Palavras-chave
anatomia - cadáver - mão/cirurgia - nervo ulnar
Introdução
O nervo ulnar apresenta-se vulnerável devido ao seu extenso e complexo trajeto topográfico
junto a formações como a arcada de Struthers, o túnel ulnar, o retináculo cubital
(ligamento de Osborne), a aponeurose do músculo flexor ulnar do carpo (fáscia de Osborne),
o hiato da bainha fascial do músculo flexor superficial dos dedos (ligamento de Spinner)
e do túnel ulnar distal (canal de Guyon), com possibilidades de ocorrências neuropáticas
por compressão. Associadas a essas complexidades osteofibrosas e/ou musculofaciais,
muitas delas atávicas, o nervo ulnar apresenta anastomoses expressivas no campo clínico-cirúrgico
e filogenético: de Martin-Gruber, de Marinacci, de Riche-Cannieu e de Berrettini.[1] Além destas, existem as anastomoses variáveis ou conexões entre ramos do nervo ulnar,
como a rara anastomose entre o ramo dorsal e o ramo digital próprio (medial) do dedo
V descrita por Kaplan em 1963.[2]
[3] Sendo assim, relatamos uma anastomose incomum do tipo Kaplan em que uma das divisões
do ramo dorsal do nervo ulnar se anastomosa completamente (sem emissão de ramos cutâneos),
em posição média, entre o nervo ulnar e seus ramos superficial e profundo, e em uma
alça estreita no osso pisiforme.
Relato de Caso
Este estudo é o resultado da dissecção neurovascular do membro superior esquerdo de
um cadáver do sexo masculino, de idade desconhecida, e preservado em solução de formaldeído
a 10%. Os resultados morfométricos, apesar das contrações fibroelásticas comuns aos
tecidos preservados, foram obtidos com paquímetro digital (Western, São Paulo, SP,
Brasil), resolução 0,1 mm, régua milimetrada Rhosse de aço inoxidável (Rhosse Instrumentos
e Equipamentos Cirúrgicos. Ribeirão Preto, SP, Brasil) e compasso Jon (Jon Odontologia
Ltda. São Paulo, SP, Brasil) de ponta seca de aço inoxidável da marca . Por se tratar
de uma análise descritiva em cadáver já sob supervisão do laboratório, este trabalho
dispensa a aprovação do Comitê de Ética, conforme Lei 8.501/92 e Resolução 196/96
do Conselho Nacional de Saúde, seguida do Provimento/CG n° 16, de 26 de setembro de
1997.
O nervo ulnar foi completamente dissecado em seus segmentos antebraquial e de mão.
A dissecção revelou, a partir do ramo dorsal do nervo ulnar, e imediatamente posterior
à conexão musculotendínea distal do músculo flexor ulnar do carpo, a emissão dos três
ramos – medial, intermediário e lateral. O ramo medial seguiu para a face palmar paralelamente
ao tendão do músculo flexor ulnar do carpo, causando um sulco muito proeminente nas
faces anterior e medial do osso pisiforme, superficial à origem do músculo abdutor
do dedo mínimo. O ramo medial anastomosou-se completamente, em alça, ao nível do osso
pisiforme, no ponto médio entre os ramos superficial e profundo do nervo ulnar ([Figs. 1] e [2]), sem inervação muscular e/ou cutânea desse ramo ao longo de seu trajeto. A emissão
dos três ramos ocorreu a 4,75 cm do ápice do processo estiloide da ulna. Os ramos
intermediário e lateral seguiram em obliquidade ao subcutâneo do dorso da mão e dedos
IV e V, formando os ramos digitais dorsais. O sulco do osso pisiforme apresentou,
em seu ponto mais acidentado, na face medial ou ulnar, profundidade máxima de 0,2 mm
([Fig. 3]) com conformação geral de polia ou tróclea. Na face lateral do osso pisiforme (radial),
o ramo superficial do nervo ulnar causou um sulco contínuo de menor profundidade no
sentido anteromedial. Além disso, o ramo superficial do nervo ulnar, após a retração
do ligamento transverso do carpo e do músculo palmar curto, emitiu caracteristicamente
o ramo motor para o músculo palmar curto e os dois ramos digitais – próprio e comum
([Fig. 2]). Entretanto, o ramo motor para o músculo palmar curto originou-se da margem medial
do ramo digital próprio do dedo mínimo. O ramo palmar do nervo ulnar não foi preservado
neste preparo anatômico. Não houve variações vasculares.
Fig. 1 Vista medial do antebraço e mão. 01–tendão do músculo flexor ulnar do carpo; 02–ramo
dorsal do nervo ulnar; 03–divisão medial do ramo dorsal do nervo ulnar, a seta preenchida
indica o segmento dissecado e a seta interrompida indica o trajeto associado ao osso
pisiforme e com sobreposição de tecido fibromuscular; 04–divisão intermediária do
ramo dorsal do nervo ulnar; 05–divisão lateral do ramo dorsal do nervo ulnar; 06–osso
pisiforme; 07–músculo abdutor do dedo mínimo; A–anterior e D–distal.
Fig. 2 Vista volar com leve deslocamento das estruturas nervosas a partir da espátula metálica.
03–divisão medial do ramo dorsal do nervo ulnar completamente dissecado (seta dupla
preenchida) e em anastomose no ponto médio entre o nervo ulnar (08), o ramo profundo
do nervo ulnar (09) e o ramo superficial do nervo ulnar (a variante anastomose de
Kaplan); 06–osso pisiforme; 07–músculo abdutor do dedo mínimo; 10–nervo digital palmar
comum; 11–nervo digital palmar próprio; 12–ramo motor para o músculo palmar curto;
e 13–face profunda do músculo palmar curto, parcialmente retraído de sua origem ou
inserção distal; M–medial e D–distal.
Fig. 3 Sulco no osso pisiforme (6) representado pela linha preta descontínua no sulco e
na face medial e anterior deste osso; 03–anastomose tipo Kaplan (seta dupla preenchida);
08–nervo ulnar; 13–face profunda do músculo palmar curto, parcialmente retraída de
sua origem ou inserção proximal; 14–ramo profundo da artéria ulnar; asterisco (*)
– instrumento cirúrgico puxando a artéria ulnar a partir de sua adventícia; M – medial
e D – distal.
Discussão
A anastomose de Kaplan constitui uma comunicação incomum entre o ramo digital próprio
do dedo mínimo (medial) e o ramo dorsal do nervo ulnar[4]
[5]
[6]
[7] e apresenta, devido à sua localização superficial, implicações clínicas e cirúrgicas
significativas, inclusive iatrogênicas.[8] No entanto, existem variações desta anastomose, como a conexão atípica do ramo dorsal
ao ramo profundo do nervo ulnar conforme descrito por Ghabriel e Makar.[9] Neste estudo, a anastomose ocorreu entre a divisão medial do ramo dorsal do nervo
ulnar no ponto médio entre as origens dos ramos superficial e profundo, achado que
difere daqueles de Paraskevas et al.[6] e Torre et al.,[7] uma vez que ambos estudos relataram anastomose do ramo dorsal do nervo ulnar ao
nervo ulnar proximal às emissões dos ramos superficial e profundo. Além disso, a divisão
medial anastomótica não suprimiu o aspecto cutâneo da margem medial da mão em direção
à face dorsal, o que difere de trabalhos anteriores. Hankins e Flemming[4] propuseram uma classificação, em seis tipos, para as variações da anastomose de
Kaplan quanto à conexão e/ou comunicação distal do ramo dorsal do nervo ulnar. No
entanto, o presente estudo não se enquadra nessa classificação, porque não houve previsão,
na referida classificação, de uma comunicação da divisão medial do ramo dorsal no
ponto médio entre os ramos volares do nervo ulnar (superficial e profundo) e porque
a divisão medial se relaciona exclusivamente à anastomose. Os achados desses autores
evidenciaram um sulco curto no osso pisiforme para acomodação do ramo do nervo variante,
que também observamos, porém, o sulco era de maior extensão e profundidade ([Fig. 3]).