, a tensão equivalente de Von Mises não é aplicada para a análise
de ossos, visto que esses pertencem ao grupo dos materiais não dúcteis, sendo adequada
a utilização de tensões máximas e mínimas principais para sua avaliação.
Em seguida, descrevemos em detalhes as variáveis de análise da tensão equivalente
de Von Mises e das tensões máximas e mínimas principais.
Tensão equivalente de Von Mises: os materiais de características metálicas têm sua
tensão medida pelo ensaio de tensão equivalente de Von Mises, que consiste de uma
magnitude proporcional à energia de distorção usada em ensaios de falha de materiais
dúcteis em que é prevista a falha do material, independentemente do estado de tensão/deformação,
o que significa que as tensões de tração e de compressão são consideradas iguais.
Tensão máxima principal: para a sua análise, tem-se a força de tração composta por
carga que corresponde a tracionar o sólido, sendo que este tipo de força apresenta
valores positivos, sendo assim a força de tração composta por uma carga que pretende
esticar ou estender o sólido.
Tensão mínima principal: para a sua análise, tem-se a força de compressão composta
por carga que corresponde a comprimir o sólido, sendo que este tipo de força é representada
por valores negativos, de forma conceitual, apenas para informar o sentido contrário
de sua aplicação em relação a máxima principal.
Confecção do Biocad
Os modelos virtuais tridimensionais (3D) de cada sistema (osso, síntese) foram feitos
por meio do programa Rhinoceros (Robert McNeel & Associates, Seattle, WA, Estados
Unidos), versão 6, e a análise pelo MEF foi realizada no programa Altair SimLab (HyperWorks,
Troy, MI, Estados Unidos) utilizando o solver Altair Optistruct.
A partir dos modelos dos ossos sintéticos, foram obtidas imagens tomográficas do osso,
que foram arquivadas de acordo com o protocolo de comunicação de imagens digitais
em medicina (Digital Imaging and Communications in Medicine , DICOM, em inglês). Utilizou-se o tomógrafo de 16 canais Emotion (Siemens Healthineers,
Erlangen, Alemanha) com resolução de 512 × 512 e distância entre cortes de 1,0 mm.
O arquivo DICOM foi importado para o programa InVesalius(Software livre do Centro
de Tecnologia da Informação Renato Archer, Campinas, SP, Brasil) para a reconstrução
3D da estrutura anatômica. Com base em um conjunto de imagens bidimensionais obtidas
por meio de equipamentos da tomografia computadorizada, o programa permite que sejam
gerados modelos virtuais 3D das regiões de interesse ([Fig. 2 ]). Após a reconstrução 3D das imagens DICOM, o programa permite a geração de arquivos
3D no formato chamado stereo lithography ou standard triangle language (STL).
Conversão dos Arquivos
No InVesalius, foram importadas todas as fatias para a obtenção do arquivo STL com
as imagens que seriam usadas no processo de obtenção do sólido 3D, com isso tem a
opção da geração multiplanar que mostra a visão de imagens sagitais, coronais, axiais
e o volume. A partir do volume, é realizada a criação da superfície 3D, na qual se
podem selecionar as regiões de interesse por meio de máscaras e ou filtros, que fazem
com que o arquivo seja ocultado ou retratado de acordo com o algoritmo em questão,
gerando, assim, a superfície 3D.
Simulação
O MEF foi utilizado para as simulações da estabilidade das diferentes montagens. Primeiro,
os arquivos foram importados para o Altair Simlab, com identificação de cada parte
dos modelos digitais.
Propriedades dos Materiais
Para realizar as simulações, é necessário conhecer e definir as propriedades dos materiais
de cada uma das partes dos modelos digitais, sendo eles: osso cortical, osso trabecular
e liga de aço. As propriedades dos materiais utilizados para as simulações são: módulo
de elasticidade e coeficiente de Poisson ([Tabela 1 ]).
Tabela 1
Material
Propriedades
Módulo de elasticidade (MPa)
Coeficiente de Poisson (v)
Osso cortical
17
0,26
Osso trabecular
1,7
0,26
Sínteses (aço)
193
0,33
Condições de Contorno
Para definir as condições de contorno, foi aplicado um carregamento de 6.000 N na
região superior da cabeça femoral na direção do eixo Z. Não foram aplicados carregamentos
nos eixos X e Y. O carregamento foi realizado com o posicionamento de 20° de inclinação
posterior e 0° no eixo axial, mantendo-se os 10° fisiológicos de anteversão do colo
femoral. Posteriormente, foram delimitadas as regiões de restrição de movimentos (fixados),
marcados em todas as direções dos eixos X, Y, e Z, de deslocamento e rotação. Estas
restrições são para garantir que o sistema tenha um perfeito alinhamento, sem deslocamento
e/ou rotação ([Figs. 2A ] e [B ]).
Posteriormente ao controle de malhas de cada parte, deve-se sempre tomar o cuidado
de manter o tamanho do elemento, para não haver problemas de contato entre as diferentes
partes (fêmur e sínteses) nas simulações. O elemento adotado para formação das malhas
foi o tetraédrico. A quantidade de nós também foi definida.
Critérios de Análise
O deslocamento dos modelos e o deslocamento específico de cada fragmento foram analisados
pelo MEF. Para a análise das tensões nos materiais não dúcteis (osso e fratura), utilizamos
as variáveis tensão máxima principal (tração) e tensão mínima principal (compressão).
Para os materiais dúcteis (metálicos), analisou-se a tensão equivalente de Von Mises.
As variáveis tensões máxima e mínima principais e tensão equivalente de Von Mises
são princípios da matéria apresentados em forma de tensão. A unidade de medida da
tensão é o Pascal (Pa), e as forças de tensão são medidas nas unidades Mmegapascal
(MPA) e gigapascal (GPa).
Os resultados foram expressos em valores absolutos e percentis por meio da equação:
valor maior ×X = valor menor × 100 (regra de 3 simples), sendo o valor percentil final
igual a 100–X.
Resultados
Descrição do Deslocamento Vertical da Fratura com os Diferentes Modelos de Fixação
Os deslocamentos verticais avaliados foram de 1,5 mm e 0,5 mm para os modelos de fixação
com o uso do parafuso cortical de 3,5mm e do parafuso de Herbert, respectivamente
([Fig. 3 ]).
Fig. 3 Descrição do deslocamento vertical da fratura com os diferentes modelos de fixação.
(A ) Parafuso cortical de 3,5 mm (deslocamento: 1,5 mm). (B ) Parafuso de Herbert (deslocamento: 0,5 mm).
Observou-se que o parafuso de Herbert reduziu o deslocamento vertical em cerca de
66,6% comparado com o parafuso cortical de 3,5 mm nas fraturas da cabeça do fêmur
tipo II de Pipkin.
Distribuição das Tensões Máxima (Tração) e Mínima (Compressão) Principais nas Fraturas
com os Diferentes Modelos de Fixação
Os valores da tensão máxima principal obtidos na região superior do colo femoral adjacentes
à fratura foram de 9,7 KPa e de 1,3 KPa para os modelos de fixação com o uso do parafuso
cortical de 3,5mm e pdo arafuso de Herbert, respectivamente ([Figs. 4A ] e [B ]), o que representa uma redução de 87% da tensão local e uma melhor distribuição
com o parafuso de Herbert.
Fig. 4 Distribuição da tensão máxima principal nas fraturas com os diferentes modelos de
fixação. (A ) Parafuso cortical de 3,5 mm: 9,7 KPa. (B ) Parafuso de Herbert: 1,3 KPa. Distribuição da tensão mínima principal nas fraturas
com os diferentes modelos de fixação. (C ) Parafuso cortical de 3,5 mm: -8,7 KPa. (D ) Parafuso de Herbert: -9,3 KPa.
Os valores da tensão mínima principal obtidos na região inferior do colo femoral adjacente
à fratura foram de -8,7 KPa e de -9,3KPa para os modelos de fixação com o uso do parafuso
cortical de 3,5mm e do parafuso de Herbert, respectivamente ([Figs. 4C ] e [D ]), o que representa um incremento de 6,4% da tensão local com distribuição equiparável
com o parafuso de Herbert.
Distribuição do Pico de Tensão Equivalente de Von Mises nos Diferentes Modelos de
Fixação
Os valores do pico de tensão equivalente de Von Mises foram de 7,2GPa e de 2,0 GPa
para os modelos de fixação com o uso do parafuso cortical de 3,5 mm e do parafuso
de Herbert, respectivamente. A redução observada com o parafuso de Herbert foi de
aproximadamente 72,2%. Além disso, os modelos de síntese apresentaram sua maior área
de tensão na linha da fratura, local que representa uma maior preocupação na fratura
da síntese ([Fig. 5 ]).
Fig. 5 Distribuição do pico de tensão equivalente de Von Mises nos diferentes modelos de
fixação. (A ) Parafuso cortical de 3,5 mm: 7,2 GPa. (B ) Parafuso de Herbert: 2,0 GPa.
Discussão
Historicamente, as fraturas da cabeça do fêmur são associadas a resultados controversos
e dependentes da síntese utilizada. A fixação interna precisa garantir estabilidade,
preferencialmente com compressão entre o fragmento da fratura e o restante da cabeça
do fêmur.[3 ] Por se tratar de uma fratura rara, ensaios mecânicos experimentais ou computacionais
são extremamente importantes, pois viabilizam dados que auxiliam nos desfechos dos
pacientes. O MEF é comprovadamente uma metodologia eficiente para pesquisas biomecânicas
na área de fraturas ósseas.[14 ]
[15 ]
Assim, por meio do MEF, avaliamos o desvio da fratura no sentido vertical, as tensões
máxima e mínima principais, e a tensão equivalente de Von Mises de 2 sínteses amplamente
utilizadas (parafuso cortical de 3,5 mm e parafuso de Herbert) no tratamento da fratura
tipo II de Pipkin. Pelo que sabemos, este é o primeiro modelo de MEF em fratura tipo
II de Pipkin, e o primeiro estudo de comparação de tratamentos usando métodos biomecânicos.
Nossos resultados evidenciam a superioridade do parafuso de Herbert, que provoca diminuição
do deslocamento vertical, e distribuição da tensão máxima principal e do pico da tensão
equivalente de Von Mises.
A busca por sínteses que promovam fixação interna adequada, possibilitem a mobilização
precoce, e, assim, contribuam para bons resultados clínicos foi tema de pesquisas
clínicas anteriores, que apontam na mesma direção dos resultados biomecânicos do presente
estudo os efeitos positivos do parafuso de Herbet nas fraturas tipo II de Pipkin.
Em 1988, Murray et al.[10 ] realizaram uma redução aberta e fixação interna com parafuso de Herbert em uma fratura
osteocondral da cabeça femoral. Após doze meses, os resultados demonstraram excelente
função do quadril e nenhuma evidência radiográfica de necrose avascular. Mais recentemente,
Zaizi et al.[8 ] relataram bons resultados no tratamento da fratura tipo II de Pipkin II por meio
de redução anatômica e fixação interna com dois parafusos de Herbert após dois anos
de acompanhamento. Wang et al.,[11 ] em uma análise prospectiva de três pacientes tratados com parafusos de Herbert,
relataram resultados de função do quadril satisfatória, avaliada pela escala modificada
de Merle d'Aubigné.
Apesar das inúmeras dificuldades clínicas do tratamento de fraturas em articulações
de suporte de peso, a possibilidade de compressão inerente à característica das diferenças
das roscas (distal e proximal) do parafuso de Herbert, e que para isso tenha que ter
um maior diâmetro, em relação ao parafuso de 3.5mm, foi possível confirmar experimentalmente
o seu benefício biomecânico.[10 ] Além disso, nossos resultados sugerem que a capacidade de distribuição da tensão
e a diminuição do deslocamento da fratura são fatores relevantes para o entendimento
da efetividade mecânica do parafuso de Herbert. Um dos objetivos indiretos deste estudo
foi analisar qualitativamente a íntima relação entre o material de síntese e a estrutura
óssea utilizando a técnica de compressão interfragmentária. O contato íntimo do parafuso
de Herbert, devido à ausência da necessidade de túnel liso em sua técnica (diferente
do parafuso de 3,5 mm), parece ser uma hipótese para seus melhores resultados biomecânicos,
além de poder ser um diferencial na estabilidade da fratura na fase de reabsorção
dos bordos fraturados. Trabalhos futuros precisam melhorar a metodologia para fazer
uma avaliação e uma determinação mais precisas dessa hipótese clínica ([Fig. 6 ]).
Fig. 6 Análise qualitativa da relação entre o material de síntese e a estrutura óssea. (A ) Relação íntima/agarrada entre o parafuso de Herbert e a estrutura óssea. (B ) A necessidade de túnel liso na técnica de compressão interfragmentária com o parafuso
cortical de 3,5 mm não permite o mesmo grau de relação entre a síntese e a estrutura
óssea observado com o parafuso de Herbert.
Este é o primeiro trabalho a utilizar o MEF para comparar diferentes métodos de fixação,
analisando variáveis biomecânicas complexas (pico de tensão equivalente de Von Mises
e a distribuição de compressão e tração nas fraturas) em fraturas tipo II de Pipkin.
Este estudo tem algumas limitações que devem ser ressaltadas. A falta dos efeitos
de músculos e ligamentos na estabilidade da fratura, a qualidade óssea, e possíveis
diferenças individuais de gênero, etnia, idade e doenças prévias não foram levadas
em consideração durante as análises. Essas limitações devem ser avaliadas em manuscritos
clínicos futuros.