Palavras-chave
luxação do ombro - fraturas do ombro - processo coracoide
Introdução
As luxações anteriores representam cerca de 96% do total de luxações do ombro. A recidiva
de luxação é muito frequente em pacientes jovens, podendo ocorrer em até 80% dos casos.[1] Contudo, em pacientes acima dos 40 anos, a recidiva ocorre em apenas cerca de 10%.
[2] Nos casos de luxação recidivante, é frequente ocorrer lesão das estruturas estabilizadoras
da articulação glenoumeral (estáticas e/ou dinâmicas), sendo a lesão do labrum anteroinferior
da glenoide com componente ósseo (lesão óssea de Bankart) uma sequela bem conhecida.[3] O tratamento cirúrgico deste tipo de lesão varia entre a fixação da lesão de Bankart
até à criação de aumentos ósseos anteriores utilizando apófise coracoide, enxerto
autólogo ou heterólogo.[4]
As fraturas da apófise coracoide são pouco frequentes e de difícil diagnóstico, constituindo
cerca de 3 a 13% das fraturas da omoplata, que, por sua vez, representam menos de
1% do total de fraturas.[5]
A maioria das fraturas da coracoide descritas ocorrem na sequência de convulsões,
sendo a sua associação com episódios de luxação anterior do ombro extremamente rara,
existindo muito poucos relatos sobre o tratamento efetuado.
Este trabalho descreve o caso de um paciente com luxação recorrente/instabilidade
do ombro consequente a lesão óssea de Bankart e fratura da apófise coracoide diagnosticadas
tardiamente e as suas implicações no tratamento realizado.
Caso clínico
O caso trata de um paciente de 67 anos, do sexo masculino, sem antecedentes patológicos
relevantes, nomeadamente epilepsia.
O paciente foi avaliado pelos autores no serviço de urgência (SU), por agudização
de omalgia direita persistente, já com múltiplos episódios prévios semelhantes de
agravamento da dor. A omalgia teve início 2 meses antes da apresentação aos autores,
após queda da própria altura com traumatismo do membro superior em abdução e extensão,
tendo sido avaliada em outra instituição. Não houve ocorrência de episódios traumáticos
posteriormente.
O paciente apresentava-se com o membro superior suspenso em posição antálgica em ligeira
rotação externa com sinal cabide positivo.
A luxação anterior do ombro foi verificada radiologicamente na data de avaliação pelos
autores ([Fig. 1]), e a redução de luxação anterior foi então realizada.
Fig. 1 Luxação anterior do ombro (radiografia do episódio de serviço de urgência usado na
avaliação pelos autores).
Objetivamente com grande instabilidade do ombro, sendo fácil a redução de luxação
e testes de apreensão anterior e “load and shift test” positivos. Sem déficits neurológicos.
A tomografia computorizada (TC) do ombro confirmou importante erosão óssea da vertente
antero-nferior da glenoide, com perda óssea de cerca de 50% do diâmetro anteroposterior
na região inferior da glenoide ([Fig. 2]) e depressão focal infracentimétrica na vertente posteroexterna da cabeça umeral
(lesão Hill-Sachs).
Fig. 2 Imagens de tomografia computadorizada - Lesão óssea de Bankart de cerca de 50% da
porção anteroinferior da glenoide com fragmentação óssea.
Em análise a posteriori da radiografia convencional do episódio traumático inicial
(previamente avaliada em outra instituição), foi verificado fragmento de lesão óssea
de Bankart, contudo sem luxação anterior do ombro (por provável redução espontânea).
Na TC realizada pelos autores, foi observada reabsorção óssea quase completa do fragmento
ósseo de Bankart. ([Fig. 2]).
Associadamente, foi diagnosticada fratura transversa da apófise coracoide (do tipo
II na classificação de Ogawa), com reabsorção parcial do fragmento.
Dada a instabilidade com episódios recorrentes de luxação e dor intensa, foi proposto
tratamento cirúrgico. Foi realizada uma abordagem deltopeitoral para exploração da
articulação glenoumeral, com exérese de corpos livres intraarticulares e foi confirmado
fragmento, de reduzidas dimensões, do coracoide no tendão conjunto.
Foi confeccionado um batente ósseo anterior utilizando remanescentes do fragmento
fraturado do coracoide (fixado com parafuso canulado no rebordo anteroinferior da
glenoide – às 5h), suplementado por osteossíntese de enxerto tricortical colhido do
ilíaco ipsilateral (com 2,5 cm x 3 cm) com 2 parafusos nos 2/3 inferiores da glenoide
([Figs. 3] e [4]).
Fig. 3 Imagem intraoperatória de fixação de fragmento da coracoide e enxerto tricortical
ilíaco à vertente anteroinferior da glenoide.
Fig. 4 Radiografia do ombro após a cirurgia.
O pós-operatório procedeu sem complicações. O paciente cumpriu 4 semanas de imobilização
e posterior tratamento fisiátrico.
No seguimento pós-operatório, foi verificado um bom resultado funcional, sem novos
episódios de luxação e sem queixas álgicas significativas. O escore na escala Disabilities of the Arm, Shoulder and Hand (DASH) antes da cirurgia foi de 51,6 e 1 ano após cirurgia foi de 18,3.
Um ano após cirurgia, o arco de movimento com limitação de 2 vértebras de rotação
interna, era de 20° de rotação externa e elevação anterior ativa de 100°. O teste
de apreensão anterior e posterior, o “load and shift test,” e o teste do sulco foram negativos.
Radiograficamente, foram observados fragmentos ósseos consolidados na glenoide, mantendo
adequado posicionamento dos parafusos canulados. Foram ainda observadas alterações
degenerativas ligeiras da articulação glenoumeral, sobretudo na porção inferior (grau
I da classificação Samilson e Prieto) ([Fig. 5]).
Fig. 5 Radiografia do ombro 1 ano após a cirurgia.
Discussão
No caso descrito, são vários os fatores que dificultam a criação de estabilidade no
ombro:
-
A extensa destruição óssea da glenoide (cerca de 50% do diâmetro anteroposterior na
porção inferior da glenoide) pela lesão óssea de Bankart e a progressão da erosão
pelos repetidos episódios de luxação encontram-se bem documentadas como fatores de
aumento de instabilidade e dificuldade no tratamento.[6]
-
O fragmento ósseo de Bankart encontrava-se inviável para osteossíntese devido à sua
reabsorção e fragmentação desde o episódio traumático inicial até o diagnóstico.
-
A fratura do coracoide, com reabsorção de parte substancial do fragmento ósseo, tornava
a criação de batente ósseo com a coracoide insuficiente para isoladamente criar estabilidade
no ombro deste paciente.
Neste contexto, os autores optaram por combinar as técnicas de Bristow-Latarjet e
de Eden-Hybinett já descritas. Assim, obteve-se estabilidade glenoumeral pela associação
do efeito de batente ósseo e aumento da superfície articular da glenoide criados pelo
fragmento de enxerto tricortical ilíaco,[7] com o efeito estabilizador mecânico da apófise coracoide e também importante efeito
estabilizador dinâmico do tendão conjunto.[8]
As lesões osteocartilagíneas resultantes das luxações recorrentes prévias e a congruência
não perfeitamente anatômica da glenoide após a cirurgia levam a alterações degenerativas
progressivas, sobretudo na cabeça umeral. Esta complicação é mais comum nos procedimentos
de Eden-Hybinett, comparativamente à técnica de Bristow-Latarjet isoladamente.[9] Neste caso, o grau de osteoartrose um ano após cirurgia é coincidente com o descrito
na literatura para os graus I e II da classificação Samilson e Prieto, contudo com
períodos de seguimento variáveis, dificultando a comparação.[6]
A estabilidade alcançada no paciente descrito é corroborada pela baixa taxa de recorrência
de luxação após tratamento cirúrgico com aumento ósseo anterior. A incidência descrita
é de até cerca de 4.9% (4 dos 102 pacientes, todos associados a episódios traumáticos
ou convulsões, após cirurgia de Latarjet).[6]
[10] Não se encontrou qualquer descrição na literatura da taxa de recidiva com a associação
de procedimentos descrita.
Este caso relata uma associação pouco comum de fraturas, salientando a importância
de um elevado índice de suspeição clínica inicial e de observação radiológica minuciosa
para o diagnóstico de todas as lesões presentes.
Além disso, reporta-se uma associação de técnicas cirúrgicas cujo sucesso terapêutico,
apesar de se encontrar bem documentado isoladamente, merece maior estudo quando usado
de forma conjugada para corroborar os bons resultados obtidos neste caso, podendo
ser um procedimento a levar em conta em casos futuros semelhantes.