Palavras-chave quadril - impacto femoroacetabular - lábio acetabular - medicina esportiva - artroscopia
de quadril
Introdução
A cirurgia do quadril avançou muito nas últimas 2 décadas. Diversas novas afecções
que acometem a articulação coxo-femoral foram descritas, assim como novas técnicas
de tratamento. Dentre estas afecções, o impacto femoroacetabular (IFA) e a lesão do
lábio acetabular merecem destaque. O IFA é uma causa importante de dor no quadril
do jovem, especialmente no esportista. Além disso, o IFA é a principal causa de osteoartrose
do quadril (OA) no jovem.
O diagnóstico do IFA e da lesão labial são cada vez mais frequentes nos consultórios
de ortopedia, e a artroscopia de quadril é um dos procedimentos ortopédicos que cresce
mais rapidamente. Frente a este panorama, é imprescindível que o ortopedista conheça
esta afecção e compreenda sua fisiopatologia.
Histórico
Em 1936, Smith-Petersen[1 ] publicou pioneiramente sobre uma osteotomia femoral e acetabular utilizada no tratamento
de pacientes com dor no quadril. Neste artigo, o autor questiona: "qual a origem da
dor do paciente?", e responde: "o impacto entre o colo do fêmur e a parede anterior
do acetábulo". A técnica cirúrgica consistia na exposição da articulação do quadril
através de uma via tipo Smith-Petersen. Uma porção da parede anterior do acetábulo
era ressecada, assim como uma porção da junção colo-cabeça femoral. Esta técnica é
semelhante à descrita décadas depois para o tratamento cirúrgico do IFA, entretanto
era utilizada em quadris já artrósicos.
Carlioz et al.,[2 ] em 1968, utilizaram pela primeira vez o termo came para descrever a deformidade
femoral, neste caso associada a uma sequela de epifisiolistese. Em 1975, Stulberg
et al.,[3 ] descrevem a deformidade em cabo de pistola, que estaria presente em 40% dos pacientes
que desenvolvem OA de quadril.
Muitos anos se passariam até Klaue et al.,[4 ] em 1991, descreverem a síndrome do rebordo acetabular, na qual a displasia do quadril
causa lesão do lábio acetabular, que seria precursora de OA. Reynolds et al.,[5 ] em 1999, demonstraram a associação entre a retroversão acetabular e a presença de
dor no quadril; enquanto Myers et al.,[6 ] em 1999, reportaram cinco pacientes com dor após a realização de osteotomia periacetabular
por impacto residual.
Todo este conhecimento acumulado por décadas culminou no artigo clássico de 2003,
no qual Ganz et al.,[7 ] estabeleceram os conceitos do IFA moderno. Os autores sugerem que deformidades discretas
femorais e acetabulares associadas ao movimento são responsáveis pelo desenvolvimento
da OA, sugerem a classificação do IFA, achados clínicos e radiográficos desta doença,
assim como seu tratamento por meio da luxação cirúrgica do quadril.
Fisiopatologia
O lábio acetabular é uma estrutura triangular fibrocartilaginosa localizada ao redor
do rebordo acetabular, sendo interrompido inferiormente pelo ligamento transverso.
O lábio foi o foco de diversos artigos recentes que demonstraram sua atuação na estabilidade
articular. O lábio tem uma função importante no selo de sucção, responsável por manter
uma pressão negativa dentro da articulação. Crawford et al.,[8 ] demonstraram que 43% menos força é necessária para distrair o quadril após ventilar
a articulação (introdução de uma agulha entre o lábio e o acetábulo), em comparação
com o estado intacto. Além disso, após a criação de uma lesão acetabular de 3 mm,
60% menos força foi necessária para criar a mesma distração. Estudos com elementos
finitos e estudos biomecânicos em cadáveres demonstraram que a ressecção do lábio
acetabular aumenta a taxa de consolidação da cartilagem.[9 ]
[10 ] Consolidação é a compressão que ocorre na camada de cartilagem quando carga é aplicada.
Estes estudos reforçam a idéia da função selante do lábio acetabular, que mantém um
filme líquido entre o acetábulo e a cabeça femoral, que diminui a pressão sólido-sólido
intra-articular.
O lábio acetabular apresenta grande resistência tênsil. Seu módulo de tensão, que
é uma medida de sua rigidez e resistência tênsil ao alongamento, é 6 vezes maior do
que o da borracha.[11 ] Esta característica também é importante para sua função no selo de sucção do quadril.
Por outro lado, o lábio acetabular não apresenta função importante no suporte da carga
axial do quadril. O lábio suporta apenas de 1 a 2% da carga da articulação normal,
subindo para 4 a 11% no quadril displásico.[11 ]
[12 ]
[13 ]
As estruturas cápsulo-ligamentares do quadril também são essenciais na estabilidade
articular. Myers et al.,[14 ] demonstraram que o ligamento iliofemoral apresenta uma função importante ao limitar
a rotação externa e a translação anterior do fêmur, e que o lábio acetabular apresenta
uma função estabilizadora secundária nestes movimentos. A secção do ligamento iliofemoral
aumentou a rotação externa do quadril (de 41,5° para 54,4°), enquanto a secção do
lábio acetabular não aumentou a rotação significativamente (45,6°). Outro achado importante
deste estudo foi que o reparo do ligamento e do lábio restituíram a rotação inicial.
Os autores sugerem que quando uma capsulotomia é realizada durante a artroscopia de
quadril, esta deve ser reparada ao fim do procedimento.
Classificação
O IFA é dividido em 3 tipos: came, pincer ou misto ([Figura 1 ]).[7 ]
[15 ] O tipo pincer, também conhecido em português como torquês, é causado por uma alteração
da cavidade acetabular. O acetábulo normal é antevertido, e recobre a cabeça femoral
numa faixa estreita de normalidade. Tanto a falta de cobertura, que ocorre na displasia,
quanto o excesso de cobertura que ocorre no pincer, são causa de dor e degeneração
articular. No IFA tipo pincer há uma sobrecobertura do acetábulo em relação à cabeça
femoral. Esta sobrecobertura pode ser focal em casos de retroversão acetabular ou
global em casos de ângulo centro-borda aumentado. A lesão labial no pincer ocorre
por um esmagamento do lábio entre o colo femoral e o rebordo acetabular. Por este
motivo, o lábio no pincer encontra-se degenerado, podendo apresentar cistos intrasubstanciais.
Outra lesão que pode ocorrer no pincer é a lesão por contragolpe. Neste caso, a cabeça
femoral é alavancada posteriormente pela parede acetabular anterior proeminente, gerando
uma lesão da cartilagem acetabular posterior.
Fig. 1 Tipos de impacto femoroacetabular.
O impacto tipo came é causado por uma anormalidade do fêmur. Para que o quadril tenha
um movimento sem conflito, a cabeça femoral deve ser uma esfera perfeita. A deformidade
do came ocorre na transição entre a cabeça e o colo femoral, gerando uma perda da
esfericidade neste local. A lesão do lábio acetabular decorrente do came ocorre na
transição entre a cartilagem acetabular e o lábio. À medida que a cabeça femoral anesférica
adentra a cavidade acetabular, a cartilagem acetabular é avulsionada do lábio devido
a uma força cisalhante entre a cabeça e a cartilagem. Por este motivo, lesões da cartilagem
acetabular tipo carpete (cartilagem de aparência inicialmente sadia, porém descolada
do osso subcondral) são comuns no came. O tecido labial nos estágios iniciais da lesão
permanece sadio.
O terceiro tipo de IFA é o tipo misto, que apresenta uma associação das alterações
pincer e came. O tipo misto é o mais frequente, com uma incidência de até 77% dos
casos.[16 ] Entretanto, mesmo no tipo misto, normalmente o paciente apresenta características
mais predominantes de uma das morfologias came ou pincer.
Seldes et al.,[17 ] descreveram uma classificação histológica da lesão do lábio acetabular. O tipo 1
consiste num destacamento do lábio da cartilagem acetabular na transição entre o lábio
fibrocartilaginoso e a cartilagem hialina acetabular. Já o tipo 2 consiste em um ou
mais planos de clivagem dentro da substância acetabular. O tipo 2 está relacionado
a ossificações endocondrais do lábio. Um artigo posterior modificou a classificação
de Seldes e incluiu um lesão tipo 3, que possui características mistas, apresentando
um destacamento do lábio associado e planos de clivagem na substância labial.[18 ]
Etiologia
O desenvolvimento do IFA é influenciado por características genéticas e ambientais.
Pollard et al.,[19 ] estudaram irmãos de pacientes diagnosticados com IFA. Os irmãos de pacientes diagnosticados
com came apresentaram um risco relativo 2,8 vezes maior de apresentar a mesma deformidade,
enquanto irmãos de pacientes com deformidade tipo pincer apresentaram um risco relativo
de 2,0. O grupo de irmãos também apresentou uma presença significativamente maior
de OA de quadril grau 2 segundo a classificação Kellgren e Lawrence em comparação
com o grupo controle (11 versus 0). Os autores concluem que há uma influência genética no desenvolvimento do IFA.
Sekimoto et al.,[20 ] estudaram a associação entre polimorfismo genético e a sobrecobertura acetabular,
e demonstraram que variações genéticas estão significativamente associadas à cobertura
acetabular.
O desenvolvimento da deformidade came está relacionado a uma extensão lateral da fise
de crescimento.[21 ] Participação intensa em atividades esportivas durante a fase final da adolescência,
próxima ao fechamento da fise, pode estar relacionada ao desenvolvimento do came,
secundário a um estresse mecânico na fise da cabeça femoral. Murray et al.,[22 ] já em 1971 sugerem uma associação entre atividade esportiva na adolescência e OA
de quadril na vida adulta. Os autores questionam se a OA de quadril idiopática teria
mesmo etiologia indefinida, ou seria causada por alterações menores na articulação
do quadril. Um estudo interessante avaliou a presença da deformidade came em atletas
adolescentes de basquete em comparação com controles não atletas.[23 ] Os controles apresentaram um ângulo alfa médio de 47,4°, enquanto os atletas apresentaram
60,5°. As diferenças foram ainda mais pronunciadas em fêmures com a fise já fechada.
Os autores interpretaram este resultado como uma sugestão de que o came se desenvolveria
durante o fechamento da fise. Uma pesquisa semelhante avaliou adolescentes jogadores
de futebol pré-profissional.[24 ] Um total de 63 atletas (média de 14,43 anos) foram acompanhados por no mínimo 2
anos. Um aumento significativo do ângulo alfa foi observado. A medida da extensão
da fise de crescimento também foi associada ao ângulo alfa. Os autores também concluem
que a deformidade came se desenvolve durante a maturação esquelética e estabiliza
após o fechamento da fise. Uma revisão recente da literatura concluiu que atletas
masculinos adolescentes envolvidos em hóquei no gelo, basquete e futebol, que treinam
pelo menos três vezes por semana, apresentam maior risco de desenvolvimento de IFA.[25 ]
Epidemiologia
O consenso de Warwick sobre o IFA sugere o termo síndrome do IFA.[26 ] O diagnóstico desta síndrome é baseado em sintomas clínicos, alterações de exame
físico, e achados em exames de imagem. Esta consideração é importante porque diversos
estudos epidemiológicos avaliam a presença de IFA em controles assintomáticos. A prevalência
de alterações tipo IFA em controles é importante, porém vale a ressalva de que estes
voluntários não apresentam a síndrome do IFA, por não possuírem sintomatologia no
quadril.
Um revisão sistemática que avaliou a prevalência de deformidades tipo IFA em voluntários
incluiu 26 estudos com mais de 2.000 pessoas (57,2% homens e 42,8% mulheres).[27 ] O ângulo alfa médio foi 54,1°, e a prevalência de came foi 37%; porém, uma grande
variação foi encontrada entre os estudos (7 a 100% de prevalência). Uma grande diferença
também foi notada quando comparando atletas e não atletas. Enquanto 54,8% dos atletas
apresentaram deformidade tipo came, apenas 23,1% dos não atletas apresentaram esta
deformidade. Já a prevalência de deformidade tipo pincer foi 67%. Sete estudos avaliaram
a presença de lesão do lábio acetabular na ressonância magnética, e encontraram uma
prevalência de 68,1% de lesão.
A incidência de IFA e lesão labial sintomática em atletas não é conhecida. Estima-se
que lesões do quadril são responsáveis por 5 a 6% das lesões esportivas.[28 ]
[29 ] No esporte universitário americano, uma taxa de 53,06 lesões por 100.000 exposições-atleta
foi reportada.[30 ] Porém, estes estudos incluem lesões musculares na epidemiologia de lesões do quadril,
não separando lesões articulares. Um estudo das lesões do futebol americano de 1997
a 2006 encontrou uma incidência de 3,1% de lesões relacionadas ao quadril.[31 ] Destas lesões, apenas 5% foram de causa articular. Outro estudo com atletas universitários
de futebol americano universitários da 1a divisão avaliou a incidência de procedimentos cirúrgicos em um período de 10 anos
(2004 a 2014).[32 ] Foram identificados 254 procedimentos cirúrgicos, sendo que destes 15 cirurgias
(5,9%) foram reparos artroscópicos do lábio acetabular. Vale a ressalva que na última
década ocorreu um grande aumento no conhecimento do IFA, e na difusão deste conhecimento
entre os médicos do esporte. Portanto, é provável que esta incidência seja maior atualmente.
Impacto Femoroacetabular e a Osteoartrose de Quadril
Impacto Femoroacetabular e a Osteoartrose de Quadril
A OA de quadril acomete 3% da população com mais de 30 anos nos Estados Unidos, onde
mais de 200 mil próteses de quadril são realizadas por ano.[33 ] No fim do dia, compreender a relação do IFA com a OA de quadril é um dos aspectos
mais importantes no aconselhamento dos pacientes e na definição de estratégias de
tratamento.
Agricola et al.,[34 ] realizaram um estudo prospectivo, conhecido como estudo CHECK, no qual mais de 1.000
pacientes foram acompanhados por 5 anos. Os pacientes realizaram uma radiografia de
bacia, onde o ângulo alfa foi medido; e foram submetidos a exame físico. A presença
de um came moderado (ângulo alfa > 60°) resultou num odds ratio (OR) de 3,67 de desenvolvimento
de OA, enquanto a presença de came grave (ângulo alfa > 83°) resultou num OR de 9,66
de desenvolvimento de OA. A combinação came grave com diminuição de rotação interna
(< 20°) possuiu um valor preditivo positivo de 52,6% no desenvolvimento de OA grave
do quadril ao fim do acompanhamento. Outro estudo com 1.003 pacientes do sexo feminino
comparou radiografias de bacia com 20 anos de intervalo.[35 ] A presença do came (definido como ângulo alfa > 65°) foi associada com o desenvolvimento
de OA radiográfica. Para cada grau de aumento no ângulo alfa, ocorreu um aumento de
5% no risco de OA radiográfica e um aumento de 4% no risco de realização de artroplastia
total de quadril.
A relação do IFA tipo pincer com o desenvolvimento de OA é menos claro. Outro estudo
do grupo CHECK não encontrou relação entre ângulo centro-borda > 40° e desenvolvimento
de OA.[36 ] Já Gosvig et al.,[37 ] encontraram um risco 2,4 vezes maior de desenvolvimento de OA em pacientes com ângulo
centro-borda > 45°. Vale lembrar que o ângulo centro-borda aumentado reflete uma sobrecobertura
global acetabular. Estudos específicos sobre retroversão acetabular (sobrecobertura
focal) sugerem uma possível correlação com a OA de quadril. Kim et al.,[38 ] encontraram uma correlação entre diminuição do espaço articular e a retroversão
acetabular em um estudo com tomografias computadorizadas de pacientes submetidos ao
exame por motivos não ortopédicos. Giori et al.,[39 ] realizaram um estudo caso-controle, comparando radiografias de pacientes submetidos
a prótese total de quadril por OA e controles assintomáticos. Uma incidência de 20%
de retroversão acetabular foi encontrada nos pacientes em comparação com uma incidência
de 5% nos controles. Os autores concluem que há uma relação entre retroversão acetabular
e OA de quadril.
O estudo da relação entre o IFA e a OA de quadril é um campo em expansão e que necessita
de mais pesquisa. Na prática clínica, notamos que alguns pacientes portadores de IFA
apresentam uma rápida evolução para OA, enquanto outros apresentam uma evolução bastante
lenta. Compreender quais pacientes apresentam risco alto de progressão e quais pacientes
estão menos suscetíveis será um grande avanço que acarretará uma melhora no tratamento
do paciente portador de IFA.