Palavras-chave
residência médica - mentoria - ortopedia/educação - traumatologia/educação - excluir
Introdução
A mentoria é descrita como uma relação entre indivíduos na qual o mais experiente
auxilia no crescimento e desenvolvimento do menos experiente.[1]
[2] O termo mentoria remete à Grécia antiga: na Odisseia, de Homero, o herói Ulisses, ao partir para a Guerra de Troia, deixou seu filho Telêmaco
aos cuidados de seu amigo Mentor.[3] No contexto da residência médica, os preceptores, na condição de mentores, podem
ser determinantes na orientação de residentes, entendidos como mentorados, tanto em
aspectos profissionais quanto pessoais, pois auxiliam na formação do médico especialista.[4]
[5] A mentoria informal seria uma aproximação não planejada, muitas vezes por afinidade.
Segundo Cohen et al.,[5] o sucesso da mentoria depende do bom relacionamento entre as partes para garantir
uma troca de experiências, pois a aproximação gera benefícios mútuos.
A mentoria formal, um ciclo de reuniões estruturado com objetivos predeterminados,
é uma ferramenta muito utilizada na gestão de pessoas para o desenvolvimento de talentos.[6] Nos programas de residência médica (PRMs), é uma prática infrequente,[7] mas descrita com sucesso em alguns currículos de especialidades cirúrgicas.[8]
[9]
[10] Um estudo realizado pela American Academy of Orthopaedic Surgeons (AAOS) com integrantes
de PRMs de Ortopedia demonstrou que apenas 26% dos avaliados estavam formalmente matriculados
em um programa de mentoria, e que 95% indicaram que a mentoria deveria fazer parte
dos PRMs.[10]
Desde 2017, o programa de mentoria em dupla foi instituído no currículo do PRM em
Ortopedia e Traumatologia de nossa instituição, com objetivo de promover a aproximação
e a troca de experiências entre preceptores e residentes, em prol do desenvolvimento
dos residentes em aspectos da vida profissional e pessoal. O objetivo deste estudo
é, primariamente, demonstrar o grau de recomendação de mentores e mentorados quanto
à mentoria no PRM, e, secundariamente, avaliar o grau de satisfação dos participantes
e descrever as principais características das reuniões em dupla. A hipótese dos autores
é a de que o grau de recomendação da mentoria pelos participantes é alto.
Materiais e Métodos
Este manuscrito foi redigido segundo a declaração Strengthening the Reporting of Observational
Studies in Epidemiology (STROBE), que recomenda o que deve ser incluído em relatos
de estudos observacionais. Trata-se de um estudo primário, retrospectivo, analítico,
aprovado pelo comitê de ética e pesquisa envolvendo seres humanos (CEP) de nossa instituição
(CAAE: 40196220.4.0000.5133). Foram contabilizadas as respostas dos questionários
de avaliação anual do programa de mentoria da residência em Ortopedia e Traumatologia
de dezembro de 2017 a fevereiro de 2021. O programa de mentoria do PRM da instituição
é voluntário para preceptores e residentes. Cada residente escolhe anualmente um preceptor
para a realização de reuniões mensais entre eles (modelo de dupla) com discussões
de temas relevantes à formação do ortopedista. Após o ciclo anual de mentoria, oferece-se
aos participantes um questionário com perguntas para avaliar o grau de satisfação
com o programa, a contribuição do mentor/mentorado para as decisões de vida, as oportunidades
de rede de contato profissional, o apoio educacional, o crescimento pessoal com o
programa, e o grau de recomendação do programa, sendo este o desfecho primário do
estudo.[10] As respostas são graduadas de 1 a 5 para avaliar a influência e o nível de recomendação
do programa nos aspectos supracitados, sendo 1 a resposta correspondente a nenhuma
influência/recomendação e 5, a resposta correspondente a muita influência/forte recomendação.
Foram registrados também o local de realização das reuniões, o responsável pela escolha
do local, o número de reuniões realizadas, os motivos para a não realização das reuniões,
e os temas mais discutidos. As respostas dos questionários foram utilizadas após a
assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos participantes. Para
o presente estudo, não houve cálculo prévio de tamanho amostral, visto que o número
total de participantes da pesquisa corresponde ao número de participantes do programa
de mentoria de 2017 a 2021.
A análise descritiva foi realizada pelo cálculo das frequências absolutas (n) e relativas
(%) das variáveis qualitativas, e pela média e desvio-padrão das variáveis quantitativas.
Foi calculado o intervalo de confiança de 95% (IC95%) para a média das perguntas do
questionário de mentoria. Utilizou-se o teste de Wilcoxon para testar diferenças entre
mentorados e mentores em relação aos indicadores qualiquantitativos. Para testar a
relação entre variáveis, utilizou-se o teste de correlação de Spearman. As análises
foram feitas no programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (IBM
SPSS for Windows, IBM Corp., Armonk, NY, Estados Unidos), versão 20.0, sendo adotados
valores de p < 0,05 para a significância estatística.
Resultados
Foram obtidas 26 respostas dos mentorados e 26 respostas dos mentores ao questionário
entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2021. A média de idade dos mentorados foi de
27 (±1,5) anos, e variou de 24 a 30 anos, ao passo que a média de idade dos mentores
foi de 45 (±8,2) anos, e variou de 35 a 65 anos. Na opinião de mentorados e mentores,
ocorreram cerca de quatro a seis reuniões semanais, sendo a maioria delas realizadas
em algum restaurante ou bar, e os principais temas abordados foram: mercado de trabalho,
dificuldades na vida profissional como médico ortopedista, e escolhas/dificuldades
no período da residência ([Tabela 1]). Quanto aos motivos para a não realização das reuniões, observou-se que o mais
frequente foi a falta de espaço na agenda, seja pelo mentorado (61,5%) ou pelo mentor
(73,1%).
Tabela 1
Temas
|
Mentorados:
26 (%)
|
Mentores:
26 (%)
|
Número de reuniões semanais
|
1 a 3
|
(23,1%)
|
(23,1%)
|
4 a 6
|
(38,5%)
|
(42,5%)
|
7 a 9
|
(34,6%)
|
(23,1%)
|
10 a 12
|
(3,8%)
|
(11,5%)
|
Local das reuniões
|
Restaurante/bar
|
(65,4%)
|
(73,1%)
|
Hospital
|
(34,6%)
|
(30,8%)
|
Casa do mentor
|
(30,8%)
|
(30,8%)
|
Casa do mentorado
|
(11,5%)
|
(7,7%)
|
Temas das reuniões
|
Dificuldades na vida profissional como médico ortopedista
|
16 (61,5%)
|
18 (69,2%)
|
Escolhas/dificuldades no período da residência
|
12 (46,2%)
|
18 (69,2%)
|
Problemas pessoais do mentorado
|
2 (7,7%)
|
5 (19,2%)
|
Escolhas profissionais do mentor como ortopedista
|
11 (42,3%)
|
13 (50,0%)
|
Escolhas pessoais do mentor como ortopedista
|
5 (19,2%)
|
6 (23,1%)
|
Escolhas futuras do mentorado (R4)
|
9 (34,6%)
|
14 (53,8%)
|
Política
|
5 (19,2%)
|
6 (23,1%)
|
Desgaste laboral do médico
|
3 (11,5%)
|
4 (15,4%)
|
Mercado de trabalho
|
17 (65,4%)
|
18 (69,2%)
|
Na análise dos indicadores qualitativos do programa de mentoria, não houve diferença
significativa no grau de recomendação por mentorados e mentores (Z = −0,333; p = 0,74). O grau de recomendação dos participantes foi alto, de 96%, e aproximadamente
70% dos mentorados e mentores recomendam fortemente o programa ([Figura 1]). Não foi observada relação entre o grau de recomendação dado pelo mentorado e a
idade dos mentores (r = 0,03; p = 0,90; n = 26). Por outro lado, o grau de satisfação dos mentorados com o programa apresentou
relação positiva com sua idade (r = 0,36; p = 0,07; n = 26), o que sugere que o grau de satisfação dos mentorados aumenta com a idade,
embora isso não seja estatisticamente significativo.
Fig. 1 Grau de recomendação do programa de mentoria por mentorados (n = 26) e mentores (n = 26).
A maioria dos residentes (62%) informou estar altamente satisfeitos com o programa,
em comparação com 48% dos preceptores. Porém, sob o ponto de vista estatístico, não
houve diferença significativa no grau de satisfação de mentorados e mentores com o
programa (Z = −1.097; p = 0,27) ([Figura 2]).
Fig. 2 Grau de satisfação dos mentorados (n = 26) e mentores (n = 26) com o programa de mentoria.
Em relação à influência da mentoria nas escolhas de vida pessoal e/ou profissional,
a maioria dos mentorados informou que seus mentores tiveram alguma influência, sendo
que 3 em cada 10 informaram muita influência ([Figura 3]).
Fig. 3 Grau de contribuição do mentor para decisões de vida pessoal e/ou profissional do
mentorado (n = 26).
Observou-se que os mentorados atribuíram pontuações maiores, em comparação com a opinião
dos mentores ([Figura 4]), em relação à influência do mentor nas suas decisões de vida (4,2 versus 3,2, respectivamente; p < 0,001) e à oferta de oportunidades de rede de contato profissional (3,9 versus 3,2, respectivamente; p = 0,009). Já em relação ao apoio educacional (p = 0,06) e a quanto o programa contribuiu para o seu crescimento pessoal (p = 0,82), não houve diferenças significativas entre os grupos.
Fig. 4 Percepção da importância do programa de mentoria na opinião dos mentorados (barras
pretas) e dos mentores (barras cinzas). Legendas: F1: Em que medida seu mentor/mentorado
contribuiu para suas decisões de vida (profissional e/ou pessoal)? F2: Em que medida
seu mentor/mentorado lhe forneceu oportunidades de rede de contato profissional (trabalho,
especialização, fellow, pesquisa)? F3: Em que medida seu mentor/mentorado lhe ofereceu apoio educacional
(para estudar teoria, prática, cirurgia, pesquisa)? F4: Em que medida sua participação
no programa de mentoria contribuiu para o seu crescimento pessoal? Nota: *Diferença
estatisticamente significativa (p < 0,05) entre mentorados e mentores.
Discussão
A análise dos resultados confirmou a hipótese dos autores de que o grau de recomendação
do programa é alto entre os mentores e mentorados. O programa foi recomendado por
96% dos participantes, e aproximadamente 70% assinalaram uma forte recomendação. Tal
achado encontra concordância com dados da literatura: Flint et al.[10] descreveram recomendação de 95% dos médicos residentes quanto à utilização da mentoria
durante a residência médica.
Outros estudos avaliaram a satisfação dos residentes participantes de mentoria formal:
dados do departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia da Cabeça e Pescoço da University
of Alberta no Canadá demonstraram um nível de satisfação de 90% com o programa de
mentoria.[11] Além disso, 17% dos residentes de Ortopedia formalmente inscritos em um programa
de mentoria ficaram extremamente satisfeitos, ao passo que 28% mostraram-se um pouco
satisfeitos. O baixo índice de satisfação é justificado pelos autores[11] pela metodologia de designação de mentores a residentes, em detrimento da escolha
destes. Em nossa análise, os residentes escolheram os seus mentores e relataram um
alto grau de satisfação: 62% relataram estarem altamente satisfeitos, e 31%, com satisfação
relevante quanto à participação no programa.
Um mentor eficaz é uma pessoa experiente e com grande empatia, que orienta seu aprendiz
no desenvolvimento de suas próprias ideias, e nos seus crescimentos pessoal e profissional.[12] Nesta trajetória, os mentorados médicos esperam obter orientações sobre escolhas
na carreira médica e no mercado de trabalho.[13] Igualmente ao estudo realizado pela AAOS,[10] 89% dos residentes responderam que seus mentores contribuíram para tomadas de decisões
de vida pessoal ou profissional. Outro estudo sobre mentoria em residentes de cirurgia
geral demonstrou que 75% dos residentes relataram influência dos mentores na escolha
da especialidade.
O interesse do mentorado pela experiência dos mentores e a busca por orientações ficam
evidentes na análise dos temas mais discutidos nas reuniões, nas quais prevaleceram
os temas relacionados às dificuldades na vida profissional e no período da residência
médica, ao mercado de trabalho e às escolhas profissionais futuras do mentorado. Ainda
sobre os encontros, a análise dos dados demonstrou que se realizou uma mediana de
quatro a seis encontros, segundo percepção dos participantes, o que atesta a possibilidade
de implantação e manutenção da mentoria em PRM em Ortopedia e Traumatologia.
Este estudo tem limitações. As respostas foram obtidas de um único programa, o que
reduz a validação externa do método, e o pequeno tamanho amostral pode superestimar
os resultados. Há a perspectiva de analisar, sob os mesmos desfechos, a mentoria em
outros PRMs, bem como comparar as diferenças dos modelos de mentoria em dupla e em
grupo. Os autores acreditam que a difusão de programas de mentoria nas residências
médicas em Ortopedia favorece sobremaneira a formação profissional dos futuros especialistas
da área.
Conclusão
O programa de mentoria foi recomendado por 96% dos participantes. Os dados mostram
que a implantação da iniciativa dos encontros em dupla foi factível, e 89% dos mentorados
consideraram que os mentores contribuíram para a tomada de decisões pessoais e profissionais.