Palavras-chave
retalhos cirúrgicos - reconstrução - extremidade inferior - fáscia
Introdução
A reconstrução de lesões complexas dos membros inferiores que, em muitas vezes, estão relacionados com uma grande perda tecidual com exposição e fratura de estrutura óssea é um procedimento frequente em razão do aumento da incidência do trauma na sociedade.[1] A cobertura dessas lesões representa um desafio para o cirurgião, pois este deve ser capaz de efetivar tratamento integral da lesão, nos seus múltiplos aspectos, que inclui, além de sua reparação, a gestão de complicações que possam surgir durante e após a conduta adotada, sendo estas geralmente de difícil manejo.[2]
Complicações como o desenvolvimento de trombose venosa profunda, estase venosa e edema crônico, ocorrência frequente aterosclerose, dificuldade na regeneração nervosa, e necrose local de pele e músculos podem ocorrer na reparação de lesões graves.[3]
Segundo Ger,[4] o tratamento de fraturas tibiais complexas mostra que a incorporação de músculo na pele aumenta seu suprimento sanguíneo. Pontén[5] descreve o conceito de que a preservação da fáscia poderia aumentar a segurança dos retalhos cutâneos.
Retalhos microcirúrgicos são os mais indicados para a reparação das lesões situadas no terço distal da perna e no pé, mas essa técnica mais complexa é de difícil logística de realização em centros com menos recursos institucionais.[6]
As indicações e limites dos retalhos fasciocutâneos foram descritos em 1982.[7] Existem retalhos com pedículo proximal que são mais indicados para a reparação nos dois terços proximais da perna. Basicamente, as técnicas para reconstrução de tecidos moles do membro inferior vão do uso de enxertos cutâneos, retalhos musculares, retalhos fasciocutâneos, e cross-leg até retalhos microcirúrgicos. Vários autores descreveram um retalho fasciocutâneo com pedículo distal para reparação de lesões no terço distal da perna e no pé.[1]
[8]
[9]
[10]
Atualmente, descreve-se retalhos fasciocutâneos que incluem a pele, tecido celular subcutâneo e fáscia, se baseando no sistema de vasos sanguíneos septocutâneos, os quais emergem através da intercomunicação com septos fasciais, se ramificando para formar plexos que suprem o tecido adiposo e a pele da região.[11]
[12]
A primeira opção para a reconstrução de partes moles do membro inferior deve ser pelo uso de retalhos fasciocutâneos, porque eles proporcionam uma cobertura cutânea resistente, e com aparência mais próxima do normal por se tratarem de retalhos regionais. Eles são de relativamente fácil execução, com grande versatilidade, e baseados em um padrão de anatomia vascular bem definido. Esses retalhos são usados mesmo em pacientes com insuficiência vascular associada, tais como diabetes mellitus e insuficiência venosa.[13] Terziu e Djordjeviü[14] afirmaram que suas características se sobressaem em relação a outros tipos de retalhos, especialmente por ter padrão de vascularização bem definido.
O terço distal da perna e o pé, entretanto, permanecem como áreas de difícil reparação, pois existem limitações em relação aos pedículos dos retalhos miocutâneos e fasciocutâneos.[15]
Tendo em vista o exposto, pretendemos apresentar uma série de 15 casos utilizando a técnica modificada do retalho fasciocutâneo de pedículo distal, tendo-se variado a angulação do retalho atingindo um maior eixo de rotação para reconstrução dos terços médio e distal do membro inferior, técnica esta que facilita o manejo do retalho na comparação com a técnica de Monteiro, descrita em 1991.[9]
Descrever e demonstrar o desfecho da técnica modificada de Monteiro Júnior et al.[9] 1991, para a reconstrução do membro inferior com retalho fasciocutâneo de pedículo distal numa série de 15 casos.
Método
O projeto foi enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o número CAAE: 74112317.4.0000.5183.
Antes do experimento, cada voluntário foi informado sobre o objetivo do estudo e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de acordo com a Resolução 466/12 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Participaram do estudo indivíduos encaminhados ao serviço de cirurgia do Hospital Universitário Lauro Wanderlei (HULW) a fim de reparar lesões complexas do membro inferior, que atenderam aos seguintes critérios de inclusão:
-
Apresentar lesão no membro inferior;
-
Apresentar fratura óssea exposta ou não;
-
Pacientes com idade superior a 18 anos;
-
Não ter qualquer outra comorbidade que impeça a aplicação da técnica proposta no presente estudo.
-
Pacientes com condição clínica favorável ao procedimento.
-
Seguimento mínimo de 6 meses.
Inicialmente, foi realizado estudo das bases anatômicas para a confecção do retalho através da dissecção de cadáveres em decúbito ventral procedendo-se uma incisão transversa na face posterior da perna, mais ou menos a 6 cm da prega poplítea, incluindo pele, subcutâneo, e fáscia muscular. Duas outras incisões paralelas foram realizadas incluindo a fáscia, levantando desta forma o retalho com pedículo distal. Foi verificada a ocorrência das perfurantes identificadas no estudo original.
O trabalho foi realizado em pacientes com trauma do membro inferior, os quais foram submetidos a cobertura com retalho fasciocutâneo com pedículo distal. Todos os procedimentos ortopédicos foram feitos previamente ou concomitante à confecção do retalho.
Foi usada a anestesia peridural em L3-L4 com agulha de Touhy n° 17, injetando Novabupi (Itapira, São Paulo, Brasil) 0,5%, 20 ml associado a Fentanil (Itapira, São Paulo, Brasil) 100 mcg para todos os pacientes. A técnica de dissecção e levantamento do retalho foi realizada em decúbito dorsal ou lateral conforme a lesão apresentada.
A confecção do retalho foi realizada na região distal da perna, seguiu uma linha proximal a 6 centímetros da fossa poplítea, e outras duas perpendiculares a ela, em sentido distal, parando a 12 centímetros do maléolo lateral e a 10 centímetros do maléolo medial. Esses pontos foram unidos, dando ao retalho a forma de ‘raqueta’, com base distal mais estreita que sua extremidade proximal, ficando o retalho com uma boa quantidade de tecido para cobertura das lesões do terço inferior da perna.
A dissecação foi realizada em sentido craniocaudal, incluindo todos os planos, exceto o muscular. Os vasos perfurantes que emergem a partir do septo muscular foram cuidadosamente dissecados com trauma mínimo para os vasos. Os vasos perfurantes maiores laterais foram preservados. Dessa forma, o retalho foi então rodado e suturado em posição na área receptora previamente preparada. Foi feita a modificação na angulação do retalho, de acordo com o posicionamento da área do defeito, possibilitando assim, um maior arco de rotação e, consequentemente, uma melhor cobertura das lesões mais distais na reconstrução do membro inferior ([Figura 1]). As perfurantes musculares menores foram ligadas bem como o nervo sural e a veia safena externa. As perfurantes maiores lateral e medial foram isoladas.
Fig. 1 Técnica original (no desenho) de dissecção e modificação (na foto) da angulação do retalho. O desenho do retalho original está indicado em azul, e, em preto e vermelho, está indicada a variação da angulação do retalho. Fonte: Monteiro Jr. et al., 1991, e dados da pesquisa, 2019.
A área doadora foi fechada com enxerto de pele de espessura parcial após 3 dias, quando o tecido de granulação foi formado, proporcionando uma melhor viabilidade desse enxerto. Após 3 semanas, o pedículo vascular foi ligado.
Resultados
Na série de casos apresentada, foram atendidos 15 pacientes com feridas complexas geradas por trauma nos membros inferiores. O acompanhamento mínimo foi de 6 meses, esse é o período aproximando para que ocorra a integração do retalho, e o acompanhamento máximo foi de 24 meses, totalizando uma média de 8 meses de assistência, com desvio padrão de 4,89. A média de idade foi de 39,38 anos, variando de 18 a 62 anos, com predominância dos pacientes na faixa etária de 25 a 29 anos. Houve um predomínio do sexo masculino, com 14 pacientes, e apenas 1 paciente do sexo feminino.
Foram considerados 13 casos com resultado excelente, pois apresentaram 100% de cobertura da pele e do tecido celular subcutâneo, presença de perfusão do retalho sem a presença de necrose, e ausência de infecção. Huve ainda um caso bom com a cobertura parcial de pele e tecido celular subcutâneo sobre a área do trauma com um seroma drenado sem prejuízo para o retalho, e um caso intermediário, pois apresentou perda ou necrose parcial do retalho (menor do que 5%) sem exposição de qualquer estrutura abaixo do subcutâneo. Esses resultados foram classificados conforme os critérios de Odom modificados pelo autor.[16]
Os pacientes apresentaram fraturas expostas dos tipos III A e III B, de acordo com a classificação de Gustilo e Anderson[17] lesão de partes moles do terço médio e inferior da perna ([Tabela 1], [Tabela 2]). O retalho proporcionou boa cobertura de pele e tecido celular subcutâneo para os ossos expostos na série de 15 casos ([Figuras 2]
[3]
[4]
[5]
[6]
[7]
[8]
[9]
[10]).
Tabela 1
Tipo
|
Descrição
|
I
|
Ferida < 1 cm com mínima lesão de partes moles
|
II
|
Ferida > 1 cm com moderada lesão de partes moles
|
III A
|
Extensa laceração de partes moles ou retalhos com cobertura de pele íntegra sobre osso fraturado, ou trauma de grande energia independentemente do tamanho da lesão
|
III B
|
Extensa lesão de partes moles com desnudamento periosteal e exposição óssea, usualmente associada a extensa contaminação
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III C
|
Fratura exposta com lesão arterial requerendo reparo
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Tabela 2
Caso
|
Idade (anos)
|
Etiologia
|
Localização do defeito
|
Fratura exposta
|
Complicação
|
1
|
20
|
Acidente de carro
|
Terço médio (perna)
|
III A
|
Seroma
|
2
|
16
|
Acidente de carro
|
Terço médio (perna)
|
III A
|
Não
|
3
|
28
|
Acidente de motocicleta
|
Terço médio (perna)
|
III A
|
Não
|
4
|
32
|
Acidente de motocicleta
|
Terço médio (perna)
|
III A
|
Necrose parcial
|
5
|
42
|
Acidente de carro
|
Terço médio (perna)
|
III B
|
Não
|
6
|
58
|
Acidente de motocicleta
|
Terço médio (perna)
|
III B
|
Não
|
7
|
62
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
8
|
25
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
9
|
28
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
10
|
31
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
11
|
34
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
12
|
45
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
13
|
51
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
14
|
56
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
15
|
15
|
Acidente de motocicleta
|
Terço distal (perna)
|
III B
|
Não
|
Fig. 2 Pré-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 3 Trans-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 4 Trans-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 5 Pós-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 6 Pós-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 7 Pré-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 8 Trans-operatório. Fonte: Dados da Pesquisa, 2019.
Fig. 9 Trans-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
Fig. 10 Pós-operatório. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
O retalho teve as sequelas inerentes aos retalhos fasciocutâneos: cicatriz inestética na região doadora e hipoestesia na região lateral da perna e do pé. Não foram reportadas queixas, fato este que pode ser atribuído ao esclarecimento prévio dos pacientes quanto às “sequelas” produzidas pelo retalho. A área doadora, após evolução de 6 meses, ficou conforme a [Figura 6] e não comprometendo a função da perna.
Discussão
A presente série de casos mostrou que retalhos fasciocutâneos amplos podem ser levantados e rodados com poucas complicações. As desvantagens do uso dos retalhos fasciocutânetos do pedículo distal relacionam-se com a grande área doadora na perna que precisa ser enxertada, bem como com o procedimento ser realizado em dois tempos.
Uma reconstrução utilizando retalhos livres exige uma longa e onerosa hospitalização, treinamento cirúrgico muito especializado, e experiência bem como material de alto custo e longo tempo operatório, sendo estas as principais desvantagens desse método.[13]
[15]
O terço médio e distal da perna apresenta-se como local de difícil reparação quando temos exposição óssea e perda cutânea. Os retalhos microcirúrgicos exigem centros adequadamente aparelhados, equipe especializada, bem como altos custos institucionais.
Donski e Fogdestam,[8] em 1983, transferiam seus retalhos baseados somente na perfurante lateral, enquanto os de Amarante et al.,[18] em 1986, eram baseados na perfurante medial. Esses retalhos eram menos seguros e poderiam ser comprometidos com a restrição do suprimento sanguíneo.
Em 1991, Monteiro Junior et al.[9] adicionaram os dois pedículos mencionados na [Figura 1], aumentando em muito a segurança desses retalhos. Na nossa modificação, variando a angulação no desenho do retalho, aumentamos o arco de rotação do mesmo sem prejuízo ao seu suprimento sanguíneo, fazendo com que se atinjam áreas mais distais da perna e do pé.
Como desvantagens, podemos citar a necessidade de dois tempos cirúrgicos para obtenção do resultado final, e as sequelas aparentes nas áreas doadoras dos retalhos.
Esse procedimento cirúrgico trouxe como benefícios para o paciente: ter seu membro recuperado, com retorno dos movimentos, dependendo do tipo de ferimento; ter sua imagem corporal restabelecida, elevando sua autoestima. O procedimento trouxe ainda benefícios também para a instituição, uma vez que os resultados dessas cirurgias serão úteis no ensino de outros profissionais.
Conclusão
O retalho fasciocutâneo de pedículo distal confeccionado de acordo com a nossa modificação na angulação do desenho do mesmo, mostrou-se como uma boa opção para a reconstrução dos terços médio e inferior da perna, oferecendo boa cobertura de pele e tecido celular subcutâneo para o osso exposto, podendo ser um procedimento realizado em hospitais de média complexidade.