Palavras-chave
instabilidade articular/complicações - fatores de risco - luxação glenoumeral
Introdução
A cirurgia de Latarjet se tornou uma opção cada vez mais frequente para o tratamento da instabilidade glenoumeral anterior.[1] Suas principais indicações ocorrem nos casos de lesão óssea da glenoide, revisões cirúrgicas e atletas de esporte de contato. Mesmo com inúmeras variações técnicas descritas, o princípio básico do procedimento consiste na transferência do processo coracoide junto com o tendão conjunto para a borda anterior da glenoide, seja pela via aberta ou artroscópica.
A literatura é clara em mostrar resultados consistentes na estabilização articular; porém, poucos estudos relatam a incidência e os fatores de risco relacionados às complicações desta técnica, que variam de 0 a 30%.[2]
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[12] Dentre as complicações mais frequentemente relatadas, citam-se: lesão neurológica, infecção, recidiva da instabilidade, fratura e pseudoartrose do enxerto. Além disso, muitas vezes o tratamento dessas complicações impõe a necessidade de revisão cirúrgica.
Shah et al.[5] obtiveram 10% de complicações neurológicas, sendo as mais comuns o acometimento dos nervos axilar e musculocutâneo. Athwal et al.[6] evidenciaram fratura do enxerto em 7% dos pacientes, com 2 casos necessitando de revisão cirúrgica.
Além da importância do conhecimento da técnica cirúrgica, alguns autores identificaram fatores de risco associados a maior chance de complicações. Gartsman et al.[7] identificaram idade avançada, enquanto Dauzère et al.[8] correlacionaram a associação da experiência do cirurgião com a incidência de complicações.
O objetivo do presente trabalho foi evidenciar a incidência de complicações da cirurgia de Latarjet e correlacionar com possíveis fatores de risco.
Métodos
Foram avaliados de forma retrospectiva os pacientes submetidos a cirurgia de Latarjet para o tratamento da instabilidade glenoumeral anterior, no período entre janeiro de 2012 e junho de 2018 numa única instituição, com o objetivo de evidenciar as complicações ocorridas. A indicação desta técnica ocorreu nas seguintes situações: defeito ósseo glenoidal ou bipolar, falha de cirurgia prévia e atletas de esportes de contato. Os critérios de inclusão para este estudo foram pacientes submetidos à técnica cirúrgica clássica de Latarjet, na qual o enxerto é colocado na posição deitada, e que obtiveram acompanhamento ambulatorial pós-operatório clinico e radiológico com seguimento mínimo de 6 meses.
Dividimos as complicações em três tipos: clínicas; relacionadas ao enxerto; e relacionadas ao material de fixação. Consideramos como complicações clínicas: hematoma, infecção (superficial ou profunda), lesão neurológica, lesão do tendão subescapular e recidiva da instabilidade (apreensão anterior ou luxação). Consideramos como complicações relacionadas ao enxerto: posicionamento lateral ou medial, fratura intra- ou pós-operatória e a não consolidação. As relacionadas ao material de fixação foram: mau posicionamento ou quebra de um ou dois parafusos.
A avaliação da integridade do tendão subescapular foi feita através do exame físico pelos testes de Gerber e Lift off.
O exame radiológico consistiu na radiografia simples, sendo as incidências utilizadas a anteroposterior (AP) verdadeira do ombro, o perfil de escápula e a axilar, assim como tomografia computadorizada (TC).
Definimos o posicionamento do enxerto como complicação quando na TC o mesmo estava > 1 mm lateral à superfície articular, e nos casos em que ficou > 1mm medial, apenas se houve recidiva da instabilidade. Pseudoartrose do enxerto foi definida como ausência de trave óssea entre o enxerto e a glenoide no exame tomográfico.
Os fatores de risco avaliados foram o gênero, pacientes com mais ou menos de 40 anos, a presença de epilepsia, o histórico de cirurgia prévia no ombro e a experiência dos cirurgiões. Para avaliação desta última, dividimos os pacientes em dois grupos: a primeira metade dos pacientes operados no período; e a segunda metade.
Técnica Cirúrgica
Todos os pacientes foram posicionados em cadeira de praia e submetidos à anestesia geral, associada ao bloqueio do plexo braquial. A profilaxia antimicrobiana foi realizada durante a indução anestésica em todos os casos com cefalosporina de primeira geração intravenosa pelo período de 24 horas.
O acesso deltopeitoral foi utilizado com ∼ 7 cm de extensão a partir do processo coracoide em direção à prega axilar. O processo coracoide foi exposto e individualizado após liberação do músculo peitoral menor e do ligamento coracoacromial. A osteotomia foi realizada logo distal à inserção dos ligamentos coracoclaviculares com o uso de osteótomo curvo, com objetivo de obter enxerto de pelo menos 20 mm. A face inferior do processo coracoide foi, então, decorticada e preparada com dois furos, com distância de 1 cm entre si. A articulação foi acessada por meio de divulsão horizontal no músculo subescapular, entre o terço médio e inferior, e, após isso, com capsulotomia vertical. A borda anteroinferior da glenoide foi preparada com ressecção labral e decorticação. O processo coracoide foi posicionado deitado e fixado com dois parafusos. Em todos os casos, o tamanho dos parafusos variou de 30 a 36 mm. Em 59 casos, não houve nenhum tipo de reparo capsular. Em 37 pacientes, o ligamento coracoacromial foi preservado e suturado na cápsula articular, deixando o enxerto intra-articular, e em 12 pacientes a cápsula foi suturada com a utilização de uma âncora (Gryphon; DePuy Synthes, Warsaw, IN, EUA), deixando o enxerto extra-articular.
No pós-operatório, os pacientes foram imobilizados com tipoia americana por 4 semanas. A partir de 2 semanas, foi ensinada mobilização passiva. A fisioterapia formal foi iniciada após 2 semanas para ganho de amplitude de movimento. Após 2 meses, exercícios de fortalecimento eram iniciados. Retorno total às atividades ocorreu entre 4 e 6 meses.
Análise Estatística
Foram utilizados o teste de qui-quadrado e o teste de Fisher para variáveis categóricas e os testes T pareados e não pareados para variáveis contínuas. A significância estatística foi definida como p < 0,05.
Resultados
No período analisado, a cirurgia de Latarjet foi realizada em 142 pacientes (148 ombros). Destes, foram excluídos 19 pacientes que não realizaram o acompanhamento mínimo necessário e 21 que foram submetidos à técnica descrita como Arco Congruente.[10] Preencheram os critérios de inclusão o total de 102 pacientes (108 ombros).
A média de idade foi 33,7 anos (18–61 anos), sendo 88 (86,3%) homens (93 casos) e 14 (13,7%) mulheres (15 casos). Em 94 ombros (87,1%), a cirurgia de Latarjet foi primária no tratamento da instabilidade. Em 14 casos (12,9%), o procedimento foi realizado como revisão para falha de cirurgia prévia. Onze pacientes (10,2%) eram portadores de epilepsia. Um total de 79 (73,1%) dos 108 casos foram submetidos a TC com o período mínimo de 6 meses após a cirurgia.
O seguimento médio foi de 16,2 meses (6–52 meses). Em 23 casos (21,2%) encontramos ao menos uma complicação, sendo 16 (14,8%) clínicas, 8 (7,4%) relacionadas ao enxerto, e 2 (1,8%) relacionadas ao implante. Desse total, foram necessários 10 procedimentos (9%) de revisão ([Tabela 1]).
Tabela 1
Complicações
|
n
|
%
|
Intervenção
|
Clínicas
|
|
Hematoma
|
1
|
0,9
|
Drenagem cirúrgica
|
Infecção Superficial
|
1
|
0,9
|
Antibioticoterapia VO
|
Infecção Profunda
|
1
|
0,9
|
Desbridamento e antibioticoterapia IV
|
Apreensão Anterior
|
8
|
7,4
|
Não necessitaram de abordagem
|
Luxação Anterior
|
1
|
0,9
|
Não necessitou de abordagem
|
Neurapraxia do Axilar
|
4
|
3,7
|
Não necessitaram de abordagem
|
Lesão do Subescapular
|
1
|
0,9
|
Não necessitou de abordagem
|
Dor Refratária
|
1
|
0,9
|
Artroscopia diagnóstica
|
Relacionadas ao Implante
|
|
Parafuso Intra-articular
|
2
|
1,8
|
1 RMS e 1 hemiartroplastia
|
Relacionadas ao Enxerto
|
|
Posicionamento Lateral
|
6
|
5,5
|
2 RMS, 1 regularização e 1 reposicionamento
|
Posicionamento Medial[*]
|
3
|
2,8
|
Não necessitaram de abordagem
|
Fratura
|
2
|
1,8
|
1 ressecou fragmento lateral
|
Pseudoartrose
|
4[**]
|
5,1
|
Não necessitaram de abordagem
|
Das complicações clínicas, 4 foram neuropatias axilares (3,7%) que se resolveram espontaneamente em até 6 meses. Dois casos apresentaram infecção, sendo uma delas superficial (0,9%), tratada com antibioticoterapia oral, e 1 profunda (0,9%), tratada com desbridamento no centro cirúrgico e antibioticoterapia venosa. Em 8 casos (7,4%) identificamos a presença de apreensão positiva no exame físico. Um paciente (0,9%), portador de epilepsia, apresentou recidiva da luxação, no qual ambos os parafusos apresentaram perda do eixo com deformidade. Houve necessidade de drenagem de 1 hematoma (0,9%), e 1 paciente apresentou testes clínicos positivos para lesão do subescapular (0,9%). Um dos pacientes com apreensão positiva apresentava dor refratária e foi submetido a biópsia artroscópica para diagnóstico de infecção, não sendo encontrada nenhuma alteração.
Entre as complicações relacionadas ao enxerto, 6 casos (5,5%) foram de posicionamento lateral. Destes, um foi submetido à regularização da extremidade lateral, um ao reposicionamento, dois à retirada do material de síntese após consolidação do enxerto e dois não foram submetidos a revisão cirúrgica. Obtivemos três casos de posicionamento medial, porém nenhum paciente apresentou instabilidade, não sendo, então, contabilizados como complicações. Também obtivemos 2 casos (1,8%) de fratura do enxerto identificados na primeira reavaliação ambulatorial ([Figuras 1] e [2]), sendo um tratado conservadoramente e o outro submetido a ressecção do fragmento lateral fraturado. Entre os 79 casos submetidos a TC, 75 (94,9%) apresentaram consolidação do enxerto e 4 (5,1%) apresentaram pseudoartrose. Nenhum dos pacientes com fratura do enxerto ou pseudoartrose evoluíram com recidiva da instabilidade.
Fig. 1 TC 3D, no pós-operatório imediato, evidenciando enxerto bem posicionado.
Fig. 2 Radiografia (A) e TC 3D (B), após 3 semanas, evidenciando fratura do enxerto.
Das complicações relacionadas ao material de síntese, obtivemos 2 casos (1,8%) de parafusos intra-articulares, sendo 1 submetido à retirada do material de síntese e o outro evoluiu com artrose precoce, necessitando de hemiartroplastia.
Os fatores de risco que afetaram significativamente a ocorrência de complicações foram a presença de epilepsia, idade > 40 anos e experiência do cirurgião. Os portadores de epilepsia apresentaram 45,4% de complicações contra 18,5% nos casos de instabilidade de origem traumática (p = 0,0325). Já os pacientes > 40 anos apresentaram 35,7% de complicações, contra 19,4% daqueles < 40 anos (p = 0,0151). Do mesmo modo, a primeira metade das cirurgias realizadas apresentou 27,7% de complicações contra 14,8% das realizadas na segunda metade (p = 0,0499). Não foi observada significância estatística quando analisado o gênero e a presença de cirurgia prévia ([Tabela 2]).
Tabela 2
Fator de Risco
|
Sem complicações
|
Com complicações
|
Valor-p
|
Etiologia
|
Epilepsia
|
6
|
5
|
0,0325
|
Trauma
|
79
|
18
|
|
Cirurgia Prévia
|
Cirurgia prévia
|
10
|
4
|
0,2435
|
Primeira Cirurgia
|
75
|
19
|
|
Gênero
|
Mulher
|
13
|
2
|
0,2271
|
Homem
|
72
|
21
|
|
Experiência do Cirurgião
|
Primeira Metade
|
39
|
15
|
0,0499
|
Segunda Metade
|
46
|
8
|
|
Idade
|
< 40 anos
|
67
|
13
|
0,0151
|
> 40 anos
|
18
|
10
|
|
Discussão
A indicação da cirurgia de Latarjet tem se tornado cada vez mais frequente no tratamento da instabilidade glenoumeral anterior e, consequentemente, os relatos de complicações relacionadas a esta técnica aumentaram recentemente. Ao contrário da cirurgia artroscópica de reparo capsulolabral, na qual a principal complicação é a recidiva das luxações, na cirurgia de Latarjet observamos complicações especificas e cujo desfecho pode ser desastroso.[13]
Os estudos que relatam as complicações da técnica de Latarjet apresentam certa confusão a respeito da definição de complicação pós-operatória. Alguns autores diferenciam em problemas ou complicações, enquanto outros dividem em complicações menores ou maiores.[5]
[11] Nós diferenciamos as complicações em 3 tipos: relacionadas ao material de síntese, ao enxerto ósseo e complicações clinicas. Com o seguimento médio de 16,2 meses, obtivemos uma taxa de complicações de 21,2%, das quais apenas 9% dos casos necessitaram de revisão cirúrgica. Em estudo recente, Domos et al.[14] apresentaram taxas semelhantes, com 21% de complicações e 9% de revisão cirúrgica em pacientes > 40 anos operados pela técnica de Latarjet.
Nossa casuística também apresentou resultados compatíveis com os da literatura com relação à recidiva da instabilidade, com apenas 1 recidiva da luxação (0,9%) em 1 paciente portador de epilepsia, e 8 (7,4%) com apreensão positiva no exame físico.[1]
[10]
[15]
[16]
[17] Diferentemente de Griesser et al.,[9] que em revisão sistemática identificaram a lesão do nervo musculocutâneo como sendo a mais frequente, o nervo mais acometido em nossa casuística foi o axilar, em 4 casos (3,6%), assim como observado por Gartsman et al.[7] Todos foram neurapraxias com recuperação completa em até 4 meses.
Obtivemos 4 casos (5%) de pseudoartrose, sendo em um destes necessária a retirada dos parafusos. Nenhum destes casos evoluiu para instabilidade. Shah et al.[5] observaram que alguns pacientes com não união do enxerto apresentavam-se assintomáticos, não os considerando como complicações.
O posicionamento lateral do enxerto e o mau posicionamento dos parafusos são fatores de risco para o desenvolvimento de artrose secundária.[18]
[19]
[20] Obtivemos 6 (5,5%) pacientes com enxerto lateral, sendo 4 submetidos a revisão cirúrgica, e 2 casos de parafusos intra-articulares, tendo um evoluído rapidamente para artrose secundária com posterior necessidade de revisão cirúrgica para hemiartroplastia.
Devido à complexidade da técnica, a experiência do cirurgião está associada com a ocorrência de complicações, como evidenciado por Dauzère et al.[8] Identificamos que os pacientes operados na segunda metade do período avaliado apresentaram menos complicações. Outros fatores de risco que identificamos foram epilepsia assim como idade > 40 anos.[14]
[21]
[22] Apesar de alguns autores relatarem aumento das complicações em pacientes com histórico de cirurgia prévia, não observamos essa correlação.
O presente estudo apresenta como força a homogeneidade da população e a amostra relativamente grande. Entre as limitações, por ser retrospectivo, apresenta as complicações inerentes a este tipo de estudo e novas complicações podem surgir com o maior seguimento dos pacientes.
Conclusão
A taxa de complicações após a cirurgia de Latarjet foi de 21,2% com apenas 9% dos pacientes necessitando de revisão cirúrgica. Epilepsia, idade > 40 anos e experiência do cirurgião foram fatores de risco para a ocorrência de complicações.