Palavras-chave
articulação do joelho - artrite - tuberculose osteoarticular
Introdução
A tuberculose é a doença infectocontagiosa causada pelo bacilo M. tuberculosis. É a maior causa de morte por um agente infeccioso único e uma das 10 principais
causas de morte no mundo.[1] O Brasil é apontado como endêmico e está entre os 30 países de alta carga para tuberculose
no mundo, sendo prioritário para o controle da doença.[1] A artrite é uma forma rara com incidência de 1 a 2% na população geral e na faixa
pediátrica.[2] Os aspectos clínicos-radiográficos são inespecíficos e a identificação do agente
etiológico complexa, tornando comum o diagnóstico tardio e aumentando as chances de
complicação.[2]
[3] Considerando a raridade da apresentação e a importância do diagnóstico precoce,
apresentamos este estudo observacional e descritivo do tipo relato de caso de tuberculose
articular do joelho. Houve consentimento dos responsáveis e aprovação em comitê de
ética.
Relato de caso
Um paciente do sexo masculino, com 10 meses de idade, acompanhado pelos pais, apresentou-se
à emergência ortopédica de um hospital terciário em 08/06/2018 com quadro de dor,
limitação de movimento e edema intermitente em joelho direito há 6 meses. Nesse período,
após investigação complementar, foi excluída artrite séptica e suspeitada causa reumatológica.
O calendário vacinal estava atualizado. Os familiares negaram história prévia de febre,
calafrios, tosse, perda de peso ou quaisquer sintomas respiratórios ou sistêmicos.
O paciente foi então encaminhado ao ambulatório de reumatologia. Mantinha-se apenas
com leve desconforto em joelho direito, episódios esporádicos trimestrais de edema
e limitação de movimento, sem outras queixas. Os marcadores reumatológicos eram negativos,
apenas discreto aumento da velocidade de hemossedimentação (VHS) e da proteína C-reativa
(PCR), conforme o [Quadro 1]. A ressonância magnética (RNM) do joelho direito de 24/01/2018 descreve importante
derrame articular, sinovite, linfonodomegalias em região posterior e edema de subcutâneo
na face anterior. Os [Quadros 2] e [3] descrevem a evolução radiográfica.
Quadro 1
Data
|
VHS
|
PCR
|
12/12/2017
|
33
|
0
|
14/12/2017
|
18
|
0
|
21/21/2017
|
60
|
43,92
|
01/02/2018
|
7
|
0,6
|
07/06/2018
|
30
|
9,2
|
11/12/2018
|
30
|
0,8
|
26/02/2019
|
15
|
0,4
|
07/06/2019
|
15
|
0,001
|
21/08/2019
|
10
|
0,001
|
09/10/2019
|
15
|
1,67
|
29/11/2019
|
13
|
0,25
|
28/01/2020
|
22
|
6,31
|
06/02/2020
|
55
|
11
|
27/02/2020
|
25
|
2,9
|
Quadro 2
Data
|
Ultrassonografia do joelho direito
|
09/12/2016
|
Moderado espessamento sinovial distendendo o recesso sinovial suprapatelar. Linfonodomegalia
na fossa poplítea.
|
12/12/2017
|
Derrame articular heterogêneo associado a espessamento sinovial. Linfonodomegalias
na fossa poplítea.
|
27/04/2018
|
Moderado derrame articular associado a espessamento sinovial, compatível com sinovite.
Linfonodos na fossa poplítea.
|
27/07/2019
|
Presença de derrame articular de pequenas/moderadas dimensões, associada a espessamento
sinovial, sem fluxo definido ao doppler.
|
Quadro 3
Data
|
Ressonância magnética do joelho direito
|
24/01/2018
|
Importante derrame articular, associado a exuberante espessamento sinovial com captação
de contraste, compatível com sinovite. Linfonodos na região posterior do joelho, maior
medindo 1,1 × 1,7 cm. Edema no tecido subcutâneo na face anterior do joelho.
|
17/02/2020
|
Volumoso derrame articular com extensa sinovite, associados a formações ovaladas envoltas
por alterações inflamatórias localizadas no aspecto posterior do joelho, em íntimo
contato com a cápsula articular, além de linfonodomegalias adjacentes e avançada tenossinovite
do poplíteo. Estes achados formam a favor de artrite séptica, porém não são específicos,
devendo ser considerada reativação de artrite idiopática juvenil no diagnóstico diferencial.
|
23/08/2021
|
Resolução completa do derrame articular e da sinovite em relação ao exame anterior.
Resolução da linfonodomegalia na fossa poplítea. Na zona de apoio de carga do côndilo
femoral lateral observa-se pequena alteração de sinal óssea subcondral, focal, de
aspecto inespecífico, e a critério clínico manter sob controle.
|
Diante desse contexto, artrite idiopática juvenil foi considerada provável. Iniciou-se
o tratamento imunossupressor com metotrexato, e foram realizadas infiltrações locais
com corticoide em períodos de exacerbação. Por 20 meses, a clínica manteve-se apesar
do aumento da dosagem e associação com ciclosporina. Pela recente disponibilidade,
foi realizado um teste cutâneo tuberculínico (PPD) dia 03/02/2020, com resultado positivo
(17 mm), iniciando a suspeita de tuberculose. Nenhum contato com tuberculose bacilífera
foi identificado. Na RNM de 17/02/2020, o paciente mantinha-se com derrame articular,
sinovite e linfonodomegalias, mas agora com formações ovaladas, vide [Fig. 1]. A biópsia aberta realizada em 10/03/2020 revelou tecido granulomatoso e a cultura
foi negativa; já o teste molecular GeneXpert identificou traços de DNA de M. tuberculosis. Iniciou-se esquema terapêutico com comprimidos dispersíveis preconizado pelo Ministério
da Saúde para crianças menores de 10 anos, completando 12 meses de isoniazida e rifampicina,
nos primeiros 2 meses acrescidos de pirazinamida. Após 2 meses do início do tratamento,
houve resolução sintomática, e a RNM de 23/08/2021 demonstrou melhora radiológica
das lesões, como mostra a [Fig. 2].
Fig. 1 Imagem de corte sagital da ressonância magnética do joelho direito (17/02/2020) em
T1 mostrando derrame articular, sinovite, linfonodos aumentados e formações ovaladas
em região posterior.
Fig. 2 Imagem de corte sagital da ressonância magnética do joelho direito (23/08/2021) em
T1 sem alterações, após esquema terapêutico para tuberculose.
Discussão
Este caso demonstra a importância de considerar a tuberculose como diagnóstico diferencial
das artrites, os desafios da identificação do agente etiológico, e a necessidade de
sua investigação precoce para evitar sequelas e deformidades graves.
O acometimento ocorre por invasão direta de M. tuberculosis no espaço articular associado a uma disseminação linfo-hematogênica decorrente de
uma infecção primária latente ou causado por reação inflamatória a algum foco extra-articular.[2] A clínica envolve episódios de dor, edema, diminuição da amplitude de movimento
articular que resolvem parcial ou completamente em semanas, sem manifestações sistêmicas.
O curso insidioso com sintomatologia intermitente torna a clínica indistinguível de
outras formas de artrites subagudas ou crônicas.[2]
[4]
Os achados laboratoriais resumem-se em discreto aumento de provas inflamatórias, como
a PCR e a VHS.[2] A ultrassonografia é utilizada para identificar derrame articular e auxiliar procedimentos
de coleta de material. Para análises mais detalhadas, a RNM é o exame de escolha,
podendo apontar lesões na medula óssea, derrame articular, sinovite, erosões ósseas
ou cartilaginosas e diminuição do espaço articular.[5] A progressão radiográfica sucede com osteopenia local, possível edema de partes
moles, evoluindo para uma ou mais áreas de erosão óssea e, por fim, diminuição do
espaço articular, com ou sem desorganização anatômica. Esta sequência relaciona-se
não só ao tempo de decorrência da doença, como também à resposta imunológica do paciente.[6]
Tendo em vista a limitação da clínica e dos exames complementares, quase sempre é
necessária uma punção aspirativa ou uma biópsia.[2]
[3]
[7] Tradicionalmente, a confirmação diagnóstica dá-se pela presença de granuloma caseoso
em análise histológica ou pela cultura positiva. A característica paucibacilar das
manifestações extrapulmonares, acesso difícil à lesão e a quantidade limitada de material
dificultam a identificação do bacilo pelos métodos clássicos. Testes que utilizam
a técnica da reação em cadeia da polimerase, como o teste rápido molecular têm demonstrado
grande eficiência diagnóstica, tanto pela rapidez quanto pela boa sensibilidade, independente
do material coletado.[7]
[8] A prova tuberculínica é positiva na maioria dos imunocompetentes com artrite tuberculosa.
Apesar de ser um exame simples, é essencial e deve constar no início da investigação
das artrites, principalmente em regiões endêmicas. No caso apresentado, a realização
tardia deste exame decorreu do desabastecimento do PPD utilizado para realização do
teste no período de 2014 a 2018.[9]
A maioria dos pacientes tem boa resposta à terapia medicamentosa quando precoce, sendo
as intervenções cirúrgicas reservadas aos quadros mais graves em que há diminuição
expressiva do espaço articular ou alteração anatômica importante. Em menores de 10
anos, o regime indicado atualmente é a terapia com 2 meses com isoniazida, rifampicina
e pirazinamida, seguidos da fase de manutenção de 10 meses com isoniazida e rifampicina
na formulação de comprimidos dispersíveis, melhorando a adesão ao tratamento.[10] A sintomatologia local tende a regredir completamente com 2 meses de tratamento
e a melhora radiográfica já é notável em cerca de 6 semanas.
A artrite do joelho é uma apresentação incomum da tuberculose extrapulmonar em lactentes,
que pelo quadro clínico e exames complementares inespecíficos, torna o diagnóstico
difícil e tardio na maioria dos casos. O tratamento não cirúrgico é eficaz nos estágios
iniciais da doença. Para evitar as complicações graves da doença, a tuberculose deve
ser considerada como diagnóstico diferencial de artrites a esclarecer e sua investigação
deve ser realizada precocemente.