Palavras-chave
articulação do tornozelo - fraturas do tornozelo - técnicas de sutura - fixação interna
de fraturas
Introdução
A sindesmose tibiofibular distal (STFD) tem como principal estabilizador seu complexo
ligamentar, composto pelos ligamentos tibiofibular anterior inferior, tibiofibular
posterior inferior, interósseo e transverso.[1]
[2]
[3] Embora seja uma das articulações mais estáveis do corpo humano, a STFD apresenta
certo grau de mobilidade, como rotação externa, encurtamento relativo da fíbula e
pequena abertura durante a carga e movimentos fisiológicos.[3]
[4] Aproximadamente 80% das lesões ligamentares da STFD estão associadas às fraturas
do tornozelo, de modo que o diagnóstico correto e o tratamento adequado destas lesões
são de extrema importância para prevenir complicações como edema e dor crônicos, relacionados
a sinovite, lesões da cartilagem articular e doença degenerativa secundária à instabilidade
crônica desta articulação.[5]
[6]
O diagnóstico da lesão aguda da sindesmose nos pacientes com fratura do tornozelo
é realizado por meio da avaliação clínica, dos exames de imagem e da avaliação intraoperatória.[7] O achado clínico que sugere lesão da sindesmose é a presença de dor à palpação da
topografia dos ligamentos da STFD ou do terço proximal da fíbula, quando se trata
de uma lesão associada às fraturas altas da fíbula.[8]
[9] Em relação aos exames de imagem, os métodos mais utilizados são a radiografia simples,
a tomografia axial computadorizada (TAC) e a ressonância nuclear magnética (RNM).[3]
[8]
[10]
[11] As radiografias nas incidências anteroposterior (AP), perfil e mortise (AP com 15°
de rotação interna) são necessárias para confirmar o diagnóstico da fratura do tornozelo
e avaliar a ocorrência de lesão da sindesmose mediante a identificação de alterações
como fratura-avulsão da sindesmose, fratura alta da fíbula (Weber tipo C ou de Maisonneuve),
abertura do espaço claro medial > 4mm, alterações da sobreposição e do espaço claro
tibiofibular e a integridade do maléolo posterior.[7]
[12] A TAC auxilia na avaliação da posição relativa entre a tíbia e a fíbula, no melhor
entendimento das fraturas do maléolo posterior possivelmente associadas e na realização
do diagnóstico de fraturas ocultas. Em até 40% dos casos, o plano de tratamento pode
mudar após estudo das imagens da TAC.[13] A RNM é o exame que apresenta maior especificidade e sensibilidade, além de proporcionar
a avaliação mais detalhada do comprometimento ligamentar da STFD, assim como de lesões
intra-articulares associadas.[3]
[8]
[9] Habitualmente, o exame clínico, a radiografia simples e a TAC são suficientes para
a indicação e a programação do tratamento cirúrgico das fraturas do tornozelo. Além
disso, a avaliação da redução da fratura e da STFD também são realizadas durante o
ato operatório por meio da visualização direta e de testes de estresse, os quais confirmam
a congruência e a estabilidade articular, respectivamente.[14]
O tratamento convencional da lesão ligamentar inclui, além do tratamento da fratura,
a fixação da STFD com parafusos estabilizadores. Há discussões a respeito do número
de parafusos necessários, sua espessura, número de corticais fixadas e altura dos
parafusos com relação à linha articular. Entretanto, uma vez que a articulação tibiofibular
distal permite micromovimentos como os descritos anteriormente, este tipo de estabilização
ocasionalmente acarreta problemas devido à sua rigidez inerente, como, por exemplo:
dor crônica residual, soltura do parafuso, quebra do material de síntese, rigidez,
tempo prolongado sem carga, sinostose tibiofibular distal, necessidade de novo procedimento
cirúrgico para remoção do parafuso, diástase tardia após falha ou retirada do material
e até degeneração da articulação do tornozelo.[3]
[11]
[15]
[16]
Devido aos fatores supramencionados, verifica-se na literatura atual o aumento da
popularidade de dispositivos flexíveis para a fixação da STFD, os quais permitem alguma
movimentação ao mesmo tempo que conferem estabilidade suficiente para manter a congruência
articular e impedir a falha do implante.[11] Com isso, é possível restaurar uma biomecânica da STFD semelhante à fisiológica.[2]
[17]
[18] Face a esta situação, apesar dos casos de irritação local e ossificação heterotópica
da sindesmose, o uso destes métodos de fixação objetiva diminuir a incidência de sintomas
residuais e a necessidade de procedimentos cirúrgicos secundários para remover o material
de síntese, assim como possibilitar apoio precoce.[2]
[16]
[17]
[19]
[20]
O objetivo do presente trabalho é avaliar os resultados obtidos no tratamento cirúrgico
das fraturas maleolares do tornozelo com lesão da STFD associada por meio de fixação
dos maléolos com placas e parafusos, e da STFD com o suture button (SB) ([Figura 1]).
Fig. 1 Radiografia de tornozelo após tratamento cirúrgico com a fixação do maléolo com placa
e parafusos e da STFD com SB em incidência AP (A), perfil (B) e mortise (C).
Materiais e Métodos
O presente estudo foi desenvolvido na instituição após aprovação do Sistema Gerenciador
de Projeto de Pesquisa (SGPP). O presente estudo foi administrado de acordo com os
requerimentos da Resolução CNS 466/2012 e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa
da instituição, com o registro na Plataforma Brasil, sob número do CAEE 99556918.7.0000.0071.
Trata-se de um estudo longitudinal, retrospectivo, de uma série de pacientes com diagnóstico
de fraturas maleolares do tornozelo associadas a lesões ligamentares da STFD submetidos
ao tratamento cirúrgico no período de 2000 a 2017. Os dados clínicos e radiográficos
necessários para o estudo foram coletados do prontuário eletrônico (HiDoctor) dos
pacientes. Todos os procedimentos foram realizados por dois médicos cirurgiões de
pé e tornozelo.
Avaliou-se um total de 49 prontuários, sendo 22 pacientes (44,9%) do sexo masculino
e 27 (55,1%) do sexo feminino. A idade média dos participantes do estudo foi de 45
anos, sendo a idade máxima de 79 anos e a idade mínima de 16 anos. Os lados direito
e esquerdo foram acometidos em proporção similar, com um total de 25 tornozelos direitos
(51%) e 24 tornozelos esquerdos (49%).
Critérios de Inclusão e Exclusão
Foram inclusos no estudo pacientes de ambos os sexos, com esqueleto maduro, que sofreram
fraturas de tornozelo associadas a lesões da STFD diagnosticadas por meio de radiografias
e confirmadas por testes intraoperatórios e foram submetidos a procedimento cirúrgico
com redução anatômica e fixação convencional da fratura somadas à estabilização da
sindesmose com SB (TightRope - Arthrex). Como critério de exclusão, foram desconsiderados
pacientes com antecedentes de fraturas prévias do tornozelo, patologias neurológicas,
deformidades congênitas, doenças do colágeno, patologias inflamatórias, diabetes e
insuficiência renal.
Desfechos Avaliados
Foram analisados os resultados de questionários referentes à avaliação clínica e funcional,
como a escala visual analógica (EVA) para dor e a escala American Foot and Ankle Society
Score (AOFAS, na sigla em inglês) para tornozelo e retropé.[21] Avaliou-se também: sintomas residuais, retorno às atividades de rotina e tempo necessário,
retorno às atividades físicas diárias e nível de retorno às atividades físicas em
relação ao desempenho prévio à lesão, complicações cirúrgicas, necessidade de procedimentos
secundários e índice de satisfação dos pacientes.
Análise Estatística e Planejamento Amostral
Variáveis numéricas com distribuição normal foram descritas por médias e desvios-padrão
(DPs), e variáveis com distribuição não normal foram descritas por medianas e intervalos
interquartis (IIQs), além dos valores mínimos e máximos. As distribuições das variáveis
numéricas foram verificadas por meio de histogramas, boxplots e, quando necessário,
testes de normalidade de Shapiro-Wilk. Variáveis categóricas foram descritas por frequências
absolutas e relativas. Os resultados são apresentados seguidos de intervalos de confiança
(ICs) de 95% para proporções e médias para que se possa discutir com a literatura.
Resultados
Utilizou-se somente um SB para 44 pacientes (89,8%) e 2 para 5 (10,2%). O tempo de
seguimento variou entre 2 e 144 meses, com média de 34,1 meses (IC95%: 25,4– 42,8).
As médias pós-operatórias das escalas AOFAS e EVA foram, respectivamente, de 97,06
e 0,16 ([Tabela 1]). O IC95% para as médias das medidas do AOFAS e EVA foi, respectivamente, [95,31;
98,81] e [0,04; 0,29]
Tabela 1
AOFAS pós-operatório
|
Média (desvio padrão)
|
97,06 (6,08)
|
Mínimo – Máximo (n)
|
68,00–100,00 (49)
|
EVA pós-operatório
|
Média (desvio padrão)
|
0,16 (0,43)
|
Mínimo – Máximo (n)
|
0,00–2,00 (49)
|
EVA pós-operatório (por categoria)
|
0
|
42 (85,7%)
|
1
|
6 (12,2%)
|
2
|
1 (2,1%)
|
≥ 3
|
0 (0%)
|
Apenas 12 pacientes (24,5%) mostraram algum sintoma residual. Os sintomas apresentados
por estes pacientes foram: 2 (4,1%) dor e limitação de movimento; 2 (4,1%) desconforto
eventual; 1 (2%) desconforto leve nos tendões fibulares; 4 (8,2%) desconforto aos
esforços; e 3 (6,1%) dor eventual. Todos os pacientes (100%) retornaram às atividades
prévias do cotidiano, e o tempo médio para o retorno foi de ∼ 3,7 meses, com tempo
mínimo de 0,5 meses e tempo máximo de 8 meses. Quanto às atividades físicas, 3 (6,1%)
não retornaram para a prática desportiva e 46 (93,9%) retornaram à sua prática, sendo
que apenas 1 (2%) afirma que não retornou ao nível anterior à lesão ([Tabela 2]).
Tabela 2
Sintoma residual –
n
(%)
|
Não apresentou sintoma residual
|
37 (75,5)
|
Dor e limitação de movimento
|
2 (4,1)
|
Desconforto eventual
|
2 (4,1)
|
Desconforto leve nos tendões fibulares
|
1 (2)
|
Desconforto aos esforços
|
4 (8,2)
|
Dor eventual
|
3 (6,1)
|
Retorno às atividades de rotina –
n
(%)
|
Não
|
0 (0)
|
Sim
|
49 (100)
|
Retorno às atividades de rotina após quanto tempo de cirurgia? (meses)
|
Média (desvio padrão)
|
3,7 (1,6)
|
Mediana (IIQ)
|
4,0 (2,5 – 4,5)
|
Mínimo – Máximo
|
0,5–8
|
Retorno às atividades físicas –
n
(%)
|
Não
|
3 (6,1)
|
Sim
|
46 (93,9)
|
Nível das atividades físicas em relação ao nível prévio à lesão –
n
(%)
|
Nível inferior
|
1 (2,0)
|
Mesmo nível
|
45 (91,9)
|
Não retornou
|
3 (6,1)
|
Dos 49 pacientes operados, apenas 2 (4,1%) apresentaram alterações relacionadas direta
ou indiretamente ao SB, um deles com falha da fixação do SB (sendo posteriormente
realizada artrodese tibiofibular distal) e outro com queixa de desconforto no fio
de Fiberwire do SB (granuloma de fio). Em relação ao índice de satisfação, 48 (98%)
pacientes disseram estar totalmente satisfeitos e 1 (2%) apontou satisfação parcial,
sendo que não houve relato de insatisfação ([Tabela 3]).
Tabela 3
Complicações relacionadas ao suture button -
n
(%)
|
Não
|
47 (95,9)
|
Sim
|
2 (4,1)
|
Tipo de complicação do suture button (
n
= 2)
|
Falha da fixação - realizada artrodese tibiofibular distal
|
1
|
Granuloma no fio de fiberwire do suture button
|
1
|
Reoperação devido a complicações do suture button –
n
(%)
|
Não
|
47 (95,9)
|
Sim
|
2 (4,1)
|
Índice de satisfação –
n
(%) (
n
= 49)
|
Totalmente satisfeito
|
48 (98,0)
|
Parcialmente satisfeito
|
1 (2,0)
|
Insatisfeito
|
0 (0,0)
|
Discussão
Face às amplas discussões acerca das vantagens e desvantagens do uso do SB em comparação
com o método convencional, descrevemos, por meio de uma análise retrospectiva, os
resultados obtidos no tratamento cirúrgico das fraturas de tornozelo associadas à
lesão da STFD fixada com este dispositivo.
Kim et al.[4] acompanharam, por > 1 ano, 44 pacientes que foram submetidos à cirurgia de fratura
de tornozelo associada a lesão da sindesmose, dos quais 20 foram tratados com o uso
de SB e 24 com o uso de parafusos, e registraram AOFAS/EVA pós-operatórias de 88.1/1.4
e 86.6/1.5, respectivamente. Em nossos resultados, encontramos uma média de AOFAS
pós-operatória de 97,06 e uma média de EVA pós-operatória de 0,16.
Thornes et al.[22] comparou retrospectivamente a fixação com SB com a fixação com parafusos em 32 pacientes
divididos em 2 grupos de 16. Os pacientes do grupo de fixação com SB mostraram retorno
mais precoce ao trabalho (2,8 meses) quando comparado com o grupo da fixação com parafuso
(4,6 meses). O tempo médio de retorno às atividades prévias do cotidiano no nosso
estudo foi de 3,7 meses, um pouco maior do que o descrito, porém menor do que o método
convencional apontado, corroborando a hipótese de reabilitação mais rápida.
São poucos os estudos que investigaram os sintomas residuais apresentados pelos pacientes.
No nosso estudo, dos sintomas residuais levantados, os mais limitantes consistiam
em dor e limitação do movimento. Os demais sintomas residuais enquadraram-se como
eventuais ou mediante esforço físico.
Vale ressaltar que tanto o trabalho de Zhang et al.[23] quanto o de Unal et al.[3] mostraram uma melhor relação custo-benefício na fixação com SB, uma vez que, ao
não ser necessária a realização de uma segunda cirurgia para remoção do implante,
reduz-se o custo médico-hospitalar, além de se reduzirem as possíveis complicações
e o tempo de retorno ao trabalho. Adicionalmente, ao evitar uma segunda intervenção,
a técnica não incorre no prejuízo de perda da redução da STFD como observado por Endo
et al.[13] em seu estudo com 20 pacientes que foram submetidos à fixação da sindesmose com
parafusos para correção de fratura de tornozelo. Foi constatado que, após 1 ano da
remoção dos parafusos em um segundo procedimento, houve aumento da distância tibiofibular
anterior.
Zhang et al.,[23] em sua revisão sistemática que comparou o uso do SB com o de parafusos no tratamento
de lesões da STFD, observaram em redução inadequada 4 estudos, sendo que 1,0% ocorreram
com o uso do SB e 12,6% com o parafuso. Além disso, foi encontrada falha do implante
em 7 estudos, sendo que no grupo de SB não ocorreu nenhuma falha e no grupo do parafuso
ocorreram 30,9% de falhas. Outras complicações como infecção, irritação, desconforto,
ossificação da sindesmose (exceto redução inadequada e falha do implante), foram reportadas
em 5 estudos, sendo 12% em pacientes com SB e 16,4% com parafuso. No nosso estudo,
as complicações resultantes do uso do SB ocorreram em 2 pacientes (4,1%); em 1 dos
casos, ocorreu a falha do implante no seguimento pós-operatório, com realização de
novo procedimento (artrodese tibiofibular distal). Já no outro paciente, houve a formação
de um granuloma ao redor do fio Fiberwire do SB, uma complicação diretamente relacionada
ao dispositivo que se posiciona no subcutâneo na porção medial da tíbia, tendo sido,
portanto, realizada a retirada do SB após a cicatrização ligamentar. Ambos os pacientes
apresentaram boa evolução. De maneira semelhante, Zhang et al.[23] também relataram 7 estudos que demonstraram necessidade de retirada do implante,
sendo 3,7% no grupo SB e 40,2% no grupo parafuso.
Apesar das complicações, observou-se um alto índice de satisfação total (98,0%) e
um pequeno índice de satisfação parcial (2,0%) com o tratamento, assim como uma alta
taxa (91,9%) de retorno às atividades físicas em nível pré-lesão.
As limitações do presente estudo se concentram no fato de se tratar de uma análise
retrospectiva de dados, de apresentar um pequeno número de pacientes e da ausência
de grupo controle.
Conclusão
O presente estudo, em consonância com a literatura, demonstra excelentes resultados
da fixação da sindesmose com o SB. Em comparação com o método convencional, o SB pode
apresentar resultados semelhantes ou superiores, com a vantagem de permitir carga
precoce, manutenção da redução, mobilidade fisiológica e dispensar a necessidade de
novo procedimento para retirada do implante.