Palavras-chave
tumores de células gigantes/diagnóstico - tumores de células gigantes/classificação
- neoplasias ósseas
Introdução
O tumor de células gigantes (TCG) é uma neoplasia óssea benigna e agressiva, de comportamento
biológico incerto, constituído histologicamente por células gigantes multinucleadas
dispersas pelo tecido tumoral, cujo núcleo apresenta as mesmas características do
das células ovoides e fusiformes que formam o seu estroma.[1]
A graduação anatomopatológica é dada pelo seu estroma, e não pelas células gigantes,
que podem estar presentes também em outras lesões tumorais e pseudotumorais como o
tumor marrom do hiperparatireoidismo, o cisto ósseo aneurismático, o condroblastoma
epifisário, o osteoblastoma, e o fibroma não osteogênico.[1]
Ocorre em cerca de 5% dos tumores ósseos primários e em aproximadamente 15% dos tumores
benignos.[2]
Acomete preferencialmente indivíduos entre a terceira e quarta décadas de vida, com
discreto predomínio no sexo feminino, e localizam-se principalmente na região epifisária
dos ossos longos, especialmente nas extremidades distal do fêmur, proximal da tíbia,
e distal do rádio.[3]
A classificação mais utilizada é a de Campanacci, na qual os TCGs são divididos em
três graus, levando em conta o seu comportamento biológico, o aspecto radiográfico,
e o grau de destruição óssea.[3]
As características lítica, insuflativa, metafisária e agressiva do TCG podem ser observadas
com nitidez na radiografia do rádio distal apresentada na [Figura 1], retirada do manual de Ribeiro.[4]
Fig. 1 Radiografia em incidência anteroposterior do punho que mostra imagem lítica na região
metafisária distal do rádio. Diagnóstico tumor de células gigantes. Caso do ambulatório
de Oncologia Ortopédica. Extraída de Ribeiro.[4]
O tratamento é cirúrgico na maioria dos casos, e tem como objetivos a completa ressecção
tumoral, com preservação da arquitetura óssea e da função articular. O defeito criado
é corrigido com técnicas como autoenxertia, homoenxertia, artrodese, endopróteses
não convencionais, e preenchimento da cavidade com cimento ósseo.[5]
Os pacientes diagnosticados com TCG submetidos a procedimento cirúrgico devem ser
acompanhados em longo prazo, visto que a maioria das recidivas locais e das metástases
pulmonares ocorre no prazo de três anos, mas existem relatos de ocorrência vinte anos
depois.[5]
Diante do exposto e apesar de se tratar de uma doença conhecida e discutida há bastante
tempo, nota-se uma carência de dados clínicos e epidemiológicos sobre este tipo específico
de tumor em termos da casuística regional piauiense. Desse modo, o estudo tem como
objetivos avaliar o tratamento de pacientes com diagnóstico de TCG ósseo atendidos
entre 2009 e 2019 em um hospital filantrópico, bem como determinar o perfil clínico
e epidemiológico regional, visando enriquecer os dados nacionais e comparar os achados
com os da literatura existente, para que possamos verificar se os critérios empregados
em nosso serviço, bem como os resultados desta pesquisa, estão ou não de acordo com
outros protocolos.
Casuística e Métodos
O estudo caracteriza-se como analítico, observacional e transversal, com coleta retrospectiva
e abordagem quantitativa, não havendo interferência do pesquisador. A coleta foi realizada
a partir da avaliação dos prontuários do Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME)
de um hospital filantrópico referentes a 49 pacientes diagnosticados com TCG atendidos
entre 2009 e 2019. Foram colhidas informações relacionadas ao gênero do paciente,
idade, classificação de Campanacci, local anatômico do tumor, presença de metástase
pulmonar, presença de fratura patológica secundária ao tumor, tipo de cirurgia, tipo
de preenchimento da cavidade, tratamentos adjuvantes, índice de recidiva, e uso prévio
da medicação denosumabe.
Os dados foram inseridos em planilhas do programa Microsoft Excel (Microsoft Corp.,
Redmond, WA, Estados Unidos), e foram posteriormente exportados e analisados no programa
estatístico R (R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria), versão 4.0.3.
A amostra foi caraterizada segundo variáveis sociodemográficas e epidemiológicas em
tabelas de contingência. As variáveis qualitativas foram expressas por meio de frequências
absolutas e relativas percentuais, e as variáveis quantitativas, por meio da média ± desvio
padrão.
Na análise bivariada, a verificação da hipótese de associação entre a recidiva, as
variáveis clínicas, e a modalidade cirúrgica foi realizada pelo teste exato de Fisher.
Foram adotados o nível de significância de 5% e hipóteses bilaterais nos testes aplicados.
Os procedimentos descritos seguiram os princípios éticos em pesquisa conforme a resolução
no 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que garante confidencialidade, anonimato, e
a não utilização das informações em prejuízo dos outros, sendo os dados obtidos empregados
somente para os fins previstos nesta pesquisa. A participação na pesquisa somente
foi concretizada após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), que continha todas as informações pertinentes ao estudo. O projeto foi submetido
ao Comitê deÉtica em Pesquisa da nossa instituição e aprovado sob o parecer de n°
4.362.505 e o registro de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE)
n° 36501420.5.0000.5214.
Para a eletrofulguração, usamos a potência de 80 no modo coagulação (COAG) como rotina
empregada no serviço.
Para pacientes que fizeram uso de denosumabe, adotamos o protocolo de 120 mg em dia
0/dia 15/dia 30 (D0/D15/D30) como “dose de ataque”, e observamos por radiografia se
houve melhora local segundo os critérios de alívio da dor, surgimento de calcificações/neoformação
cortical, e ganho de amplitude de movimento. Nos casos com baixa resposta ao protocolo
inicial, doses mensais de 120 mg com controles laboratorial e radiográfico foram administradas
até chegarmos às condições ideais de cirurgia, visto que todos os pacientes teriam
de ser operados.
Resultados
No período de 2009 a 2019, foram obtidos 49 prontuários de pacientes diagnosticados
com TCG em um hospital filantrópico, assim como dados referentes a variáveis clínicas
e sociodemográficas ([Tabela 1]), modalidade terapêutica ([Tabela 2]), e análise das recidivas ([Tabelas 3] e [4]).
Tabela 1
Variáveis
|
N
|
%
|
Gênero
|
|
|
Masculino
|
22
|
44,9
|
Feminino
|
27
|
55,1
|
Idade
|
|
|
< 20 anos
|
1
|
2,0
|
De 20 a 39 anos
|
26
|
53,1
|
De 40 a 60 anos
|
18
|
36,7
|
> 60 anos
|
4
|
8,2
|
Classificação de Campanacci
|
|
|
Grau I
|
0
|
0
|
Grau II
|
15
|
30,6
|
Grau III
|
34
|
69,4
|
Local anatômico do tumor
|
|
|
Segmento distal do fêmur
|
10
|
20,4
|
Segmento proximal do fêmur
|
2
|
4,1
|
Fíbula
|
3
|
6,1
|
Segmento distal do úmero
|
2
|
4,1
|
Segmento proximal da tíbia
|
15
|
30,6
|
Segmento distal da tíbia
|
1
|
2
|
Segmento distal do rádio
|
6
|
12,2
|
Metacarpo
|
2
|
4,1
|
Segmento proximal do úmero
|
3
|
6,1
|
Carpo
|
1
|
2
|
Terceiro quirodáctilo direito
|
1
|
2
|
Quarto quirodáctilo direito
|
3
|
6,1
|
Fratura patológica secundária
ao tumor
|
|
|
Sim
|
1
|
2,0
|
Não
|
48
|
98,0
|
Metástase pulmonar
|
|
|
Sim
|
2
|
4,1
|
Não
|
47
|
95,9
|
Tabela 2
Variáveis
|
N
|
%
|
Tipo de cirurgia
|
|
Intralesional
|
34
|
69,4
|
Grau II
|
15
|
30,6
|
Grau III
|
19
|
38,8
|
Marginal
|
13
|
26,5
|
Grau II
|
0
|
0
|
Grau III
|
13
|
26,5
|
Amputação
|
2
|
4,1
|
Grau II
|
0
|
0
|
Grau III
|
2
|
4,1
|
Tipo de preenchimento da cavidade
|
|
|
Cimento para osso
|
34
|
69,4
|
Sem preenchimento
|
15
|
30,6
|
Adjuvância
|
|
|
Eletrofulguração
|
34
|
69,4
|
Nenhuma
|
15
|
30,6
|
Uso de denosumabe
|
|
|
Sim
|
8
|
16,3
|
Não
|
41
|
83,7
|
Indicação de denosumabe
|
|
|
Citorredução para facilitar a cirurgia
|
8
|
100%
|
Tabela 3
Número
|
Idade (anos)
|
Gênero
|
Tempo até a recidiva (meses)
|
Classificação de Campanacci
|
Adjuvância
|
Tipo de cirurgia
|
Uso de denosumabe
|
Localização do tumor
|
1
|
34
|
Masculino
|
14
|
Grau III
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Segmento proximal da tíbia
|
2
|
33
|
Feminino
|
44
|
Grau III
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Segmento distal do fêmur
|
3
|
28
|
Masculino
|
50
|
Grau II
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Segmento distal do fêmur
|
4
|
51
|
Feminino
|
38
|
Grau III
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Segmento proximal da tíbia
|
5
|
31
|
Masculino
|
7
|
Grau III
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Segmento proximal do úmero
|
6
|
49
|
Masculino
|
21
|
Grau III
|
Não
|
Marginal
|
Não
|
Segmento proximal da tíbia
|
7
|
47
|
Masculino
|
6
|
Grau II
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Não
|
Fíbula
|
8
|
52
|
Feminino
|
14
|
Grau III
|
Fulguração
|
Intralesional
|
Sim
|
Segmento proximal da tíbia
|
Tabela 4
Variáveis
|
Recidiva
|
Total
|
Valor de p
|
Sim – n (%)
|
Não – n (%)
|
Gênero
|
|
|
|
|
Masculino
|
5 (22,7)
|
17 (77,3)
|
22
|
0,440a
|
Feminino
|
3 (11,1)
|
24 (88,9)
|
27
|
Classificação de Campanacci
|
|
|
|
|
Grau II
|
2 (13,3)
|
13 (86,7)
|
15
|
1a
|
Grau III
|
6 (17,6)
|
28 (82,4)
|
34
|
Tipo de cirurgia
|
|
|
|
|
Intralesional
|
7 (20,6)
|
27 (79,4)
|
34
|
0,406a
|
Marginal
|
1 (6,7)
|
14 (93,3)
|
15
|
Local
|
|
|
|
|
Segmento proximal da tíbia
|
4 (26,7)
|
11 (73,3)
|
15
|
0,227a
|
Outros
|
4 (11,8)
|
30 (88,2)
|
34
|
Discussão
O perfil epidemiológico seguiu o mesmo padrão descrito na literatura.
Os pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico do tipo intralesional receberam
adjuvância intraoperatória com eletrofulguração, e tiveram a cavidade preenchida com
metilmetacrilato. Diversos outros serviços usam a técnica descrita por Camargo et
al.[1] em 1972, que, em nosso serviço, chamamos de “Técnica de Camargo”, em menção ao idealizador.
A classificação de Campanacci orientou a escolha local do tratamento conforme o estudo
de De Carvalho Diniz Ferraz et al.[6]
Todos os pacientes classificados como grau II foram submetidos à cirurgia do tipo
intralesional associada a eletrofulguração e preenchimento da cavidade com metilmetacrilato.
Entre os classificados como grau III (34 pacientes), 13 realizaram o procedimento
do tipo marginal; em 2 pacientes, optou-se por amputação do membro, ao passo que 19
pacientes foram submetidos a ressecção intralesional, seguida de eletrofulguração
e preenchimento da cavidade com metilmetacrilato. Trata-se do protocolo atual do Serviço
de Ortopedia do hospital no qual a pesquisa foi realizada, e está de acordo com Klenke
et al.[7] A maioria dos cirurgiões utiliza a ressecção intralesional para as lesões de graus
I e II de Campanacci, ao passo que, para lesões de grau III, utiliza-se ressecção
em bloco seguida de reconstrução. Talvez o tipo de ressecção usada em nossos casos
tenha sido mais suscetível à recidiva, o que justificou a necessidade de uma abordagem
mais agressiva para os casos de grau III.
O tipo de cirurgia que apresentou a maior porcentagem de recidivas foi a do tipo intralesional,
com sete pacientes, e apenas um paciente submetido à cirurgia do tipo marginal teve
recidiva. O local anatômico com maior índice de recidivas foi a extremidade proximal
da tíbia, com quatro pacientes. Analisando a [Tabela 4], pode-se observar que não houve associações estatisticamente significantes entre
as variáveis e a presença de recidivas (p > 0,05). Identificou-se um índice de recidivas de 16,3%, com um tempo médio de 24,2
meses após o procedimento cirúrgico, e desvio padrão de 17,4 meses, o que corrobora
o estudo realizado por Manaster e Doyle,[8] no qual a recorrência local do TCG foi observada nos 3 primeiros anos após o tratamento,
sendo demonstrados índices de até 25% de recidiva local em grandes séries de pacientes
com avaliações após o tratamento. Dos 14 pacientes tratados entre 2017 e 2019, 3 apresentaram
recidivas até o presente momento, e os demais ainda estão no período citado de risco
aumentado para recidivas precoces. Em estudos futuros daremos seguimento a isso.
Relacionando a modalidade de tratamento escolhida com o índice de recidivas, verificou-se
que houve maior prevalência em pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico do tipo
intralesional (7 dos 34 pacientes), em comparação com aqueles submetidos a cirurgia
marginal e amputação (1 dos 15 pacientes). Esses dados estão em consonância com os
encontrados por Reckling et al.[9] e Mcgrath,[10] em que a incidência de recidiva do TCG esteve relacionada com a escolha do tratamento
realizado, sendo maior naqueles submetidos a curetagem associada ou não a enxertia
óssea, sendo o índice de recidiva significativamente menor quando o tratamento foi
por ressecção segmentar.
O uso pré-operatório de denosumabe foi indicado em oito pacientes visando citorredução
do tumor para facilitar a cirurgia, e tivemos boa resposta. Em casos de TCG em estágio
avançado, pode ser utilizado no pré-operatório o anticorpo monoclonal humano denosumabe,
para prevenção da osteólise observada nesse tipo de tumor, o que cria as condições
cirúrgicas necessárias para uma cirurgia mais conservadora.[11] O protocolo utilizado para a dose inicial foi de 3 aplicações de 120 mg com intervalo
de 15 dias, com controle clínico, laboratorial, e reavaliação radiográfica no final.
Em todos os casos, apesar de poucos, tivemos boa resposta, o que ajudou muito o ato
cirúrgico. Apenas um paciente necessitou de dose mensal após o protocolo inicial.
Neste caso, por se tratar de lesão muito extensa na região metafisária distal do úmero
e no lado dominante, mantivemos mensalmente por período de 10 meses a dose de 120 mg
com rigoroso controle clínico, laboratorial e radiográfico. Posteriormente, realizamos
a cirurgia de ressecção intralesional com eletrofulguração, sem uso de cimento ortopédico.
Quanto aos fatores prognósticos locais, observamos que a classificação de Campanacci
ajuda na orientação e na escolha da terapêutica, o denosumabe foi muito útil na citorredução,
embora a casuística tenha sido pequena, e o tipo de cirurgia deve ser escolhido com
bastante cautela, visto que as recidivas locais ocorrem com frequência no tratamento
desta doença.
Conclusão
Os dados clínicos, epidemiológicos e os critérios usados para diagnóstico, classificação
e tratamento em nosso serviço seguiram os padrões estabelecidos pela literatura. A
classificação de Campanacci e a sua correlação com o tipo de cirurgia e o uso prévio
de denosumabe mostraram-se importantes para o tratamento dos pacientes, e podem orientar
novas pesquisas e melhorar o prognóstico local futuramente.