Palavras-chave
aprendizagem - ensino - exame físico - ortopedia
Introdução
Especialistas em ensino de todo o mundo enfrentam dificuldades em encontrar métodos
confiáveis para a avaliação do desempenho clínico de residentes.[1] A observação direta é uma boa ferramenta para analisar os residentes no local de
trabalho, permitindo a observação do que sabem e podem fazer. No entanto, embora docentes
e residentes trabalhem no mesmo local, a observação é tradicionalmente informal e
realizada de forma inconsistente em quase todas as especialidades médicas.[2]
Para incentivar as observações pelos docentes, o American Board of Internal Medicine propôs o Mini-Clinical Evaluation Exercise (Miniexercício de Avaliação Clínica, ou Mini-CEX, na sigla em inglês), uma avaliação
de observação direta de 10 a 20 minutos das habilidades clínicas dos residentes. A
avaliação ocorre durante as consultas médicas, e a interação entre o residente e o
paciente é observada; a seguir, o avaliador dá ao residente um feedback na forma de um texto de uma página que classifica habilidades como “competência clínica
geral” e “qualidades humanísticas/profissionalismo” e é assinado por ambos.[3]
Este método tem sido utilizado em especialidades como cardiologia,[4] anestesiologia,[5] pediatria,[6] medicina interna[7] e quiropraxia.[8] No entanto, não encontramos estudos sobre seu uso em ortopedia. Assim, nosso objetivo
foi avaliar o desempenho de residentes em ortopedia na realização de exames clínicos.
Métodos
Delineamento Experimental e Localização
Este é um estudo longitudinal prospectivo, realizado de janeiro a julho de 2016, em
dois programas de residência em ortopedia credenciados pelo Ministério da Educação
e reconhecidos pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia em uma capital
da região Centro-Oeste do Brasil.
Participantes
A amostragem foi não probabilística. Residentes pós-graduandos em ortopedia do primeiro
(R1), segundo (R2) e terceiro anos (R3) dos dois programas de residência que concordaram
em participar do estudo foram incluídos e assinaram o termo de consentimento livre
e esclarecido. Os residentes de (i) serviços não credenciados pela Sociedade Brasileira
de Ortopedia ou (ii) estagiários de subespecialidades ortopédicas (R4), como cirurgia
de coluna, joelho, ombro, e pé e tornozelo, foram excluídos do estudo.
Coleta de Dados
O Mini-CEX foi aplicado por três docentes de ortopedia dos respectivos hospitais.
Estes profissionais foram treinados para o uso do Mini-CEX pelo pesquisador principal
por meio de materiais didáticos e discussões, com padronização dos descritores do
instrumento. O Mini-CEX foi utilizado durante as interações individuais entre residentes
e pacientes nos setores de pronto-atendimento, enfermaria e ambulatório. Sua aplicação
ocorreu em datas formalmente agendadas pelos avaliadores para assegurar que todos
os residentes fossem analisados no mesmo dia em seus respectivos locais de trabalho.
Cada residente foi avaliado em quatro momentos diferentes, com intervalo de pelo menos
30 dias entre as avaliações.
Instrumento Utilizado
O Mini-CEX, criado pelo American Board of Internal Medicine, apresenta seis habilidades clínicas: (i) anamnese (histórico clínico); (ii) exame
físico, (iii) qualidade humanística/profissionalismo; (iv) julgamento clínico; (v)
habilidades de aconselhamento (comunicação e orientação); e (vi) organização/eficiência.
O instrumento foi adaptado pelos autores para uso em ortopedia, com o desenvolvimento
de descritores para cada habilidade avaliada. O processo de adaptação do instrumento
ocorreu em encontros específicos de quatro docentes com mais de 10 anos de participação
no programa de residência em ortopedia e dois chefes de residência desta especialidade.
Após cinco encontros com duração média de 120 minutos, o instrumento foi adaptado
e definido de forma que cada habilidade tivesse 9 descritores. Se o objetivo do respectivo
descritor fosse alcançado, o residente recebia um ponto, respeitando o máximo de nove
pontos do original. A escala de pontuação foi dividida em 1 a 3 (insatisfatória),
4 a 6 (satisfatória) e 7 a 9 (excelente). Os descritores foram desenvolvidos de acordo
com a metodologia utilizada por Abadie et al.[6]
Desfecho
A variável dependente foi o desempenho dos residentes de ortopedia no exame físico
segundo a avaliação com o instrumento Mini-CEX.
Variáveis Independentes
As seguintes variáveis foram utilizadas: idade (em anos vividos), sexo (masculino/feminino),
e ano de residência (R1/R2/R3).
Disponibilidade de Dados e Materiais
Os conjuntos de dados usados e analisados nesse estudo podem ser disponibilizados
pelo autor correspondente mediante solicitação razoável.
Análise de Dados
Os dados foram registrados em planilhas Microsoft Excel (Microsoft Corp., Redmond,
WA, EUA) e as análises estatísticas foram realizadas usando o programa IBM SPSS Statistics
for Windows, versão 23.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). As variáveis quantitativas
foram apresentadas como média e desvio-padrão. O coeficiente α de Cronbach total foi
calculado em cada escala para avaliação da validade interna do instrumento Mini-CEX.
A normalidade foi determinada pelo teste de Shapiro-Wilk. Estatísticas não paramétricas
foram aplicadas em dados sem distribuição normal. A evolução dos residentes (R1, R2
e R3) ao longo do estudo foi apurada por meio do teste de Friedman seguido de análise
de múltiplas comparações posthoc. A probabilidade de rejeição da hipótese de nulidade foi de 5%.
Resultados
O número total de residentes foi de 33, dos quais 12 foram excluídos, 3 por serem
R4 e 9 por não serem credenciados. Assim, a amostra final foi composta por 21 residentes,
7 em cada ano de residência, e todos do sexo masculino. A média de idade de R1 foi
de 25,86 anos ( ± 2,27), R2, 27,50 anos ( ± 1,74), e R3, 27,14 (±1,97) anos.
O coeficiente α de Cronbach total foi de 0,88 quando consideradas todas as habilidades
do instrumento Mini-CEX, com intervalo de confiança (IC) de 95% entre 0,79 e 0,94.
As habilidades “julgamento clínico” e “anamnese” foram as que apresentaram os maiores
valores, de 0,83 (IC, 0,67–0,92) e 0,76 (IC, 0,52–0,89), respectivamente.
A [Tabela 1] mostra as avaliações gerais pelo Mini-CEX do desempenho dos residentes durante os
exames clínicos nos quatro encontros. A comparação das pontuações das primeiras avaliações
com as das últimas mostrou a melhora significativa de todas as habilidades clínicas.
Tabela 1
Competência
|
Encontros (média ± desvio-padrão)
|
p
[*]
|
Primeiro
|
Segundo
|
Terceiro
|
Quarto
|
Exame físico
|
2,67 ± 1,02d
|
3,71 ± 0,96c
|
5,86 ± 0,96b
|
6,57 ± 1,25a
|
< 0,001
|
Habilidade à anamnese
|
2,86 ± 1,39d
|
3,95 ± 1,02c
|
6,00 ± 0,95b
|
7,00 ± 0,89a
|
< 0,001
|
Julgamento clínico
|
4,19 ± 1,33c
|
4,90 ± 0,83c
|
6,57 ± 1,16b
|
7,38 ± 0,86a
|
< 0,001
|
Qualidade humanística
|
4,14 ± 1,24c
|
5,19 ± 1,03b
|
6,14 ± 1,11a
|
6,76 ± 1,04a
|
< 0,001
|
A [Tabela 2] mostra as pontuações médias obtidas nas 4 avaliações dos 21 residentes conforme
o ano de residência (R1, R2, R3) e as habilidades. Os resultados revelam melhora no
desempenho dos residentes R1, R2 e R3 em todas as habilidades avaliadas do primeiro
ao quarto encontro.
Tabela 2
Competência
|
[A*]
|
Primeiro encontro
|
Segundo encontro
|
Terceiro encontro
|
Quarto encontro
|
p
[**]
|
Exame físico
|
R1
|
1,86 ± 1,07d
|
3,00 ± 0,58c
|
4,86 ± 0,90b
|
6,29 ± 0,49a
|
< 0,001
|
R2
|
3,17 ± 0,75b
|
3,67 ± 1,21b
|
6,33 ± 0,52a
|
6,83 ± 0,75a
|
0,001
|
R3
|
3,00 ± 0,76b
|
4,38 ± 0,52b
|
6,38 ± 0,52a
|
6,63 ± 1,92a
|
0,001
|
Habilidade à anamnese
|
R1
|
1,43 ± 1,13c
|
3,00 ± 0,58c
|
5,14 ± 1,07b
|
6,29 ± 0,49a
|
0,001
|
R2
|
3,50 ± 0,84c,b
|
4,50 ± 1,22b
|
6,17 ± 0,41a
|
7,00 ± 0,89a
|
< 0,001
|
R3
|
3,63 ± 0,92c
|
4,38 ± 0,52c
|
6,63 ± 0,52b
|
7,63 ± 0,74a
|
0,001
|
Julgamento clínico
|
R1
|
2,86 ± 1,07c
|
4,29 ± 0,49c
|
5,57 ± 1,13a
|
6,57 ± 0,53a
|
0,001
|
R2
|
4,67 ± 1,03c
|
5,33 ± 0,82c
|
6,67 ± 0,82b
|
7,83 ± 0,75a
|
0,001
|
R3
|
5,00 ± 0,76b
|
5,13 ± 0,83b
|
7,38 ± 0,74a
|
7,75 ± 0,71a
|
< 0,001
|
Qualidade humanística
|
R1
|
3,71 ± 1,11b
|
4,86 ± 1,21b
|
5,71 ± 1,11a
|
6,71 ± 1,11a
|
0,001
|
R2
|
4,17 ± 1,47b
|
5,00 ± 1,26b
|
6,00 ± 1,10a
|
6,33 ± 0,52a
|
0,002
|
R3
|
4,50 ± 1,20d
|
5,63 ± 0,52c
|
6,63 ± 1,06b
|
7,13 ± 1,25a
|
< 0,001
|
Discussão
A comparação das pontuações médias do Mini-CEX dos quatro encontros mostrou a melhora
significativa no desempenho dos residentes durante as avaliações. É interessante notar
que esses dados contrastam com a literatura. Uma revisão sistemática de 119 artigos
sobre as ferramentas de avaliação e observação direta de habilidades clínicas, utilizando
o mesmo instrumento, mostrou que não houve melhora nas habilidades clínicas e no atendimento
de pacientes.[9]
Um outro estudo publicado em Pediatrics, utilizou o Mini-CEX em 4 a 6 avaliações de 23 residentes ao longo de um ano. Nesse
estudo, a habilidade clínica com maior melhora foi o item “qualidades humanísticas/profissionalismo”,
enquanto a habilidade com menor melhora foi o exame físico.[10] Isso corrobora parcialmente nossos achados, pois indica uma progressão geral ao
longo da avaliação; por ouro lado, difere de nossos em relação à habilidade de exame
físico dos residentes, uma vez que observamos melhora significativa nesse quesito:
as pontuações aumentaram de 2,67 no primeiro encontro para 6,57 (p < 0,001) no último encontro. O exame físico e a anamnese foram as habilidades que
observamos melhorar ao longo das avaliações. Isso pode ser explicado por diferenças
nos estilos de feedback e foco (em nosso estudo, houve mais feedback em relação ao exame físico) entre os diferentes trabalhos com Mini-CEX.
Outras especialidades médicas também apresentaram resultados satisfatórios em relação
às habilidades do exame físico. Em outro estudo com residentes de pediatria, a média
dessa habilidade foi 6,1.[6] Resultados semelhantes foram encontrados em 108 residentes de cardiologia, com média
de 7,1, 7,5, 7,5 e 8,0 para residentes R1, R2, R3 e R4, respectivamente.[4]
Nosso estudo mostra que a pontuação média das habilidades do exame físico de R1s no
primeiro encontro foi a menor encontrada. Isso pode ser atribuído à relativa inexperiência
dos R1s na especialidade, menor tempo nas aulas teórico-práticas e menor observação
dos supervisores em suas consultas. Além disso, a primeira avaliação aconteceu logo
após o ingresso dos R1s na especialidade de ortopedia, quando estavam munidos apenas
dos conhecimentos adquiridos na graduação; isso sugere a falta de ensino da especialidade
durante o curso de medicina e a necessidade de corrigir essa lacuna durante a residência
médica
Os residentes apresentaram melhora em suas habilidades clínicas durante as avaliações
seriadas; entretanto, os R2s e R3s não evoluíram da terceira para a quarta avaliação
na área de habilidades do exame físico, provavelmente por estarem há mais tempo na
especialidade e já terem alcançado maiores habilidades e pontuações satisfatórias
nesse período.
É importante que os residentes ortopédicos tenham bom desempenho, principalmente no
exame físico. Para isso, os docentes precisam utilizar os melhores recursos didáticos
possíveis. O ensino é mais eficaz quando os residentes participam física e mentalmente—ou
seja, de forma direta—no atendimento ao paciente e são incentivados a fazer anotações
enquanto estudam, em especial sobre perguntas relevantes a serem feitas aos supervisores
e/ou pacientes.[11] Outra maneira de melhorar o desempenho dos residentes é focar em sua “zona de desenvolvimento”—ou
seja, começar do ponto exato de suas lacunas ou equívocos, em vez de ensinar o que
já se sabe. Assim, é fundamental identificar os limites do conhecimento dos residentes.[11]
O ensino do exame físico ortopédico é um desafio. Há diversas variáveis nesse processo,
como a habilidade clínica do supervisor, a disposição do paciente em ser avaliado
em grupo como exemplo ilustrativo dos sinais ao exame físico e os interesses dos residentes.
A melhor estratégia para ensinar essa habilidade é ter um supervisor com excelentes
habilidades e forte aptidão didática. Atribuir essa função a alguém sem uma dessas
habilidades apenas perpetuaria os maus hábitos dos residentes.
Outra estratégia eficaz para alcançar um aumento quantitativo da habilidade é ensinar
o exame físico ortopédico à beira do leito. Esta talvez seja uma das melhores estratégias
para melhorar a qualidade do exame físico. Esse cenário de aprendizagem era rotina
na década de 1960, mas tornou-se pouco frequente nos anos 1990.[12] As habilidades do exame físico não podem ser bem ensinadas em aulas teóricas sem
a presença de um paciente, real ou não.[9]
Este estudo torna-se relevante no contexto de carência de pesquisas nesta área. Mostramos
a evolução positiva do desempenho da residência com o Mini-CEX, já que não encontramos
estudos semelhantes relacionados à ortopedia. Nossos achados contribuem para o conhecimento
neste assunto, com especial significado para nossa população-alvo. Realizamos um estudo
longitudinal e prospectivo, sem viés de memória, o que deu maior credibilidade aos
dados obtidos. Outro ponto forte do estudo é o instrumento de avaliação escolhido.
O Mini-CEX foi concebido com base em situações reais (e assim é utilizado) para ser
uma ferramenta abrangente, porém simplificada, de avaliação de habilidades clínicas;
logo, é um instrumento diferenciador. O Mini-CEX também possibilita avaliações em
diferentes cenários e com vários níveis de complexidade.[3]
Como não houve cálculo amostral prévio dos sujeitos a serem avaliados, a amostra final
não probabilística foi considerada pequena, proveniente de apenas dois hospitais.
Estatisticamente, os procedimentos não aleatórios de seleção podem não assegurar a
representatividade; por isso, nossos achados não devem ser generalizados para uma
população mais ampla. Apesar da necessidade de novos estudos sobre a validade e viabilidade
do Mini-CEX em língua portuguesa, demonstramos que o instrumento testado possui alta
confiabilidade e consistência interna.
Conclusão
Este estudo constatou que o desempenho dos residentes em ortopedia e traumatologia
durante os exames clínicos melhorou de forma progressiva em todas as habilidades,
independente do ano de residência. A pesquisa favorece o desenvolvimento de outros
estudos para ampliar a compreensão do fenômeno estudado ou confirmar empiricamente
os resultados obtidos.