Palavras-chave autoenxerto - instabilidade articular - lesões do ligamento cruzado anterior - reconstrução do ligamento cruzado anterior
Introdução
O canto posterolateral (CPL) é composto por três estruturas primárias: o ligamento colateral fibular, o tendão poplíteo, e o ligamento popliteofibular. Essa região é responsável por limitar a rotação externa, o movimento em varo, e a translação posterior. A lesão do CPL pode ser negligenciada, o que impacta diretamente o prognóstico, e resulta em instabilidade residual, dor crônica, deformidades e falha do reparo de outras estruturas.[1 ] Existem diversas técnicas de reconstrução do CPL, e o uso de enxertos autólogos isquiotibiais (EITs) ou homólogos são as mais comuns.[2 ] Uma opção pouco utilizada para reconstruções ligamentares no joelho é o enxerto do tendão fibular longo (ETFL). Alguns estudos relatam seu uso para reconstrução do ligamento cruzado anterior (LCA), como o publicado em 2008 por Kerimoğlu et al.,[3 ] que analisou o resultado em 29 pacientes. Apesar de ser um enxerto já utilizado há alguns anos, não foi encontrado na literatura nenhum caso de reconstrução do canto posterolateral com o seu uso. Neste artigo, descrevemos o caso de um paciente submetido à reconstrução não anatômica do CPL com uso do ETFL e seu acompanhamento pós-operatório.
Relato de Caso
Paciente do sexo masculino, 33 anos, com queixa de dor e instabilidade no joelho esquerdo, foi submetido à reconstrução do LCA com uso de EIT ipsilateral com falha do enxerto e deformidade em varo após um ano. Ele também foi submetido à revisão da reconstrução do LCA com EIT contralateral e osteotomia valgizante tibial. Após 10 semanas da cirurgia, o paciente manteve dor e instabilidade. Ao exame físico, ele apresentava: deformidade em varo do joelho esquerdo ([Fig. 1 ]), estresse em varo positivo com o joelho a 300 e 00 de flexão, dial test positivo a 300 , teste da gaveta anterior positivo em rotação interna, e pivot shift reverso positivo. Exames de imagem atuais demonstraram manipulação prévia na tíbia proximal esquerda com cunha de abertura medial e placa e parafusos, com sinais de consolidação óssea ([Fig. 2 ]). Na ressonância magnética, foram evidenciados sinais de lesão negligenciada do canto posterolateral. No planejamento pré-operatório, optou-se pelo uso do ETFL para reconstrução do CPL por técnica não anatômica.
Fig. 1 Imagem clínica panorâmica dos membros inferiores na avaliação pré-operatória.
Fig. 2 Radiografias pré-operatórias anteroposterior e lateral do joelho esquerdo.
Com o paciente em decúbito dorsal horizontal, foi realizada uma incisão de 2 cm, posterior ao maléolo lateral, ipsilateral à lesão ligamentar. A dissecção, identificação e isolamento dos tendões fibulares longo e curto ([Fig. 3 ]) foram feitas. Esses dois tendões foram então suturados, e o tendão do fibular longo, reparado e seccionado proximalmente à sutura. Com o uso de um tenótomo, foi realizada a retirada do tendão ([Fig. 4 ]). Pela via lateral do joelho, foi feita reconstrução não anatômica do CPL por visualização direta ([Fig. 5 ]). Após a reconstrução, a estabilidade do joelho mostrou-se satisfatória. No acompanhamento pós-operatório, o paciente não relatou queixas álgicas no tornozelo esquerdo, e manteve o arco de movimento do tornozelo preservado.
Fig. 3 Imagem intraoperatória. Incisão de 2 cm posterior ao maléolo lateral ipsilateral à lesão ligamentar. Identificação e isolamento dos tendões fibulares longo e curto.
Fig. 4 Imagem intraoperatória. Retirada do enxerto do tendão fibular longo.
Fig. 5 Imagem intraoperatória. Reconstrução não anatômica do canto posterolateral por via lateral e visualização direta.
Discussão
No nosso meio, os tendões dos isquiotibiais costumam ser a primeira escolha na reconstrução ligamentar dos joelhos. Nas lesões multiligamentares, essa escolha de enxerto pode não ser suficiente para manter a estabilidade do joelho de forma adequada, pois as técnicas necessitam de um grande volume de enxerto para que a anatomia seja recuperada. Dessa forma, outros enxertos são utilizados como forma de aumentar o comprimento e o diâmetro. Alguns deles são bastante consagrados, como os enxertos autólogos do tendão do quadríceps e do tendão patelar, ou até mesmo os enxertos homólogos disponíveis em bancos de enxerto. Entretanto, na prática clínica, observamos que os enxertos do mecanismo extensor não são adequados para algumas técnicas e podem causar limitações, como dores no sítio de retirada e limitações para atividades diárias, principalmente em pacientes que necessitam realizar atividades ajoelhados. A outra opção seria o uso de enxerto homólogo, que tem uma maior flexibilidade quanto ao formato e configuração para a realização de técnicas diversas; no entanto, ele tem uso limitado no nosso meio devido ao alto custo e à indisponibilidade em alguns serviços, além de estar sujeito à rejeição imunológica e transmissão de doenças.
Nesse contexto, o tendão do músculo fibular longo surgiu como uma alternativa de enxerto para reconstrução do ligamento cruzado anterior. Há relatos de pacientes que sofrem com dor anterior no joelho e hipotrofia da musculatura da coxa após serem submetidos a reconstruções do LCA com enxertos do mecanismo extensor.[4 ] Dessa forma, o tendão do músculo fibular longo tem uma posição anatômica superficial, que facilita o acesso cirúrgico, e tem um bom comprimento, que permite versatilidade para a realização de diversas técnicas de reconstrução ligamentar. Deve-se, no entanto, considerar as possíveis consequências para o tornozelo, sua estabilidade e biomecânica sem o fibular longo. Estudos[4 ]
[5 ]
[6 ]
[7 ] apontam que pacientes submetidos a retirada de enxerto do fibular longo não apresentam alterações significativas na força muscular, no arco de movimento, na aplicação de carga, e na marcha em comparação com o lado não operado, e têm uma evolução sem queixas álgicas e sem prejuízo para atividades físicas. Dessa forma, observa-se na literatura[3 ]
[4 ]
[5 ]
[7 ] que o uso do enxerto autólogo do fibular longo ipsilateral à lesão ligamentar se mostra seguro e com baixa taxa de morbidade, um dos motivos pelo qual se optou pelo seu uso no paciente descrito neste estudo. Apesar de já amplamente descrito como boa opção na reconstrução do ligamento cruzado anterior, não foi encontrado na literatura nenhum caso do uso do mesmo enxerto na reconstrução do canto posterolateral. Em um paciente com lesão do canto posterolateral negligenciada, já submetido a retirada de enxerto dos isquiotibiais bilateralmente e sem a opção do uso de enxerto de banco de tecidos, a escolha por um enxerto que trouxesse mínimas complicações e tivesse acesso cirúrgico simplificado, evitando manipulação cirúrgica excessiva em um paciente já submetido a diversos procedimentos, foi considerada a mais adequada.
O uso do enxerto do tendão fibular longo para a reconstrução ligamentar do joelho é uma boa opção, e deve fazer parte do arsenal de conhecimentos do cirurgião, pois aumenta as opções de técnicas. É muito importante o exame físico adequado de todas as estruturas do joelho para que lesões ligamentares como a do canto posterolateral não sejam negligenciadas e se tornem o motivo de falhas do tratamento.