Palavras-chave
dedo em gatilho/diagnóstico - dedo em gatilho/terapia - dedo em gatilho/cirurgia -
tenossinovite
Introdução
Notta[1] foi o primeiro a descrever o dedo em gatilho como uma patologia desencadeada por
alterações no tendão flexor e sua bainha. Hueston et al.[2] demonstraram em um estudo que o arranjo espiral na arquitetura das fibras intratendíneas
leva à formação de uma nodulação ao passar por um ponto de estenose.
Brozovich et al.[3] descreveram alterações histológicas na polia A1, que sofre uma metaplasia com substituição
de fibroblastos por condrócitos, sendo um dos motivos de aumento de pressão entre
o tendão e o túnel osteofibroso no dedo em gatilho.
Não obstante a tenossinovite e a alteração da polia A1 serem identificados como fatores
desencadeantes, não há consenso na literatura sobre a verdadeira causa, sendo que
a sua verdadeira etiologia permanece desconhecida.[4]
A definição do dedo em gatilho é que se trata de uma afecção na qual o tendão flexor
tem o seu deslizamento bloqueado ao passar no sistema de polias, notadamente na polia
A1, não conseguindo mais excursionar e retornar à posição inicial, impedindo que o
dedo faça o seu movimento natural de flexão e extensão.
Essa afecção acomete de 2 a 3% da população, mais na 6ª década de vida.[5] O dedo mais afetado é o anular, seguido pelos dedos médio, polegar, mínimo e indicador.
A mão dominante é acometida em 70% das vezes. As mulheres têm o dobro de chance de
terem dedo em gatilho do que os homens.[6]
Pacientes com diabetes têm 15% a mais de chance de desenvolver dedo em gatilho do
que a população em geral. Entretanto, quando tratados pela cirurgia, têm a mesma evolução
que pacientes não diabéticos, assim como não têm maior chance de apresentarem múltiplos
dedos com gatilho.[7]
Por vezes, o dedo em gatilho tem sido associado com a cirurgia de liberação do túnel
do carpo, corroborando com esta concepção, numa revisão sistemática da literatura,
Lin et al.,[8] que descreveram um índice médio de 8,5% de desenvolvimento da afecção após o procedimento
para abertura do retináculo flexor.
O dedo em gatilho também acomete as crianças, sendo comumente denominado como “gatilho
congênito”, tendo diferenças na apresentação clínica.
O “gatilho congênito” no polegar é 10 vezes mais comum do que o nos outros dedos,
e os pacientes geralmente apresentam ∼ 2 anos de idade.[9] A incidência de “gatilho congênito” é de 3,3 por 1.000 nascidos vivos.[10] Apesar da etiologia do “gatilho congênito” ser desconhecida, sabe-se que se trata
de uma afecção adquirida. Autores avaliaram 7.000 recém-nascidos e não encontraram
nenhum dedo em gatilho.[11]
Quadro clínico
O sintoma geralmente inicia com dor na área coincidente à polia A1 nos dedos. A ocorrência
surge gratuitamente ou posterior a uma ação manual continuada preambular. A dor pode
continuar por meses sem alteração na mobilidade, ou progredir para um bloqueio do
movimento do dedo, inicialmente pela manhã, persistindo nesta situação ou avançando
para um gatilho mais constante, a toda flexão ativa do dedo. Similarmente, o fenômeno
do gatilho pode ter início repentino, sem um pródromo doloroso. Esta manifestação
sobrechega meramente em um dígito ou em mais de um ao mesmo tempo.
Quinnell[4] estudou os resultados da injeção de hidrocortisona na polia A1 em 48 dedos em gatilho
de 43 pacientes. Ele dividiu os diferentes grupos de dedos em gatilho em cinco tipos,
relacionando-os com a flexão e extensão, sendo o tipo “0” com movimento normal, tipo
“I” o gatilho esporádico, tipo “II” o gatilho corrigível ativamente, tipo “III” o
gatilho corrigível apenas passivamente, e o tipo “IV” com deformidade fixa. Esta classificação
foi modificada por Green DP[12] conforme apresentado na [Tabela 1].
Tabela 1
Tipo
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Característica clínica
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I (pré-gatilho)
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Dor; história de travamento, mas não demonstrável no exame clínico; sensibilidade
a palpação acima da polia A1
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II (ativo)
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Travamento demonstrável, mas o paciente consegue estender ativamente o dedo
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III (passivo)
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Travamento demonstrável necessitando de extensão passiva (grau IIIA) ou impossibilidade
de flexão ativa do dedo (grau IIIB)
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IV (contratura)
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Travamento demonstrável com uma contratura em flexão da articulação interfalângica
proximal
|
É interessante destacar que o dedo em gatilho se trata de um fenômeno que sobrevém
unicamente no decurso da flexão ativa do dedo.
O destravamento do dedo pode sobrevir do movimento ativo ou necessitar de uma força
externa para tal fim.
Fortuitamente, o dedo apresentar-se-á flexionado permanentemente com impedimento tanto
na extensão ativa quanto passiva, tendo o desbloqueio inexecutável, não obstante a
energia praticada. Outras vezes estará estendido perenemente, tendo impedimento na
flexão ativa.
Ocasionalmente, a articulação interfalângica proximal progride para uma contratura
em flexão, habitualmente corrigível pela extensão passiva, não obstante a dor relacionada
à retificação do dedo.
Ademais, o dedo em gatilho pode estar correlacionado a doenças de depósito (sarcoidose,
amiloidose), moléstias com alteração do metabolismo (hipotireoidismo, diabetes), assim
como a enfermidades autoimunes (artrite reumatoide, lúpus).[13]
Diagnóstico
O diagnóstico é clínico na maior parte das vezes. Ele depende unicamente da existência
do travamento do dedo no decorrer da movimentação ativa.
Na hipótese de o dedo apresentar-se estendido ou flexionado permanentemente, sendo
impossibilitado de completar a flexão ativa ou a extensão passiva, respectivamente
nesta ordem, a determinação do diagnóstico será mais intrincada.
No dígito estendido com impraticabilidade na flexão ativa, é imperioso descartar uma
lesão fechada dos tendões flexores. Nesta situação, após estabilização da falange
média, o paciente geralmente será capaz de flexionar ativamente a falange distal,
comprovando sua integridade. Outra possibilidade a ser diferenciada será a de contratura
em extensão por dano articular, sendo a radiografia interessante nesta situação.
Já em um dedo flexionado persistentemente, com incapacidade na extensão passiva, será
imprescindível diferenciar de uma aderência tendinosa dos tendões flexores ou da contratura
em flexão do dedo.
Na incerteza, o exame de ultrassom mostrará o tendão flexor e suas alterações morfológicas,
assim como o espessamento da polia flexora.[14]
Tratamento
O tratamento do dedo em gatilho geralmente se inicia com intervenções não cirúrgicas
que são instituídas por pelo menos 3 meses. Nos pacientes em quem haja apresentação
inicial com deformidade em flexão ou incapacidade de flexão do dedo, pode haver indicação
mais precoce do tratamento cirúrgico em razão da intensidade do quadro álgico e da
incapacidade funcional do paciente.
Métodos não cirúrgicos
Fisioterapia
Salim et al.,[15] em um estudo comparando a eficácia da infiltração com corticosteroide versus fisioterapia, a fisioterapia atingiu 68,6% de sucesso versus 97% da infiltração no tratamento do dedo em gatilho.
Watanabe et al.,[16] em um estudo, realizando fisioterapia feita pelas próprias mães dos pacientes com
“polegar em gatilho congênito”, tiveram como resultado a taxa de cura de 80% para
os estágios 2 (gatilho que destrava no movimento ativo) e de 25% para o estágio 3
(gatilho que destrava somente no movimento passivo).
Imobilização
A imobilização foi descrita por Patel et al.[17] por meio de órtese que mantinha a articulação metacarpofalângica em 10° a 15° de
flexão com as articulações interfalângicas livres por um tempo médio de 6 semanas.
O tratamento nos dedos indicador, médio anular e mínimo foi bem sucedido em 66%, e
nos polegares em 50%.
Infiltração
A infiltração com corticosteroide é a modalidade de tratamento não cirúrgico mais
utilizada, sendo descrita por inúmeros autores.[18]
[19]
[20]
[21]
[22].
Sato et al.,[18] em um estudo prospectivo randomizado, comparando os resultados do tratamento do
dedo em gatilho pela infiltração versus liberação percutânea versus cirurgia aberta, obtiveram 86% de cura com a injeção de metilpredinisolona.
Mardani-Kivi et al.[19] compararam os resultados da infiltração com e sem o auxílio de ultrassom, tendo
94% de sucesso igualmente em ambos os grupos.
Apesar dos resultados animadores com glucocorticóides, é necessário cautela nos pacientes
diabéticos, que podem ter importante elevações nos níveis glicêmicos.[20]
Roberts et al.[21] compararam os resultados da infiltração com triancinolona, dexametasona e metilpredinisolona,
e concluíram que os dedos em gatilho tratados com triancinolona têm maior chance de
necessitar de uma segunda injeção do que os tratados com metilpredinisolona. ou dexametasona.
Newport et al.,[22] em estudo retrospectivo, analisaram a segurança e a eficácia do tratamento do dedo
em gatilho, inicialmente por meio da infiltração de betametasona. Os autores examinaram
235 pacientes com 338 dedos em gatilho, 71% na mão direita, sendo 63% mulheres e 37%
homens. O período de seguimento médio foi de 35 meses. Quanto aos resultados, 49%
melhoraram após uma infiltração, 23% após 2 infiltrações e 5% após 3 infiltrações.
O restante dos pacientes que não melhoraram, totalizando 33% deles, foram submetidos
ao tratamento operatório aberto, através da liberação cirúrgica da polia A1. Segundo
estes autores, o tratamento inicial do dedo em gatilho deveria ser com a infiltração
de corticosteroide e a sua utilização prévia não prejudicaria o resultado de um tratamento
operatório caso este fosse necessário.
Nossa preferência é por até duas infiltrações com intervalo de no mínimo 1 mês, utilizando
acetato de metilprednisolona ou dipropionato de betametasona no interior do túnel
osteofibroso.
Técnica
Nós realizamos uma anestesia local com 2 ml de lidocaína a 0,5%, subcutânea, no local
coincidente com a polia A1 do dedo afetado. Aproximadamente após 5 minutos, introduzimos
a agulha no tendão flexor, através da polia A1. Recuamos a agulha até sentir diminuição
da resistência no êmbolo da seringa para então injetar o corticoide. Preferimos utilizar
acetato de metilprednisolona ou dipropionato de betametasona ([Figura 1]).
Fig. 1 Injeção de corticosteroide no interior do túnel osteofibroso da polia A1.
Métodos Cirúrgicos
A terapêutica cirúrgica usualmente é indicada quando houver falha do tratamento não
cirúrgico.
A cirurgia consiste na incisão da polia A1. Ela pode ser executada na forma tradicional
aberta ou por via percutânea.
Método percutâneo
Eastwood et al.[23] foram os pioneiros na liberação percutânea, apresentando 94% de resultados satisfatórios.
Sato et al.[24] realizaram a liberação percutânea do dedo em gatilho, tendo 96% de remissão, com
recidiva nos pacientes do tipo I de Quinnell. Eles concluíram que o gatilho esporádico
(tipo I), que não ocorre a toda flexão do dedo, não seria indicado para a liberação
percutânea, uma vez que a extinção do travamento é o que indica o sucesso da cirurgia.
Já em um segundo estudo, Sato et al.[18] excluíram o gatilho do tipo I, tendo 100% de cura com a liberação percutânea.
Bain et al.[25] verificaram que o feixe neurovascular do polegar situa-se a 2 mm da polia A1, ficando
mais vulnerável a lesão pela agulha. Apesar disso, Sato et al.[18] realizaram a liberação percutânea no polegar e não tiveram lesão de nervos digitais.
Por se tratar de um método fechado, autores como Lee et al.[26] compararam a liberação percutânea com e sem auxílio de ultrassom e concluíram que
a visualização da polia A1 pelo exame de imagem diminui a possibilidade de incisões
incompletas.
Técnica
O paciente é posicionado mantendo a mão afetada em supinação. Com uma caneta marcadora
de pele, fazemos um traço sobre o eixo longitudinal do dedo. Infiltram-se 2 ml de
anestésico local (lidocaína a 2%, sem vasoconstritor) no tecido subcutâneo e ao redor
da polia A1 ([Figura 2a]). As articulações interfalangianas e as metacarpofalangianas dos dedos deverão ficar
em extensão total com o objetivo de deslocar dorsalmente os feixes neurovasculares,
reduzindo a possibilidade de lesionar essas estruturas durante o procedimento. O bisel
da agulha deve ser posicionado no sentido do seu corte paralelamente ao eixo longitudinal
do dedo ([Figura 2b]). Introduz-se uma agulha hipodérmica 40 × 12 perpendicularmente à pele, no local
correspondente à polia A1. Confirma-se o posicionamento da agulha no tendão flexionando
o dedo e observando o deslocamento concomitante da agulha ([Figura 2c]). Em seguida, é feita a retração da agulha até que ocorra a parada da oscilação
concomitante desta com a movimentação passiva do dedo. Realizam-se movimentos longitudinais
no sentido da polia, a fim de seccioná-la ([Figura 2d]). Solicita-se ao paciente que realize movimentos ativos de flexoextensão do dedo
operado para confirmar se houve liberação total da polia. Caso necessário, repetem-se
os movimentos longitudinais com a agulha, até que se verifique a liberação completa
do gatilho. A seguir, retira-se a agulha, finalizando o procedimento, e realiza-se
o curativo, sem necessidade de imobilização. Os pacientes são orientados a evitar
atividades manuais e a realizar crioterapia com uma bolsa contendo pedras de gelo
no dia da realização do procedimento.
Fig. 2 (a) Anestesia da pele e do tecido celular subcutâneo, com o eixo longitudinal do dedo
demarcado. (b) Posicionamento correto do bisel da agulha no momento de sua introdução. (c) Deslocamento da agulha ao se flexionar passivamente o dedo. (d) Seccionando-se a polia A1.
Método aberto
A cirurgia aberta é o método cirúrgico mais clássico e usualmente evidenciado como
sendo um método com altos índices de resultados satisfatórios.
Turowski et al.[27] mostraram resultados satisfatórios com a cirurgia aberta de 97%.
Leung et al.[28] realizaram a liberação aberta de 161 polegares com “gatilho congênito”, obtendo
95% de resultados satisfatórios.
Técnica
Paciente em decúbito dorsal, após anestesia. Realiza-se uma incisão cutânea transversal,
no local correspondente à polia flexora. Os nervos digitais de cada lado são identificados
e afastados delicadamente e a polia flexora é visualizada. ([Figura 3a]) A polia é incisada no seu sentido longitudinal e o tendão é exposto ([Figura 3b-c]). Após a sutura da pele, cobre-se a ferida com curativo estéril, sem imobilização,
por ∼ 1 uma semana.
Fig. 3 (a) Incisão e abertura da polia flexora. (b) Tendão exposto.
Considerações Finais
Amirfeiz et al.[29] realizaram uma revisão sistemática comparando os tratamentos para o dedo em gatilho
em adultos, e concluíram que a infiltração com corticosteroide como primeiro tratamento
é uma opção razoável. A liberação percutânea realizada por pessoa treinada é segura.
Na falha da infiltração, os métodos cirúrgicos são indicados.
Nós concordamos que a infiltração deve ser indicada como primeira opção terapêutica;
contudo, nos pacientes diabéticos, que podem ter sua glicemia elevada consideravelmente,
temos que ter cautela, principalmente nos doentes com níveis glicêmicos não contrabalançados
pela medicação.
Fiorini et al.[30] realizaram uma revisão sistemática do tratamento do dedo em gatilho e concluíram
que a cirurgia aberta apresenta menor taxa de recidiva quando comparada com os pacientes
tratados com infiltração.
Brozovich et al.[3] assinalaram que de um ponto de vista puramente financeiro, mulheres sem diabetes
com polegar em gatilho devem receber até duas infiltrações antes de serem submetidas
a liberação percutânea.
Nós acreditamos que apesar dos métodos cirúrgicos (aberto e percutâneo) terem maiores
índices de cura quando comparados com a infiltração, conforme nosso estudo[18] evidenciou, são opções mais caras, e devem ser reservadas para a falha do tratamento
não cirúrgico.
Apresentaremos a seguir nosso algoritmo de tratamento ([Figura 4]).
Fig. 4 Algoritmo do tratamento do dedo em gatilho.