Introdução
Nos últimos 20 anos, a longevidade da população mundial está aumentando nos países
desenvolvidos e em desenvolvimento. Tal fato acarreta crescimento na incidência e
prevalência das doenças degenerativas de maneira geral, incluindo as articulares.[1]
[2] Portanto, é natural e esperado um aumento do número das artroplastias primárias
e de revisões[3] realizadas como tratamento destas referidas doenças.[3]
[4]
[5]
O impacto socioeconômico nos sistemas de saúde é significativo, particularmente no
tratamento de eventuais infecções.[6]
[7]
[8]
A incidência das infecções periprotéticas do joelho em 2001 era de 2,09% e, em 2009,
de 2,18%, com uma tendência de aumento.[7] Tal complicação é uma das principais causas de reinternação,[9] sendo responsável por entre 13 e 25% das revisões realizadas.[3]
[5]
[10] O custo estimado do tratamento da infecção periprotética é entre três e quatro vezes
maior do que o da artroplastia primária.[9]
[11]
[12]
O objetivo do presente trabalho é revisar o que há de mais atual na prevenção, no
diagnóstico e no tratamento da infecção periprotética do joelho.
Fatores de Risco
Os fatores de risco para infecção periprotética (IPP) podem ser modificáveis ou não
modificáveis ([Figura 1]).[13]
Fig. 1 Fatores de risco para infecção periprotética - reprodução do Consenso Internacional
em Infecções Musculoesqueléticas de 2018 (CIIM-2018).[13]
Os fatores modificáveis mais constantemente encontrados na literatura, assim como
na prática clínica, são artrite reumatoide, diabetes mellitus, obesidade (índice de
massa corporal [IMC] > 30), corticoterapia, alcoolismo, tabagismo e desnutrição, tendo
como referência a hipoalbuminemia.[14]
[15]
[16]
[17]
[18]
[19]
[20]
[21]
Algumas outras condições clínicas e sociais também estão descritas como associadas
a uma maior taxa de IPP, como classificação pré-operatória American Society of Anesthesiologists
(ASA) > 2, baixa renda, doença vascular periférica e outras listadas na [Tabela 1].[14]
[21]
[22]
Tabela 1
Fator
|
Grau
|
Descrição
|
Tipo
|
I
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Infecção aguda (< 4 semanas de pós-operatório)
|
II
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Infecção hematogênica aguda (< 4 semanas de sintomas)
|
III
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Infecção crônica (> 4 semanas de sintomas)
|
Fatores do hospedeiro (comorbidades e imunidade)
|
A
|
Não comprometido
|
B
|
Comprometido (1–2 fatores de comorbidade)
|
C
|
Muito comprometido (> 2 fatores de comorbidade) ou um dos fatores abaixo:
∘ Contagem de neutrófilos < 1000
∘ Contagem de CD4 < 100
∘ Usuário de drogas IV
∘ Infecção ativa em outro sítio
∘ Tumor ou displasia do sistema imunológico
|
Fatores Locais
|
1
|
Não comprometido
|
2
|
Comprometido (1–2 fatores de comorbidade)
|
3
|
Muito comprometido (> 2 fatores de comorbidade)
|
Lesões cutâneas ativas, seja na proximidade do sítio ou à distância, têm potencial
aumento de risco de infecção articular periprotética (IAP), assim como história de
cirurgia ou infecção articular prévia.[16]
[20]
[23]
Alguns estudos relatam aumento da taxa de infecção em artroplastia total do joelho
(ATJ) por artrose pós-traumática, principalmente com cirurgia prévia e implantes retidos.[24]
[25]
Bergen et al.[26] encontraram, numa coorte retrospectiva comparativa (109 pacientes com implantes
e 109 pacientes sem), um aumento da taxa de infecção em pacientes submetidos à ATJ
com implante na região do joelho (osteossínteses ou osteotomias). Entretanto, não
houve diferença quando comparados os grupos com remoção prévia dos implantes (n = 43) com aqueles removidos durante o procedimento de ATJ (n = 46).
Existe controvérsia quanto ao aumento da taxa de infecção após ATJ em pacientes submetidos
à infiltração articular prévia. Alguns estudos demonstraram aumento do risco de infecção
quando a ATJ é realizada até 3 meses após a infiltração articular.[27]
[28] Por outro lado, outras pesquisas não encontraram diferenças significativas, mesmo
em períodos curtos após a infiltração (10 semanas),[29] ou em pacientes submetidos a múltiplas infiltrações.[30] O II-ICM-2018 (II International Consensus on Muscleskeletal Infection – 2018) sugere
aguardar, pelo menos, 3 meses após a infiltração para se realizar a artroplastia.[31]
Com relação aos fatores não modificáveis, a idade, por si só, não parece ser um fator
predisponente à infecção.[15]
[16] Quanto ao gênero, alguns estudos mostram maior taxa de infecção em homens do que
em mulheres[15]
[16] Negros também apresentam maior percentual de infecção quando comparados aos brancos.[21]
Komnos et al.[32] avaliaram retrospectivamente pacientes com artroplastias em mais de uma articulação.
No referido estudo, concluíram que IPP de uma articulação pode predispor à infecção,
por via hematogênica, em outro sítio protético. Situações de risco para esta complicação
são: sexo feminino, artrite reumatoide, infecção por Methicillin-Resistant Staphylococcus
aureus (MRSA) e pacientes que se apresentam com febre por ocasião do diagnóstico da
primeira articulação infectada.
Classificação
As classificações são importantes para estratificar e orientar a conduta nas diversas
condições clínicas, assim como normatizar a comunicação entre colegas.[33]
Segawa et al.,[34] em 1999, publicaram um estudo retrospectivo propondo uma classificação e seus respectivo
tratamentos, baseados na cronologia e na etiologia da infecção, dividindo as IPPs
em: culturas positivas em colheita perioperatória de revisão, infecção superficial
aguda, infecção profunda aguda, infecção crônica, e infecção hematogênica aguda. Entretanto,
a classificação não leva em conta as condições do paciente, locais e sistêmicas, ou
o agente etiológico.[34]
McPherson et al.[35]
[36] descreveram um sistema de classificação de IPP para quadril e joelho baseado em
uma análise retrospectiva de casos avaliando três fatores: tipo da infecção (aguda,
hematogênica aguda ou crônica), fatores do hospedeiro e fatores locais ([Tabela 2]). Esta classificação foi validada pelo Consenso Internacional de Infecção Musculoesquelética
com índice de evidência moderada e 74% de concordância do painel.[37]
Tabela 2
Fator
|
Descrição
|
Comprometimento sistêmico do hospedeiro (comorbidade ou imunidade)
|
Idade ≥ 80anos
|
Alcoolismo
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Dermatite ou celulite crônica ativa
|
Cateter permanente
|
Desnutrição crônica (albumina ≤ 3,0g/dL)
|
Uso crônico de nicotina (inalatório ou oral)
|
Diabetes mellitus (requerendo tratamento medicamentoso)
|
Insuficiência hepática (cirrose)
|
Uso de drogas imunossupressoras (corticóide, MTX, ciclosporina)
|
Neoplasia maligna (ativa ou história)
|
Insuficiência pulmonar (SaO2 < 60% em ar ambiente)
|
Insuficiência renal crônica em diálise
|
Doença inflamatória sistêmica (Artrite Reumatoide, Lúpus Eritematoso Sistêmico)
|
Comprometimento imunológico sistêmico por infecção ou imunodeficiência (AIDS, imunodeficiências
adquiridas)
|
Comprometimento do membro afetado (condições da ferida e do membro)
|
Infecção ativa (> 3–4 meses)
|
Múltiplas incisões – pontes cutâneas
|
Perda de partes moles por trauma prévio
|
Abcesso subcutâneo (extensão > 8 cm2)
|
Fístula sinovial cutânea
|
Fratura periarticular prévia ou trauma articular prévio (esmagamento)
|
Irradiação local prévia
|
Insuficiência vascular periférica – arterial ou venosa
|
Alt et al.[38] propõem uma nova classificação baseada na classificação TNM para tumores, adaptando-a
para infecção periprotética, onde se enfatiza a patogenicidade do agente etiológico.
Na classificação proposta, “T” seria a avaliação tecidual, “N” o fator celular não-humano
(agente etiológico) e “M” a morbidade do hospedeiro, de acordo com a classificação
de comorbidades de Charlson ([Figura 2]).[38]
[39]
[40]
Fig. 2 Classificação TNM para IPP.[40]
A ideia de fazer uma classificação que inclua estes três fatores nos parece a forma
mais apropriada; entretanto, não encontramos nenhum estudo validando a referida classificação.
Diagnóstico
O diagnóstico de infecção pós-artroplastia do joelho sempre foi um desafio. Nas primeiras
semanas de pós-operatório, a ocorrência de dor, calor local e de incapacidade funcional
podem ser normais e não estarem relacionadas com qualquer tipo de infecção bacteriana.
Portanto, é fundamental definir critérios que caracterizem a presença de infecção,
que eles sejam reprodutíveis e que possam preencher critérios, os mais objetivos possíveis,
no sentido de fechar o diagnóstico.
Seguindo o conceito de que o diagnóstico de infecção, quase sempre, é de análise multifatorial
– dados clínicos, laboratoriais, de imagens e análise de líquido sinovial – é muito
importante hierarquizar as ações de modo a construir este mesmo diagnóstico dentro
de um raciocínio clínico lógico e progressivo.
Consideramos a estratégia definida pelo II-ICM-2018 a melhor opção de investigação
diagnóstica, pois, além de "empurrar" o investigador para o próximo passo até que
se chegue à conclusão de infecção, ou de ausência dela, ela congrega conhecimento
científico de melhor evidência disponível, com a experiência de centenas de ortopedistas,
infectologistas e microbiologistas ao redor do mundo. O algoritmo proposto foi testado
e validado, apresentando altas taxas de sensibilidade (96,9%) e de especificidade
(99,5%).[37]
[41]
Seguindo este critério, o diagnóstico de infecção é definido pela presença de um dos
chamados critérios maiores – fístula com comunicação articular ou duas culturas positivas
para o mesmo microorganismo identificada usando meios de cultura – ou através de pontuação
de variantes clínicas, séricas ou advindas de análise do líquido sinovial obtido por
punção articular ([Figura 3]).[37]
Fig. 3 Critérios de diagnóstico da Sociedade de infecção musculoesquelética (reprodução
do CIIM).
A ocorrência de fístula encontra-se em cerca de 13% dos casos.[38] Na ausência da mesma, quando o paciente apresenta dor no joelho operado, calor e,
não raro, diminuição do arco de movimento, é imperiosa a solicitação de exames de
sangue para avaliação da série branca, VHS, proteína c-reativa (PCR) e D-dímero.[37]
A VHS e a PCR são marcadores inflamatórios utilizados como primeira linha na triagem
do paciente com suspeita de infecção, com sensibilidade em torno de 75 a 88% e especificidade
de entre 70 e 74%, respectivamente.[42] A sensibilidade de ambos, combinados, varia de 84 a 86%, e a especificidade de 47
a 72,3%.[43]
[44] A PCR atinge seu valor mais alto no terceiro dia de pós-operatório e se mantém acima
do normal por 3 semanas ou mais.[45] A VHS se mantém elevada por, pelo menos, 6 semanas.[46] Vale lembrar que, em pacientes com artrite inflamatória, o valor de corte desses
marcadores pode ser mais alto pela influência da doença de base,[47] assim como o uso de antibióticos pode gerar falso-negativo.[48] Um estudo recente demonstrou maior sensibilidade (89%) e especificidade (93%) do
D-dímero em relação aos tradicionais VHS e PCR.[43] Outro estudo observou declínio aos níveis basais do D-dímero já no segundo dia de
pós-operatório.[46] É importante salientar que ∼ 2,5% das infecções não apresentam alterações nos exames
citados.[37]
O próximo passo na sequência da investigação é a artrocentese com envio do líquido
sinovial para análise laboratorial de celularidade (citometria) e cultura/antibiograma.
Não há contraindicação formal à aspiração articular.[37]
[49] Neste procedimento, que fecha o diagnóstico em 65% dos casos, é primordial que se
obedeça aos critérios de barreira máxima à contaminação, realização por um profissional
experiente, acondicionamento adequado e envio imediato do material ao laboratório.[37]
Na fase aguda, a presença no líquido sinovial de ≥ 10.000 leucócitos/µL, com pelo
menos 90% de polimorfonucleares (PMNs) e, na fase crônica, ≥ 3.000 leucócitos/µL,
com pelo menos 70% de PMN, indicam infecção.[37]
Quanto à cultura do líquido aspirado, alguns critérios devem ser seguidos para minimizar
o risco de falso-negativo. É importante que se realize tempo prolongado de cultura,
tendo em vista que boa parte das amostras negativas, na verdade, são infecções por
germes de crescimento demorado, interrompido antes do tempo adequado.[50]
O líquido articular coletado pode, ainda, ser utilizado para outros dois testes: alfa-defensina
e estearase leucocitária.[37]
A alfa-defensina é um peptídeo antimicrobiano produzido pelos neutrófilos em resposta
aos patógenos.[37]
[51]
[52] Este marcador pode ser pesquisado no líquido sinovial através de imunoensaio laboratorial
ou pelo teste de fluxo lateral, que é um teste rápido com kit específico e que pode
ser realizado no centro cirúrgico com resultado em alguns minutos. O teste de fluxo
lateral apresenta taxa de sensibilidade de 78,5% e especificidade de 93,3%, conforme
revisão sistemática realizada pelo CIIM-2018 com dados agrupados de 486 pacientes.[41] O imunoensaio apresenta taxa de sensibilidade de 98,1% e de especificidade de 96,4%.[54] A alfa-defensina não é influenciada pelo uso recente de antibiótico, por traços
de sangue na amostra, nem por comorbidades como doenças inflamatórias. O teste rápido
necessita de pequeno volume de líquido sinovial (15µL), o que pode ser uma grande
vantagem nos casos de ausência de derrame articular.[53]
[54] Por outro lado, na presença de metalose, pode apresentar falso-negativo em até 30%
dos casos, e também pode ser influenciado por artropatia por cristais (gota) e não
deve ser feito em aspirado de hematoma.[53]
A estearase leucocitária é um exame com sensibilidade de 85,7% e especificidade de
94,4% segundo a revisão sistemática realizada pelo II-ICM-2018 com dados agrupados
de 2.061 pacientes.[41] Este teste também não sofre influência de uso recente de antibiótico,[55] porém a presença de sangue na amostra altera a legibilidade do teste e pode ser
necessária a centrifugação para neutralizar a interferência dos eritrócitos.[37]
[56]
Nos casos em que não seja possível aspirar conteúdo suficiente para análise (punção
seca) ou cujas culturas sejam negativas (17% dos casos) os achados intraoperatórios
de pus, análise histológica, cultura de tecido e sequenciamento de nova geração podem
auxiliar no diagnóstico de infecção.[41] Não é apropriado realizar lavado articular nos casos de punção seca.[41]
Mesmo com todo o arsenal de exames e o algoritmo estruturado e validado, em 5% dos
casos, não se consegue confirmar o diagnóstico de infecção.[41]
Alguns exames de imagem podem auxiliar no planejamento do tratamento, mas apresentam
baixa especificidade quanto ao diagnóstico.[57] Sinais de soltura precoce na radiografia convencional levam à suspeita de infecção.[58] A tomografia computadorizada (especialmente a artrotomografia) e a ressonância magnética
(RM) com supressão de metal também podem mostrar sinais de soltura, defeitos ósseos
e, eventualmente, osteomielite;[57] porém, pelo alto custo e baixa especificidade, não são recomendados como medidas
diagnósticas.[58]
[59]
Por outro lado, outros exames têm sido utilizados para diferenciar soltura asséptica
de infecção, especialmente nos casos de punção seca, como a combinação de cintilografia
com leucócitos marcados e tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT-CT),
que ainda tem a vantagem de mostrar a extensão do comprometimento da infecção, tanto
óssea quanto de partes moles, podendo ser de grande valia no planejamento da cirurgia.[57]