CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2022; 57(04): 702-708
DOI: 10.1055/s-0040-1722577
Nota Técnica
Artroscopia e Traumatologia do Esporte

Artroscopia do ombro – Criação de um modelo de treinamento acessível[*]

Article in several languages: português | English
1   Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
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Resumo

O objetivo do presente trabalho é criar um modelo de treinamento em artroscopia de ombro de baixo custo abaixo de 100 dólares, tornando-o acessível à capacitação prática de estudantes de medicina e residentes. O modelo foi criado utilizando um cano de PVC de 150 mm de diâmetro em 90 graus e um modelo de ombro sintético. O posicionamento das peças foi disposto de forma a simular a posição de decúbito lateral com membro superior em tração, frequente nas artroscopias. Para auxiliar no treinamento, foram demarcados pontos coloridos na glenóide e foi confeccionado um modelo de parte do manguito rotador na porção superior da escápula. Foi possível confeccionar um modelo para treinamento de artroscopia do ombro com um valor abaixo de 100 dólares, de fácil manufatura, que pode ser um auxiliar no treinamento de cirurgiões.


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Introdução

No ombro, a artroscopia pode ser utilizada para procedimentos simples, como bursectomia, até procedimentos complexos como reinserção labral.[1] Ainda hoje, a maioria dos treinamentos para formar um cirurgião artroscópico é realizada de maneira tradicional, no qual o aprendiz assiste o procedimento e segue para a prática supervisionada. Este modelo de ensino leva a cirurgias mais longas, aumento de complicações operatórias, além de preocupações éticas e legais. Há uma busca universal de melhora na qualidade com concomitante diminuição de custos dos serviços de saúde.[2]

Os simuladores proporcionam uma oportunidade de desenvolver e manter habilidades em cirurgias artroscópicas de forma segura e em tempo eficiente. Estudos têm demonstrado uma melhoria na performance de treinamento e na transferência dessas habilidades adquiridas no simulador para a sala de operação.[2] Entretanto, o custo dos mesmos pode se demonstrar proibitivo.[3]

O objetivo do presente trabalho é criar um modelo de treinamento em cirurgia artroscópica de ombro abaixo de 100 dólares, acessível à capacitação prática de estudantes de medicina e residentes.


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Materiais e Métodos

Projeto de pesquisa desenvolvido no Laboratório de Habilidades em Ortopedia do Setor de Ciências da Saúde da nossa universidade. Foram utilizados materiais de fácil obtenção e de baixo custo para montar o modelo de treinamento ([Tabela 1]).

Tabela 1

MATERIAL

CUSTO

Cano joelho 90° 150mm Tigre

R$ 26

Prolongador PVC 150 × 200mm para caixa sifonada Tigre

R$ 15

2 CAP 150mm Tigre

R$ 43

1 modelo de ombro Esquerdo Edutec (EB3007)

R$ 119

4 parafusos 3,5 × 14mm aglomerado Bemfixa

R$ 6,81

2 parafusos 2 × 6mm aglomerado Maxmix

R$ 5,50

1 cantoneira 30mm Bemfixa

R$ 8,01

16 cm elástico chato para costura 25mm

R$ 16

Supercola – Loctite 60sec

R$ 17

VALOR TOTAL

R$ 256,32

O projeto foi submetido à avaliação do comitê de ética em pesquisa em seres humanos da nossa instituição e foi aprovado no dia primeiro de abril de 2017 com o número 1.994.655


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Estrutura Externa

Para essa montagem, foi usado um cano de PVC, chamado Joelho 90° 150 milímetros (bitola) ([Figura 1a]). O fechamento da extremidade superior (proximal) foi realizado com um tubo de conexão em PVC 150 milímetros, cortado em 125 milímetros e introduzido na extremidade do joelho ([Figura 1b]). Após isso, foi colocada uma tampa de PVC (conhecida como CAP) de 150 milímetros ([Figura 1c]). No fechamento da extremidade inferior, também foi utilizado um tampão de 150 milímetros ([Figura 1d]).

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Fig. 1 (A) cano de PVC joelho; (B) tubo de conexão; (C) e (D) tampa de fechamento.

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Montagem

Úmero: foi cortado o segmento proximal de 130 milímetros de um modelo sintético de úmero. Esse modelo foi fixado à tampa inferior (CAP) com um parafuso 3,5 × 14 milímetros para aglomerado marca Bemfixa (Juquitiba, São Paulo, Brasil). A posição foi excêntrica, a 15 milímetros do centro da tampa ([Figura 2a]).

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Fig. 2 (A) fixação do úmero na tampa; (B) corte da escápula, furo para fixação e ponto de fixação na estrutura externa; (C) clavícula cortada; (D) montagem interna.

Escápula: foi seccionado o ângulo superior da escápula, a 30 milímetros da incisura da escápula, com ângulo de 60°. Ela foi fixada ao joelho de PVC com uma cantoneira de metal de 10 milímetros, com dois furos. Um furo na escápula foi feito a 80 milímetros da margem lateral, e o outro com 20 milímetros da extremidade seccionada. Esses furos na escapula foram fixados por parafuso no joelho de PVC, em orifícios a 45 milímetros da extremidade inferior e 35 milímetros da linha média do cano ([Figura 2b]).

Clavícula: foram utilizados 65 milímetros distais. A clavícula foi fixada ao joelho de PVC por orifício a 200 milímetros da extremidade distal do modelo e a 30 milímetros lateral ao ponto de fixação da escápula. Ao montar as tampas, o úmero se posiciona na posição anatômica ([Figura 2c] e [2d]).


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Preparo dos Itens de Treinamento

Manguito: para tal, foi usada uma fita elástica chata, de 25 milímetros de largura e 160 milímetros de comprimento, dobrada e colada com supercola no seu centro. Ela foi fixada no modelo com dois parafusos (2 × 6 milímetros para aglomerado Maxmix, São Paulo, Brasil), sendo um na espinha da escápula e o segundo na parte inferior do acrômio ([Figura 3a] e [b]).

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Fig. 3 (A) fita dobrada e fixada na escápula (simulando o tendão supraespinhal); (B) orifício de manipulação do manguito e linha de referência da fita; (C) pontos de referência da glenóide para triangulação.

Glenóide: foram pintados cinco pontos de referência com cores distintas, um no centro da cavidade e os outros quatro nos bordos, formando os pontos três, seis, nove e doze horas de um relógio a partir do ângulo lateral ([Figura 3c])


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Portais Artroscópicos

Foram confeccionadas três perfurações de 15 milímetros de diâmetro, representando os portais anterior, lateral e posterior. O portal posterior ficou na região posterior do modelo, a 40 milímetros da extremidade distal do cano. O portal anterior foi confeccionado na região anterior, a 45 milímetros da extremidade distal. Por fim, o portal lateral ficou no rebordo lateral do modelo, a 100 milímetros da extremidade distal ([Figura 4]). Mais portais podem ser confeccionados conforme a necessidade.

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Fig. 4 Portais artroscópicos: posterior (de visualização), lateral e anterior (para manipulação dos tecidos e triangulação).

Após a montagem final do modelo, ele tem uma aparência em “L” e pode ser usado tanto em posição de decúbito lateral quanto em posição de cadeira de praia, necessitando apenas virar o modelo. Assim, o modelo é utilizado para visualização e triangulação das estruturas básicas do ombro, com uso de um artroscópio ([Figura 5]).

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Fig. 5 (A) Modelo de treinamento em artroscopia de ombro pronto; (B) modelo em uso com artroscópio; (C) exercício de triangulação com “probe” em decúbito lateral; (D) exercício de manipulação de tecido por tração do elástico (supraespinhal) em cadeira de praia.

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Discussão

As doenças do ombro que podem ser tratadas de forma artroscópica compreendem da lesão do manguito até liberações nervosas. O treinamento para este tipo de cirurgia pode levar anos. Um treinamento inadequado pode produzir um cirurgião que tem uma taxa alta de complicações, resultados insatisfatórios, e com baixa taxa de produtividade. A simulação pode ser usada para melhorar habilidades e diminuir o tempo cirúrgico.[4]

O simulador deve fornecer um ambiente que se aproxima das características do ambiente em que a tarefa eventualmente será realizada, deve ser capaz de imitar, em tempo real, visual e espacialmente as características do procedimento e fornecer feedback tátil realista.[1] [2]

Modelos cadavéricos são o padrão ouro para o treinamento simulado, mas as desvantagens são o custo, a disponibilidade e a alta demanda logística para armazenamento.[5]

Modelos físicos, como aparelhos de alta tecnologia, como realidade virtual com reação tátil, têm a vantagem de dispor de inúmeros recursos, mas a disponibilidade é limitada pelo custo (mais de 50 mil dólares). Modelos secos anatômicos já foram testados e validados para o treinamento, com ganho de habilidades cirúrgicas equivalentes aos modelos virtuais, mas ainda assim podem ter alto custo, chegando a mais de três mil dólares (www.gtsimulators.com).[1] [3]

O presente simulador foi construído com o orçamento abaixo de 100 dólares, com materiais de fácil aquisição, tornando-o acessível para qualquer centro de ensino. Dal Molin et al.[1] demonstraram que esse tipo de simulador é competente para treinamentos de triangulação, percepção de profundidade, redução do número de movimentos para realizar uma tarefa e controle do tempo cirúrgico. Esse tipo de modelo também pode ser confeccionado para outras articulações.[6] [7]

Este modelo permite observar as relações anatômicas entre cabeça e glenóide, identificar o processo coracoide e a clavícula distal, identificar um análogo do tendão supraespinhal, localizar o acrômio e a região subacromial, aprender triangulação com um “probe” para tocar nas diversas partes da articulação e do tendão supraespinhal simulado, assim como tracionar o tendão supraespinhal com o dito “probe” ou qualquer outro instrumento disponível.

Por ser um modelo criado com estruturas pré-fabricadas, as limitações desta versão incluem a falta de partes moles, de sangramento, e de estruturas anatômicas que possam ser reparadas. Este projeto tem foco no desenvolvimento de modelos de treinamento, e pode ser evoluído conforme a necessidade do cirurgião, incluindo tecido para simular lábrum, ligamentos, demais tendões do manguito, sendo ainda possível criar dispositivos para sutura. Outro ponto importante é que, embora o modelo seja composto por materiais de baixo custo, o artroscópio é necessário.


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Conclusão

O simulador de artroscopia do ombro cumpriu a premissa de ter custo abaixo de 100 dólares. Todos os componentes para a construção podem ser obtidos em comércio comum e o modelo pode ser manufaturado pelo próprio indivíduo que o utilizará.


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Conflito de Interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

* Trabalho desenvolvido no Laboratório de Habilidades em Ortopedia do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.


  • Referências

  • 1 Dal Molin FF, Mothes FC, Feder MG. Effectiveness of the Videoarthroscopy Learning Process in Synthetic Shoulder Models. Rev Bras Ortop 2015; 47 (01) 83-91
  • 2 Tuijthof GJ, Visser P, Sierevelt IN, Van Dijk CN, Kerkhoffs GM. Does perception of usefulness of arthroscopic simulators differ with levels of experience?. Clin Orthop Relat Res 2011; 469 (06) 1701-1708
  • 3 Hansen E, Marmor M, Matityahu A. Impact of a three-dimensional “hands-on” anatomic teaching module on acetabular fracture pattern recognition by orthopaedic residents. J Bone Joint Surg Am 2012; 94 (23) e1771-e1777
  • 4 Arealis G, Holton J, Rodrigues JB. et al. How to Build Your Simple and Cost-effective Arthroscopic Skills Simulator. Arthrosc Tech 2016; 5 (05) e1039-e1047
  • 5 Butler A, Olson T, Koehler R, Nicandri G. Do the skills acquired by novice surgeons using anatomic dry models transfer effectively to the task of diagnostic knee arthroscopy performed on cadaveric specimens?. J Bone Joint Surg Am 2013; 95 (03) e15 (1–8)
  • 6 Milcent PAA, Coelho ARR, Rosa SP, Fonseca YLD, Schroeder AZ, Stieven Filho E. Um simulador de artroscopia de joelho acessível. Rev Bras Educ Med 2020; 44 (01) e37
  • 7 Nunes CP, Kulcheski AL, Almeida PA, Stieven Filho E, Graeslls XS. Criação de um modelo de treinamento em Flavectomia Endoscópica de baixo custo. Coluna/Columna 2020; 19 (03) 223-227

Endereço para correspondência

Leonardo Dau, Mestre
Rua Herculano Carlos Franco de Souza, 438
Água Verde, Curitiba, PR, 80240-290
Brasil   

Publication History

Received: 16 July 2020

Accepted: 02 October 2020

Article published online:
19 April 2021

© 2021. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commercial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

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  • Referências

  • 1 Dal Molin FF, Mothes FC, Feder MG. Effectiveness of the Videoarthroscopy Learning Process in Synthetic Shoulder Models. Rev Bras Ortop 2015; 47 (01) 83-91
  • 2 Tuijthof GJ, Visser P, Sierevelt IN, Van Dijk CN, Kerkhoffs GM. Does perception of usefulness of arthroscopic simulators differ with levels of experience?. Clin Orthop Relat Res 2011; 469 (06) 1701-1708
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  • 4 Arealis G, Holton J, Rodrigues JB. et al. How to Build Your Simple and Cost-effective Arthroscopic Skills Simulator. Arthrosc Tech 2016; 5 (05) e1039-e1047
  • 5 Butler A, Olson T, Koehler R, Nicandri G. Do the skills acquired by novice surgeons using anatomic dry models transfer effectively to the task of diagnostic knee arthroscopy performed on cadaveric specimens?. J Bone Joint Surg Am 2013; 95 (03) e15 (1–8)
  • 6 Milcent PAA, Coelho ARR, Rosa SP, Fonseca YLD, Schroeder AZ, Stieven Filho E. Um simulador de artroscopia de joelho acessível. Rev Bras Educ Med 2020; 44 (01) e37
  • 7 Nunes CP, Kulcheski AL, Almeida PA, Stieven Filho E, Graeslls XS. Criação de um modelo de treinamento em Flavectomia Endoscópica de baixo custo. Coluna/Columna 2020; 19 (03) 223-227

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Fig. 1 (A) cano de PVC joelho; (B) tubo de conexão; (C) e (D) tampa de fechamento.
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Fig. 1 Polyvinyl chloride (PVC) knee joint pipe; (B) connecting tube; (C) and (D) closing cap.
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Fig. 2 (A) fixação do úmero na tampa; (B) corte da escápula, furo para fixação e ponto de fixação na estrutura externa; (C) clavícula cortada; (D) montagem interna.
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Fig. 2 (A) Humeral fixation at the cap; (B) section of the scapula, hole for fixation and fixation point at the external structure; (C) clavicle section; (D) internal assembly.
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Fig. 3 (A) fita dobrada e fixada na escápula (simulando o tendão supraespinhal); (B) orifício de manipulação do manguito e linha de referência da fita; (C) pontos de referência da glenóide para triangulação.
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Fig. 3 (A) Folded tape fixated at the scapula (simulating the supraspinatus tendon); (B) cuff handling hole and tape reference line; (C) glenoid landmarks for triangulation.
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Fig. 4 Portais artroscópicos: posterior (de visualização), lateral e anterior (para manipulação dos tecidos e triangulação).
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Fig. 5 (A) Modelo de treinamento em artroscopia de ombro pronto; (B) modelo em uso com artroscópio; (C) exercício de triangulação com “probe” em decúbito lateral; (D) exercício de manipulação de tecido por tração do elástico (supraespinhal) em cadeira de praia.
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Fig. 4 Arthroscopic portals: posterior (for visualization), lateral and anterior (for tissue manipulation and triangulation).
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Fig. 5 (A) Complete shoulder arthroscopy training model; (B) model in use with arthroscope; (C) triangulation exercise with a probe in lateral recumbency position; (D) tissue manipulation exercise by elastic (supraspinatus) traction in the beach chair position.