Palavras-chave cabeça longa do bíceps - tendinopatia - manguito rotador - tenotomia - tenodese
Introdução
O tendão da cabeça longa do bíceps (CLB) braquial é uma estrutura que, ao longo da
história, sempre foi objeto de grande controvérsia, sendo considerada desde uma importante
fonte de dor no ombro até uma estrutura sem nenhuma importância.[1 ] Kessell e Watson[2 ] a descreveram como uma estrutura fácil de se culpar, mas difícil de se condenar.
Ainda não há um consenso sobre o verdadeiro papel do tendão da CLB na biomecânica
do ombro. Apesar disso, a sua função e o seu importante papel na estabilização estática
e dinâmica vêm sendo investigados por vários autores.[3 ] Diversos autores observaram o importante papel estabilizador,[4 ] bem como a centralização da cabeça umeral na glenoide secundária, conforme descritos
por Pagnani et al.[5 ]
Em 1934, a tendinite do bíceps foi questionada por Codman,[6 ] que chegou a duvidar do processo inflamatório no tendão, achando bem mais provável
que a causa da dor se devesse às lesões do tendão do músculo supraespinal. O autor
não conseguiu provar o envolvimento do bíceps em nenhum de seus casos. A partir dos
anos 50, diversos autores consideravam a tendinite do bíceps uma importante causa
da dor no ombro, e tratavam-na com tenodese.[2 ]
[7 ] Em 1950, DePalma[7 ] descreveu alterações degenerativas do tendão e tratamento conservador e cirúrgico
das lesões. Já em 2015, Godinho et al[8 ] descreveram uma nova técnica cirúrgica para a tenodese da CLB.
O tendão da CLB tem 9 cm de comprimento,[9 ] e é dividido em uma parte intra-articular e outra extra-articular, fibrocartilaginosa,
que seria a parte do tendão na área de deslizamento no sulco intertubercular do úmero.
Vale a pena ressaltar que essa divisão não tem 100% de acurácia. A cabeça umeral se
move em relação ao tendão como em um trilho, e este, por sua vez, não se move em relação
ao sulco bicipital.[2 ]
[10 ] Portanto, a posição do braço é que irá ditar a relação entre as porções intra e
extra-articulares. Por exemplo, em adução e extensão do braço, a maior parte do tendão
encontra-se no interior da articulação. Em contrapartida, nos extremos da abdução,
apenas uma pequena parte do tendão encontra-se no interior da articulação.[1 ]
Devido às características citadas anteriormente, a tendinopatia da CLB pode surgir
em função da pressão e das forças de cisalhamento provocadas pelas repetidas fricções,
trações e rotações glenoumerais. O sulco intertubercular, por ser um ambiente constrito,
geralmente permite que o processo inflamatório acometa essa região.[11 ]
Os testes diagnósticos para as lesões do tendão da CLB, quando aplicados individualmente,
apresentam uma utilidade clínica limitada.[12 ]
Atualmente, o exame complementar mais utilizado para o diagnóstico das lesões do tendão
da CLB é a ressonância magnética. Os estudos apontam uma sensibilidade que varia de
52% a 69,8%, e uma especificidade que varia de 86 a 98% para as lesões completas.[13 ] Todavia, a avaliação durante o procedimento artroscópico é considerada o padrão-ouro
para o diagnóstico das lesões intra-articulares do tendão da CLB.[14 ]
Neviaser et al[15 ] observaram, em seu estudo, uma íntima relação entre a tendinopatia da CLB e as lesões
do manguito rotador por meio de artrografia e alterações macroscópicas no intra-operatório.
O objetivo do presente estudo foi avaliar a correlação clínica, radiológica, e artroscópica
das lesões do tendão da CLB associadas às lesões do manguito rotador, e sua relação
com a dor referida na região anterior do ombro.
Materiais e Métodos
Entre abril de 2013 e dezembro de 2013, foram avaliados e operados 56 pacientes pelo
cirurgião integrante do Grupo de Ombro e Cotovelo da Disciplina de Medicina Esportiva
do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal de São Paulo.
Para a realização deste estudo observacional e transversal, foram excluídos 6 pacientes
da amostra inicial de 56 pacientes. Dois apresentaram o exame de ressonância magnética
incompleto, três não apresentaram lesão do tendão da CLB no intraoperatório, e um
paciente não concordou em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
Entre os 50 pacientes restantes, 38 (76%) eram do sexo feminino, e 12 (24%), do sexo
masculino, com idade média de 65,1 anos.
Os critérios de inclusão foram pacientes com queixa de dor na região anterior do ombro,
submetidos ao reparo da lesão do manguito rotador, e com evidência clínica, radiológica
e/ou artroscópica de acometimento do tendão da CLB.
Os critérios de exclusão foram pacientes submetidos ao reparo da lesão de manguito
rotador e sem indicação de tenotomia devido à ausência de sintomatologia provocada
pelas lesões da CLB ou, ainda, ausência de lesão no momento da artroscopia, e pacientes
sem lesão no manguito rotador associada à lesão da CLB.
Os pacientes foram questionados e examinados por especialistas, membros da Sociedade
Brasileira de Cirurgia do Ombro e Cotovelo (SBCOC). As ressonâncias magnéticas foram
realizadas no equipamento Achieva 1.5T (Philips, Amsterdã, Holanda) e avaliadas por
dois cirurgiões experientes, também integrantes da SBCOC, de acordo com os mesmos
critérios especificados na folha da coleta; foi utilizada a classificação de Patte
e a quantificação em centímetros da lesão do manguito rotador para a definição do
grau de retração tendínea.
Os pacientes foram postos em posição de cadeira de praia, sob anestesia geral e bloqueio
do plexo braquial, e submetidos a artroscopia para reparo da lesão do manguito rotador
e avaliação intra e extra-articulares do tendão da CLB por meio de análise macroscópica
das lesões. Com a óptica no portal posterior e o gancho artroscópico no portal anterior,
promovemos o deslocamento da CLB no sentido inferior, trazendo a porção extra-articular
do tendão para o interior da articulação.
A ponta do gancho artroscópico serviu de instrumento de medida para graduarmos a espessura
acometida na lesão da CLB. A aferição foi realizada a 1,5 cm da inserção labial do
tendão da CLB.
As ressonâncias magnéticas foram realizadas utilizando a técnica de eco de rotação
com ponderações em T1 e T2. As variáveis analisadas ao exame foram: sinais de lesão
da CLB, presença e tamanho da lesão do manguito rotador (utilizando a classificação
de Patte), e presença de lesões associadas, como lesão labral superior de anterior
para posterior (superior labral tear from anterior to posterior , SLAP) tipo II.
No intraoperatório, foram avaliadas as lesões macroscópicas do tendão da CLB, tais
como: hiperemia, fibrilação, achatamento, lesão parcial, luxação do tendão, lesão
da polia, lesão SLAP tipo II e, ainda, a lesão dos tendões do manguito rotador, inclusive
do subescapular, que tem relação direta com a luxação da CLB e suas lesões.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital
São Paulo, e todos os pacientes incluídos assinaram o TCLE.
As variáveis numéricas foram expressas por médias e desvios padrão (DPs), medianas
e quartis (Qs), e valores mínimos e máximos; as categóricas, por frequências absolutas
e relativas.
As associações entre a presença de dor e os testes do exame físico, os achados da
ressonância magnética e os achados intraoperatórios foram avaliadas por modelos de
regressão logística simples.
As análises foram realizadas usando o programa Statistical Package for the Social
Sciences (SPSS, SPSS, Inc., Chicago, IL, EUA), versão 18, adotando-se o nível de significância
de 5%.
Para avaliar a concordância e a discordância entre as lesões do tendão da CLB observadas
nos exames físicos, na ressonância magnética e na artroscopia, especificamente entre
a lesão parcial de alto grau da CLB e a lesão SLAP, aplicamos o teste não paramétrico
de McNemar. Da mesma forma, adotamos o nível de significância de 5%.
Resultados
A amostra final de análise foi composta por 50 pacientes sintomáticos submetidos a
reparo de lesão do manguito rotador com sintomas e/ou exame de ressonância magnética
que indicavam o acometimento do tendão da CLB.
O tempo dos sintomas variou entre 2 e 240 meses, e metade dos pacientes apresentavam
sintomas havia pelo menos 12 meses. Em 70% deles, o ombro direito foi acometido, e
em 72%, o membro acometido foi o dominante.
No exame físico, metade dos pacientes tinham uma amplitude de flexão ativa de até
160° (Q1 = 140° e Q3 = 180°) e passiva de até 180° (Q1 = 170° e Q3 = 180°). Observou-se
que 66% deles apresentavam dor à palpação do tendão da CLB no sulco intertubercular
do úmero. Já nos testes especiais, 72% dos pacientes tiveram resultados positivos
no teste de O'Brien, 78%, no teste de Palm Up, e 40%, no teste de Yergason.
Na avaliação pela ressonância magnética, 92% tinham tendinopatia no bíceps, e 1 paciente
apresentou ruptura total (2,0%). Quanto à lesão do tendão do músculo supraespinal,
4% apresentaram lesão parcial bursal; 4% apresentaram lesão parcial intra-articular;
e os demais tinham lesão total do tendão, com retração tendínea variando entre 0,9 cm
e 5 cm, e mediana de 2,9 cm.
Ainda na avaliação dos exames de imagem, 42% dos pacientes apresentaram lesão do tendão
do músculo infraespinhal; 32%, lesão do tendão do músculo subescapular; 14%, luxação
do tendão da CLB; e 4%, lesão SLAP tipo II.
Durante a artroscopia, observou-se que 60% dos pacientes tinham uma lesão do tendão
da CLB com acometimento superior a 50% da espessura do tendão. Entre as alterações
encontradas, 88% dos pacientes tinham hiperemia ([Figura 1 ]); 54%, achatamento ([Figura 2 ]); 86%, fibrilação; 60%, ruptura parcial; e 20%, luxação do bíceps.
Fig. 1 Hiperemia do tendão da cabeça longa do bíceps (CLB).
Fig. 2 Achatamento do tendão da cabeça longa do bíceps (CLB).
Foram observadas outras lesões na artroscopia relacionadas ao tendão da CLB: 24% dos
pacientes apresentaram lesão do tendão do músculo subescapular; 22%, lesão da polia;
e 6%, lesão SLAP tipo II.
Na [Tabela 1 ] foram apresentados a análise descritiva das variáveis numéricas da avaliação clínica,
o exame físico, e os achados na avaliação radiológica na amostra de 50 pacientes.
Tabela 1
Variável
Média (desvio padrão)
Mediana (1° quartil; 3° quartil)
Amplitude
mínima–máxima
Avaliação clínica
Idade (anos)
65,1 (6,2)
65 (60; 69)
51–83
Tempo de sintomatologia (meses)
30,7 (41,4)
12 (7; 36)
2–240
Exame físico
Flexão ativa (°)
152,2 (31,7)
160 (140; 180)
80–180
Flexã passiva (°)
173,2 (13,8)
180 (170; 180)
110–180
Avaliação radiológica: ressonância magnética
Tamanho da lesão do tendão do músculo supraespinal (cm)
2,8 (1,2)
2,9 (1,5; 3,7)
0,9–5,0
Na [Tabela 2 ] foram apresentadas a distribuição entre os sexos, a dominância do membro acometido,
e as variáveis categóricas do exame físico na amostra de 50 pacientes.
Tabela 2
Avaliação clínica
Sexo
Feminino
38 (76,0)
Masculino
12 (24,0)
Ombro acometido
Direito
35 (70,0)
Esquerdo
15 (30,0)
Ombro dominante
Não
14 (28,0)
Sim
36 (72,0)
Exame físico
Presença de dor à palpação do sulco intertubercular do úmero
Não
17 (34,0)
Sim
33 (66,0)
Teste de O'Brien
Negativo
14 (28,0)
Positivo
36 (72,0)
Teste Palm Up
Negativo
11 (22,0)
Positivo
39 (78,0)
Teste de Yergason
Negativo
30 (60,0)
Positivo
20 (40,0)
Na [Tabela 3 ] foram apresentados os achados sobre a avaliação radiológica (ressonância magnética),
com relação à presença de lesão do tendão da CLB, à luxação do mesmo tendão em relação
à goteira bicipital, e às lesões associadas do manguito rotador e lesão SLAP.
Tabela 3
Avaliação radiológica: ressonância magnética
Lesão da cabeça longa do bíceps
Lesão total
1 (2,0)
Negativo
3 (6,0)
Positivo
46 (92,0)
Lesão do tendão do músculo infraespinal
Não
29 (58,0)
Sim
21 (42,0)
Lesão do tendão do músculo subescapular
Não
34 (68,0)
Sim
16 (32,0)
Retração do tendão do músculo supraespinal
I
8 (16,0)
II
29 (58,0)
III
9 (18,0)
Não
4 (8,0)
Luxação da cabeça longa do bíceps
Não
43 (86,0)
Sim
7 (14,0)
Lesão superior labral tear from anterior to posterior (SLAP) tipo II
Não
48 (96,0)
Sim
2 (4,0)
Na [Tabela 4 ] apresentamos as características morfológicas do tendão da CLB, a luxação do mesmo
tendão em relação à goteira bicipital, a lesão associada do tendão do músculo subescapular
e a lesão SLAP, observadas durante o procedimento artroscópico.
Tabela 4
Procedimento cirúrgico: artroscopia
Hiperemia
Não
6 (12,0)
Sim
44 (88,0)
Achatamento
Não
23 (46,0)
Sim
27 (54,0)
Fibrilação
Não
7 (14,0)
Sim
43 (86,0)
Lesão parcial de alto grau da cabeça longa do bíceps
Não
20 (40,0)
Sim
30 (60,0)
Luxação da cabeça longa do bíceps
Não
40 (80,0)
Sim
10 (20,0)
Lesão do tendão do músculo subescapular
Não
38 (76,0)
Sim
12 (24,0)
Lesão da polia
Não
39 (78,0)
Sim
11 (22,0)
Lesão superior labral tear from anterior to posterior (SLAP) tipo II
Não
47 (94,0)
Sim
3 (6,0)
Classificação de Snyder para lesão SLAP
II
3 (6,0)
Não
47 (94,0)
Observamos evidências de associação entre a presença de dor à palpação do sulco intertubercular
do úmero e a lesão parcial de alto grau da CLB (ruptura parcial acometendo mais de
50% do tendão da CLB – [Figuras 3 ] e [4 ]) na artroscopia (p = 0,003). Nos pacientes com dor à palpação do sulco intertubercular do úmero, foi
observada uma probabilidade de 83% de eles apresentarem uma lesão significativa da
CLB, ou seja, um acometimento maior do que 50% da espessura do tendão. Nessa perspectiva,
os pacientes com resultado positivo nesse teste têm um risco 1,7 vezes maior de desenvolverem
uma lesão significativa, diferente do que ocorre com os pacientes que têm resultado
negativo.
Fig. 3 Lesão de alto grau do tendão da cabeça longa do bíceps (CLB) acometendo mais de 50%
da espessura do tendão.
Fig. 4 Porção proximal do tendão da cabeça longa do bíceps (CLB) acometendo mais de 50%
da espessura do tendão após tenotomia.
Não foram observadas evidências de associação com significância estatística entre
os demais testes especiais (Palm Up, O'Brien e Yergason) e a lesão parcial de alto
grau da CLB (p > 0,05).
Na [Tabela 5 ] foram avaliadas as associações entre a presença de dor à palpação do sulco intertubercular
do úmero, os testes especiais do exame físico, os achados da ressonância magnética,
e os achados intraoperatórios.
Tabela 5
Dor à palpação do sulco intertubercular do úmero
Valor de p
Não
Sim
Exame físico
Teste de O'Brien
Negativo (n = 14)
6 (42,9)
8 (57,1)
ns
Positivo (n = 36)
11 (30,6)
25 (69,4)
Teste Palm Up
Negativo (n = 11)
6 (54,5)
5 (45,5)
ns
Positivo (n = 39)
11 (28,2)
28 (71,8)
Teste de Yergason
Negativo (n = 30)
12 (40,0)
18 (60,0)
ns
Positivo (n = 20)
5 (25,0)
15 (75,0)
Ressonância magnética
Tendinopatia da CLB
Não (n = 3)
1 (33,3)
2 (66,7)
ns
Sim (n = 46)
16 (34,8)
30 (65,2)
Lesão do tendão do músculo infraespinal
Não (n = 29)
12 (41,4)
17 (58,6)
ns
Sim (n = 21)
5 (23,8)
16 (76,2)
Lesão do tendão do músculo subescapular
Não (n = 34)
13 (38,2)
21 (61,8)
ns
Sim (n = 16)
4 (25,0)
12 (75,0)
Luxação da CLB
Não (n = 43)
14 (32,6)
29 (67,4)
ns
Sim (n = 7)
3 (42,9)
4 (57,1)
Lesão SLAP
Não (n = 48)
17 (35,4)
31 (64,6)
ns
Sim (n = 2)
0 (0,0)
2 (100,0)
Intraoperatório
Hiperemia
Não (n = 6)
4 (66,7)
2 (33,3)
ns
Sim (n = 44)
13 (29,5)
31 (70,5)
Achatamento
Não (n = 23)
7 (30,4)
16 (69,6)
ns
Sim (n = 27)
10 (37,0)
17 (63,0)
Fibrilação
Não (n = 7)
3 (42,9)
4 (57,1)
ns
Sim (n = 43)
14 (32,6)
29 (67,4)
Lesão parcial de alto grau da CLB
Não (n = 20)
12 (60,0)
8 (40,0)
0,003
Sim (n = 30)
5 (16,7)
25 (83,3)
Luxação da CLB
Não (n = 40)
13 (32,5)
27 (67,5)
ns
Sim (n = 10)
4 (40,0)
6 (60,0)
Lesão do tendão do músculo subescapular
Não (n = 38)
13 (34,2)
25 (65,8)
ns
Sim (n = 12)
4 (33,3)
8 (66,7)
Lesão da polia
Não (n = 39)
13 (33,3)
26 (66,7)
ns
Sim (n = 11)
4 (36,4)
7 (63,6)
Lesão SLAP
Não (n = 47)
16 (34,0)
31 (66,0)
ns
Sim (n = 3)
1 (33,3)
2 (66,7)
Nesse grupo específico de pacientes, em que todos apresentavam lesão do tendão do
músculo supraespinal e algum grau de lesão do tendão da CLB, aqueles cuja lesão do
tendão da CLB era de alto grau tiveram uma relação direta com o tamanho da lesão do
supraespinal (p < 0,05), considerando que, para cada centímetro de lesão do tendão do músculo supraespinal,
o paciente apresenta um risco 1,7 maior de ter uma lesão de alto grau da CLB. Desse
modo, um paciente com lesão do tendão do músculo supraespinal de 1 cm e 3 cm de extensão
tem, respectivamente, uma probabilidade de 41,4% e 67,1% de apresentar uma lesão significativa
da CLB.
Na [Tabela 6 ] foram apresentadas as associações entre a presença de tendinopatia na CLB pela ressonância
magnética e os testes do exame físico e os achados do intraoperatório; não foram observadas
evidências de associação entre a tendinopatia presente na ressonância magnética e
as variáveis analisadas (p > 0,05). Todavia, foi observada uma associação entre a lesão do tendão do músculo
subescapular na ressonância magnética e a luxação da CLB encontrada na artroscopia
(p < 0,001). Vale ressaltar que a probabilidade de um indivíduo com lesão total do tendão
do músculo subescapular apresentar uma luxação da CLB no intraoperatório é de 91%,
ou um risco 55 vezes maior nos pacientes que apresentam essa lesão.
Tabela 6
Lesão da CLB na RM
Valor de p
Não (n = 3)
Sim (n = 47)
Exame físico
Presença de dor à palpação do sulco intertubercular do úmero
Não
1 (33,3)
16 (34,0)
ns
Sim
2 (66,7)
31 (66,0)
Teste de O'Brien
Negativo
2 (66,7)
12 (25,5)
ns
Positivo
1 (33,3)
35 (74,5)
Teste Palm Up
Negativo
0 (0,0)
11 (23,4)
ns
Positivo
3 (100,0)
36 (76,6)
Teste de Yergason
Negativo
2 (66,7)
28 (59,6)
ns
Positivo
1 (33,3)
19 (40,4)
Intraoperatório
Hiperemia
Não
1 (33,3)
5 (10,6)
ns
Sim
2 (66,7)
42 (89,4)
Achatamento
Não
1 (33,3)
22 (46,8)
ns
Sim
2 (66,7)
25 (53,2)
Fibrilação
Não
0 (0,0)
7 (14,9)
ns
Sim
3 (100,0)
40 (85,1)
Lesão parcial de alto grau da CLB
Não
1 (33,3)
19 (40,4)
ns
Sim
2 (66,7)
28 (59,6)
Luxação da CLB
Não
2 (66,7)
38 (80,9)
ns
Sim
1 (33,3)
9 (19,1)
Lesão do tendão do músculo subescapular
Não
1 (33,3)
37 (78,7)
ns
Sim
2 (66,7)
10 (21,3)
Lesão da polia
Não
1 (33,3)
38 (80,9)
ns
Sim
2 (66,7)
9 (19,1)
Lesão SLAP
Não
3 (100,0)
44 (93,6)
ns
Sim
0 (0,0)
3 (6,4)
Classificação de Snyder para lesão SLAP
II
0 (0,0)
3 (6,4)
ns
Não
3 (100,0)
44 (93,6)
Aplicamos o teste de McNemar para avaliar a concordância entre as incidências encontradas
nos testes do exame físico nas lesões avaliadas na ressonância magnética e observadas
no intraoperatório durante a artroscopia. Nessa perspectiva, pudemos observar que,
na população estudada, a palpação do sulco intertubercular do úmero é um bom teste
para detectar a lesão de alto grau do tendão da CLB. Da mesma forma, a ressonância
magnética também apresentou concordância com a artroscopia para as lesões SLAP e para
a luxação da CLB.
Discussão
Pacientes acometidos por doenças do tendão da CLB frequentemente relatam dor na região
anterior do ombro, localizada no sulco intertubercular do úmero. Os sintomas podem
ser difíceis de serem distinguidos dos das demais afecções do ombro, especialmente
no caso das lesões do manguito rotador.[16 ]
Apesar da não significância estatística, encontramos uma positividade semelhante entre
o teste de Palm Up e a presença de lesão de alto grau do tendão da CLB no intraoperatório:
78% e 60%, respectivamente. O teste Palm Up, de acordo com Bennett et al,[17 ] é um teste com alta sensibilidade (90%) para lesões macroscópicas do tendão da CLB,
o que, em menor proporção, também foi observado em nosso estudo.
Observamos uma positividade de 72% no teste de O'Brien. Na ressonância magnética,
observamos apenas 4% dos exames positivos para lesão SLAP. Já durante a avaliação
intraoperatória, encontramos 6% dos pacientes com esta lesão. Utilizamos o teste de
McNemar para avaliar a concordância entre o exame físico, a ressonância magnética,
e a artroscopia. Como resultado, observamos uma discordância entre a positividade
no teste de O'Brien tanto em relação à ressonância magnética quanto em relação à artroscopia,
demonstrando que esse teste isolado não é adequado para o diagnóstico da lesão SLAP.[18 ] Todavia, as incidências da lesão SLAP na ressonância magnética e na artroscopia
apresentaram concordância estatisticamente significativa.
A literatura é controversa em relação à capacidade do teste de O'Brien, isoladamente,
detectar a lesão SLAP. Ben Kibler et al[12 ] demonstraram uma sensibilidade moderada (61%) para o teste, em concordância com
o estudo de Godinho et al,[19 ] que observaram uma sensibilidade de 66,7%. Esse teste não é capaz de reproduzir
o movimento de peel back que ocorre na CLB para provocar o sintoma no paciente. Apesar desse fato, o teste
de O'Brien apresenta moderada capacidade de diagnosticar a lesão SLAP,[16 ] o que não foi concordante com os nossos resultados. Por outro lado, outros autores
concluíram que esse teste não é um indicador sensível para o diagnóstico, observando,
ainda, uma grande incidência de pacientes falsos positivos, atribuindo a causa desse
viés às lesões associadas no ombro (por exemplo, a lesão do manguito rotador).[20 ]
[21 ]
Nenhum teste isolado, aplicado para diagnosticar a lesão SLAP, é suficiente para o
diagnóstico. Uma combinação entre os testes disponíveis pode aumentar a eficiência
na identificação da lesão, ainda que o resultado dessa associação seja pouco expressivo
em relação a qualquer teste aplicado de maneira isolada.[18 ]
No total, 40% dos pacientes tiveram resultado positivo no teste de Yergason. Entretanto,
somente em 20% dos pacientes foi observada luxação do tendão da CLB à artroscopia,
e 14% foram diagnosticados na ressonância magnética. Da mesma maneira, quando aplicamos
o teste de McNemar, observamos uma discordância entre a incidência do teste de Yergason
e as incidências da lesão tanto na ressonância quanto na artroscopia, demonstrando
que esse teste isolado não é adequado para o diagnóstico de luxação da CLB. Todavia,
as incidências da lesão na ressonância e na artroscopia também foram concordantes
com a significância estatística.
Em consonância com nossos resultados em relação ao teste de Yergason, Ben Kibler et
al[12 ] demonstraram em seu estudo que esse teste apresenta alta especificidade e baixa
sensibilidade, sendo mais preciso para descartar a lesão do que para detectá-la.
Taylor et al[22 ] observaram que a palpação do sulco intertubercular do úmero e o teste O'Brien têm
alta sensibilidade (97,8% e 95,7%, respectivamente). Por outro lado, os testes Palm
Up e de Yergason são bastante específicos (86,7% e 97,9%, respectivamente), apesar
de apresentarem baixa sensibilidade. Portanto, quando o teste de O'Brien e a palpação
do sulco intertubercular do úmero forem negativos, podemos excluir com segurança uma
lesão extra-articular da CLB.
Ao analisarmos nossos resultados em relação aos testes especiais descritos anteriormente,
bem como os encontrados na literatura, observamos que os testes aplicados em conjunto
têm maior êxito no diagnóstico do que quando aplicados isoladamente.[18 ]
As lesãos do tendão da CLB são complexas e multifatoriais, sendo didaticamente definidas
como lesões no complexo bíceps-labial, que são divididas em: lesões da inserção da
CLB no labrum (lesões SLAP); lesões intra-articulares do corpo e da polia do tendão
; e lesões extra-articulares no sulco intertubercular do úmero. Tendo em vista essa
interação entre as possíveis regiões que poderiam abrigar lesões dolorosas do tendão
da CLB, foi proposto um conjunto de três testes para aumentar a precisão diagnóstica,
em vez de usar os testes isolados para o diagnóstico. Propô-se aplicar os seguintes
testes associados: palpação do sulco intertubercular do úmero; o teste do arremesso
(com o braço abduzido a 90°, cotovelo fletido a 90°, e rotação externa máxima, o paciente
inicia o movimento de arremesso contra resistência do examinador); e o teste de O'Brien.[18 ]
[22 ]
A ressonância magnética é o exame mais utilizado para diagnosticar lesões intra-articulares
do tendão da CLB. Em nosso estudo, o exame foi positivo em 92% dos pacientes, sendo
que 59,6% deles apresentavam lesão de alto grau da CLB (lesão acometendo mais de 50%
do tendão). Observamos uma concordância de 90% entre a ressonância magnética e a artroscopia,
considerando como sinais macroscópicos de lesão a hiperemia, o achatamento e a lesão
parcial de alto grau.
Em contrapartida, Malavolta et al[23 ] apresentaram em seu estudo uma sensibilidade moderada (67%) e uma alta especificidade
(98%) para o exame de ressonância magnética. No referido estudo, foram avaliadas somente
as rupturas totais do tendão da CLB, ao passo que em nosso estudo consideramos também
sinais inflamatórios e as lesões parciais, o que poderia explicar a maior incidência
de exames positivos.
Mohtadi et al[13 ] observaram uma menor prevalência de diagnóstico na ressonância magnética e uma menor
concordância entre a ressonância magnética e a artroscopia, 66% e 37,7%, respectivamente.
Atribuímos essa discordância ao fato de a população avaliada em nosso estudo ser mais
idosa (com uma média de idade de 65,1 anos, contrastando com uma média de idade de
46,2 anos do referido estudo), considerando que a incidência das lesões do tendão
da CLB associadas às lesões do manguito rotador aumentam com a idade.
A única correlação com significância estatística entre o exame físico e a avaliação
artroscópica encontrada em nosso estudo foi a dor à palpação do sulco intertubercular
do úmero, observada em 83% dos pacientes cuja lesão acometia mais de 50% da espessura
do tendão da CLB. A lesão parcial é a indicação mais comum para os procedimentos cirúrgicos:
tenotomia e tenodese.[24 ] Nessa perspectiva, o cirurgião já deve estar preparado para a possibilidade de intervenção
no tendão da CLB caso a suspeita no exame físico seja confirmada no intraoperatório.
Atualmente, estudos histológicos têm questionado se realmente as alterações apresentadas
nos exames de imagens, bem como as alterações morfológicas visualizadas na artroscopia,
podem, de fato, caracterizar um processo inflamatório da CLB. Streit et al[25 ] concluíram, em seu estudo, que a dor anterior do ombro não parece estar relacionada
ao processo inflamatório da porção extra-articular do tendão da CLB na maioria dos
casos. Dos 26 pacientes avaliados, somente 2 apresentavam alterações histológicas
de inflamação crônica, e nenhum deles apresentou alteração histológica característica
de processo inflamatório agudo.
A relação entre as lesões do manguito rotador e as lesões do tendão da CLB são bem
conhecidas na literatura médica,[15 ] e, apesar de vários estudos confirmarem sua relação anatômica, apenas alguns deles
se dedicaram a uma investigação mais detalhada.[26 ] A associação entre essas duas lesões varia na literatura entre 78,5% em um grupo
amostral menor (n = 28),[24 ] e 22% em uma amostragem maior (n = 207), conforme observado por Braum et al.[27 ]
Lafosse et al[21 ] observaram uma forte relação entre as lesões da CLB e o tamanho da lesão do manguito
rotador. Desse modo, nosso estudo corrobora a literatura e acrescenta uma relação
de risco ainda não descrita entre essas duas variáveis. Observamos que, para cada
centímetro de lesão do tendão do músculo supraespinal, o paciente tem um risco 1,7
vezes maior de desenvolver uma lesão de alto grau do tendão da CLB. A incidência varia
de 41,4% a 67,1% para as lesões de 1 cm e 3 cm, respectivamente.
Pacientes submetidos à intervenção cirúrgica no bíceps concomitante ao reparo da lesão
do manguito rotador obtiveram melhores resultados em relação ao reparo do manguito
isolado.[28 ] Chechia et al[29 ] demonstraram, em seu estudo, uma satisfação de 93,4% em pacientes submetidos ao
reparo do manguito rotador associado à tenodese do tendão da CLB. Ikemoto et al[30 ] observaram melhores resultados no grupo de pacientes submetidos à tenotomia associada
à tenodese em relação à tenotomia isolada, ressaltando que os pacientes submetidos
à tenotomia isolada também apresentaram resultados satisfatórios.
O estudo realizado apresentou limitações em relação à sua amostra, apesar da população
de 50 pacientes ser compatível com a literatura nacional. Para um poder de teste de
50% e 90%, necessitaríamos de uma amostra de 208 e 300 pacientes, respectivamente.
Da mesma maneira, apontamos como fatores limitantes do nosso estudo a ausência de
um grupo de controle com pacientes sem a lesão do tendão da CLB, bem como de uma população
específica, composta, em sua maioria, por pacientes do sexo feminino com uma média
de idade de 65,1 anos.
O fato de não termos encontrado associações significativas entre as variáveis não
significa que elas não existam, o tamanho amostral pode ter sido o responsável pela
não significância nas análises.