Palavras-chave
instabilidade articular - luxação do ombro - articulação do ombro - reabsorção óssea
- osteólise
Introdução
Nos últimos anos, muitos artigos foram publicados sobre os resultados do procedimento
de bloqueio ósseo descrito por Latarjet para o tratamento da instabilidade glenoumeral
anterior.[1]
[2]
[3]
[4] Mesmo com algumas modificações de cirurgião para cirurgião, o princípio básico da
cirurgia continua a ser a transferência do coracoide através do tendão subescapular.[1]
[5]
[6]
[7] Esse procedimento se tornou o tratamento de escolha em casos com deficiências ósseas > 20%
da área da superfície glenóide, na cirurgia de revisão, e em atletas de esportes de
contato de alto risco, mesmo no contexto de deficiência óssea limitada.[8] Para obtenção dos melhores resultados e menos complicações, o posicionamento adequado
do enxerto é essencial para que a consolidação entre o processo do coracoide e a glenóide
seja nivelada.[9]
[10]
[11]
[12] A reabsorção do enxerto ósseo coracoide pode ocorrer mesmo após a consolidação óssea.
Esse fenômeno tem sido relatado, e alguns autores consideram que ele pode estar associado
a dor no ombro e à recidiva da luxação.[3]
[4]
[11]
[13] Di Giacomo et al.[14] foram uns dos primeiros autores a relatar a localização e a quantidade de osteólise
do enxerto de coracoide após o procedimento de Latarjet usando análise de tomografia
computadorizada (TC). Ele também publicou outro estudo que afirma que pacientes com
perda óssea da glenóide pré-operatória (> 15%) sofreram menos osteólise em comparação
àqueles com defeitos menores.[15] Di Giacomo acredita que, em pacientes sem perda óssea da glenóide, não há estímulos
mecânicos da cabeça do úmero para certas áreas do enxerto, o que pode contribuir para
a reabsorção do coracoide. O objetivo do presente estudo foi avaliar a incidência
de osteólise do enxerto ósseo após o procedimento de Latarjet e correlacioná-la à
idade, tabagismo e presença de perda óssea pré-operatória da glenóide. Nossa hipótese
foi que, como descrito anteriormente, a osteólise do enxerto ósseo é mais pronunciada
nos casos sem perda óssea da glenóide.
Materiais e Métodos
População do Estudo
Este é um estudo observacional retrospectivo de 72 pacientes submetidos à cirurgia
para tratamento de instabilidade anterior do ombro por meio do procedimento de Latarjet
entre maio de 2012 e agosto de 2016. Os critérios de inclusão foram disponibilidade
de realização de TC pré-operatória e pelo menos 1 ano após a cirurgia e de exame físico
pelo menos 2 anos após o procedimento. Casos com grande desvio da técnica mais comumente
utilizada (como a técnica de arco congruente), pacientes submetidos a retirada do
material de osteossintese ou aqueles sem pronta consolidação do enxerto foram excluídos.
Todos os pacientes consentiram por escrito em participar do estudo, que foi aprovado
pelo comitê de ética do instituto.
O principal desfecho estudado foi a osteólise do enxerto coracoide, classificado em
quatro tipos segundo Zhu et al.[16] ([Tabela 1]). De acordo com essa classificação, os pacientes foram divididos em dois grupos,
A (sem reabsorcão ou menor) e B (reabsorção maior ou total). Os grupos foram comparados
em várias exposições, como a quantidade de perda óssea da glenóide antes da cirurgia,
tabagismo, o uso de âncoras de sutura, e idade. Também buscamos a correlação entre
a reabsorção do enxerto e os resultados clínicos pós-operatórios usando o escore de
Rowe, a escala analógica visual e a amplitude de movimento. As variáveis foram obtidas
na TC realizada antes e pelo menos 1 ano após a cirurgia. A amplitude de movimento
foi avaliada no exame físico, e a dor foi registrada pela escala analógica visual.
Estes resultados foram inseridos em uma planilha do Microsoft Excel (Microsoft Corporation,
Redmond, WA, EUA), e a análise estatística foi feita com o programa Real Statistics
(Charles Zaionitz).
Tabela 1
Grau 0 (sem reabsorção): O cone da cabeça do parafuso é enterrado no enxerto ósseo
coracoide
|
Grau I (reabsorção menor): Somente a cabeça do parafuso é exposta fora do enxerto
ósseo.
|
Grau II (reabsorção maior): Parte da haste do parafuso é exposta fora do enxerto.
|
Grau III (reabsorção total): A cabeça do parafuso e a haste estão totalmente expostas,
todo o enxerto ósseo coracoide foi absorvido e não há osso no colo da glenóide.
|
Técnica Cirúrgica
A cirurgia foi realizada sob anestesia geral combinada com bloqueio interescalênico.
Os pacientes foram colocados em posição de cadeira de praia. Uma incisão cirúrgica
foi feita a partir do processo coracoide e se estendeu por ∼ 7 cm em sentido inferior.
Através do intervalo deltopeitoral, o processo coracoide foi osteotomizado com um
osteótomo curvo. O tendão subescapular foi dividido horizontalmente ao longo da fibra
muscular à altura do terço inferior da largura do tendão. Uma incisão vertical foi
feita na cápsula articular anterior. Tanto o enxerto coracoide quanto o colo da glenóide
foram submetidos à remoção do córtex antes da fixação com 2 parafusos (parafusos corticais
de 3,5 mm ou esponjosos de 4,0 mm) sem qualquer guia específico. De acordo com a preferência
dos cirurgiões, a cápsula anterior era recolocada na borda inferior anterior da glenóide
nativa com uma âncora de sutura bioabsorvível Gryphon (Depuy Synthes, Warsaw, IN,
EUA) ou suturada no coto do ligamento coracoacromial ou não recolocada. Uma tipoia
protegeu o ombro por 4 semanas após a cirurgia. A amplitude passiva de movimento foi
iniciada em 2 semanas, e a atividade diária foi permitida em 4 semanas. O fortalecimento
do ombro foi iniciado 3 meses após a cirurgia.
Imagem Radiográfica
As imagens foram obtidas em tomógrafo de 64 canais Philips Brilliance (Philips, Amsterdã,
Holanda), a 250 mA, 120 Kvp e espessura de corte de 1 mm). A perda óssea pré-operatória
da glenóide foi medida em uma reconstrução tridimensional (3D) da face glenoidal com
subtração da cabeça do úmero. A porcentagem de perda óssea da glenóide foi medida
pelo método de área de superfície do programa Image J (National Institutes of Health,
Bethesda, MA, EUA) com conceito de “círculo de melhor ajuste”.[17]
[18]
[19]
[20] A TC pós-operatória foi feita depois de, no mínimo, 1 ano. A consolidacão, posição
e reabsorção do enxerto foram avaliadas. A consolidacão foi confirmada pela ponte
com osso entre o bloco ósseo e a glenóide. A presença de uma linha radiotransparente
completa entre o enxerto e a glenóide representou a não união e o caso foi excluído.
Se o córtex lateral do coracoide era > 1 mm medial ou lateral à superfície articular
da glenóide, a posição do coracoide era definida como saliente medial ou lateral,
respectivamente. Caso contrário, se a cortical lateral do coracoide estivesse a 1 mm
da superfície da glenóide, a posição do coracoide era definida como nivelada (flush). O sistema de classificação descrito por Zhu et al.[16] foi utilizado para avaliar a reabsorção do enxerto coracoide ([Tabela 1]).
Avaliação Estatística
Os resultados foram registrados em uma planilha de Excel, e a análise estatística
foi feita em Real Statistics. Os pacientes foram divididos nos dois grupos, e a normalidade
foi avaliada pelo teste de Shapiro-Wilk. Variáveis contínuas com distribuição normal
foram comparadas pelo teste t de Student (defeitos pré-operatórios da glenóide). As
variáveis de distribuição não normal foram comparadas pelo teste de Mann-Whitney (idade
e escore de Rowe). Dados categóricos com amostras pequenas foram comparados pelo teste
direto de Fischer (uso de âncoras de sutura e tabagismo).
Resultados
Dos 72 pacientes inicialmente incluídos no estudo, 13 foram excluídos por falta de
exames pré-operatórios, e 11 por falta de exames pós-operatórios. Três pacientes foram
excluídos por se submeterem à remoção do implante durante a cirurgia de revisão no
1° ano. Dois apresentaram não união do enxerto e, em seis, o coracoide foi colocado
com a superfície inferior côncava voltada para a articulação (técnica de arco congruente).
Depois das exclusões, permaneceram 38 ombros de 37 pacientes. A média de idade foi
de 33 anos (21 a 67 anos); 32 pacientes eram do sexo masculino, e 5 do sexo feminino.
O tamanho médio do defeito pré-operatório da glenóide foi de 20% (0 a 34%). Um total
de 27 casos apresentou lesão óssea de Bankart, e 10 casos apresentaram erosão óssea.
Um caso não tinha defeito. Em 11 casos, a cápsula anterior foi recolocada na glenóide
com uma âncora. Em nove casos, não houve utilização de âncora e a cápsula foi suturada
ao coto do ligamento coracoacromial ou à cabeça do parafuso (sete e dois casos, respectivamente).
Nos últimos 18 casos, a reinserção da cápsula não foi realizada. A avaliação pós-operatória
por TC foi realizada em um tempo médio de acompanhamento de 27 meses (12 a 72 meses).
A posição do enxerto foi considerada ótima em 34 casos. Três casos foram considerados
mediais, e um, lateral. Segundo o sistema de classificação de Yi-Ming Zhu et al.,[16] a reabsorção do enxerto ocorreu em 22 casos (57,8%), sendo 11 do tipo I, 8 do tipo
II, e 3 do tipo III. Em todos os casos, a reabsorção mais grave se deu na parte superior
do enxerto, ao redor do parafuso superior ([Fig. 1]). Assim, havia 27 casos no grupo A (graus 0 e I) e 11 casos no grupo B (graus II
e III). O defeito médio pré-operatório da glenóide foi de 22,8% no grupo A e de 13,4%
no grupo B (p = 0,0075) ([Tabela 2]). Não houve diferença significativa na média de idade dos indivíduos dos dois grupos:
32 e 35,8 anos nos grupos A e B, respectivamente. Não foi encontrada correlação entre
a osteólise do enxerto e o uso da âncora de sutura para reparo capsular (6 de 27 versus 5 de 11), amplitude de movimento pós-operatória, dor ou escore de Rowe (88,3 versus 89) (p = 0,46). O tabagismo não parece afetar o resultado principal, embora houvesse apenas
dois indivíduos fumantes em cada grupo. Não houve casos de instabilidade recorrente
em nossa amostra, embora quatro pacientes, todos do grupo A, apresentassem teste positivo
de apreensão anterior ([Tabela 3]).
Tabela 2
|
Grupo A (grau 0/I)
|
Grupo B (grau II/III)
|
valor-p
|
Casos
|
27
|
11
|
|
Acompanhamento (meses)
|
27,9 (12–67)
|
26,9 (12–72)
|
|
Perda óssea pré-operatória da glenóide (área)
|
22,8% (7–34)
|
13,4% (0–24)
|
0,0075
|
Idade (anos)
|
32
|
35,8
|
0,410
|
Tabagismo
|
2
|
2
|
0,562
|
Âncora
|
6
|
4
|
0,424
|
Tabela 3
|
Grupo A (grau 0/I)
|
Grupo B (grau II/III)
|
valor-p
|
Escore de Rowe
|
88 (45–100)
|
89 (65–100)
|
0,46
|
Elevação para a frente
|
160° (130–180)
|
151° (140–160)
|
0,175
|
Rotação externa
|
51° (30–80)
|
48° (25–70)
|
0,585
|
Rotação interna
|
T9 (T6-L1)
|
T10 (T5-L3)
|
0,349
|
Apreensão anterior
|
4
|
0
|
0,309
|
Recidiva
|
0
|
0
|
|
Fig. 1 (A) Tomografia computadorizada pré-operatória de reconstrução tridimensional da glenóide.
A borda anterior do defeito da glenóide (em amarelo) e a circunferência do círculo
perfeito (em vermelho) foram delineadas. Porcentagem de perda óssea = (área superficial
do defeito/área superficial do círculo perfeito da glenóide) × 100%. (B, C) Tomografia
axial e sagital no pós-operatório imediato. (D, E) A tomografia computadorizada realizada
42 meses após a cirurgia mostra a reabsorção grau III da parte superior do enxerto
coracoide.
O enxerto coracoide estava bem posicionado e não apresentava reabsorção nos quatro
casos com apreensão anterior positiva.
Discussão
O procedimento de Latarjet é um método confiável para prevenir a instabilidade recorrente
anterior do ombro, e muitos autores relatam resultados bem-sucedidos.[21]
[22]
[23]
[24] Ao mesmo tempo, poucos estudos mencionam a condição da reabsorção óssea coracoide.
O presente estudo mostra que há alguma reabsorção óssea do enxerto coracoide em pelo
menos 50% dos pacientes submetidos à cirurgia de Latarjet, e que pacientes com menor
perda óssea pré-operatória da glenóide foram mais propensos a apresentar osteólise
mais grave do enxerto. Uma das teorias relacionadas a esse achado é que há falta de
estímulos mecânicos do enxerto em pacientes com menor perda óssea da glenóide, enquanto
pacientes com defeitos mais significativos estariam sujeitos a forças de manutenção
quando o coracoide substitui o grande defeito ósseo (lei de Wolff).[14]
[15] Assim, constatamos que a parte superior do enxerto apresentava reabsorção mais pronunciada
em todos os pacientes. Acreditamos que isso ocorra porque a parte inferior do coracoide
é submetida a forças de tração do tendão conjunto, sendo protegida da reabsorção.
Podemos também especular que esta parte tenha alguma contribuição de vascularização
do tendão conjunto. Di Giacomo et al.[14] fizeram um estudo para determinar a localização e a quantidade de osteólise do enxerto
do coracoide após o procedimento de Latarjet usando TC. Esses autores descreveram
uma classificação dividindo o coracoide em oito partes e identificaram a reabsorção
mais pronunciada na parte superficial e medial. Foi a primeira classificação publicada
sobre este assunto, e os autores acreditavam que os resultados da reabsorção se deviam
a fatores mecânicos e biológicos.[14] Posteriormente, os mesmos autores publicaram um segundo trabalho correlacionando
a presença de perda óssea da glenóide e osteólise do enxerto coracoide e identificaram
menor osteólise em pacientes com perda óssea significativa da glenóide (> 15%).[15]
Zhu et al.[16] descreveram um sistema de classificação mais simples do que Giacomo para avaliar
a gravidade da reabsorção óssea do coracoide transferido. Sua classificação é baseada
na quantidade de reabsorção observada na TC axial em torno de cada um dos parafusos;
a reabsorção é classificada pelo grau mais elevado entre os dois parafusos. Em nosso
estudo, o maior grau foi sempre no parafuso superior. Esses autores observaram incidência
de 90,5% de reabsorção óssea coracoide após 1 ano e, no nosso estudo, utilizando a
mesma classificação, encontramos uma incidência de 57,8%. Zhu et al.[16] não tentaram correlacionar a incidência ou a gravidade da reabsorção com a perda
óssea da glenóide, e todos os pacientes de sua série tinham um defeito ósseo pré-operatório > 20%
na glenóide . Haeni et al.[25] realizaram um estudo prospectivo com 15 pacientes após o procedimento de Latarjet
artroscópico e verificaram que a metade superior do coracoide sofre uma significativa
quantidade de osteólise após 6 meses. Uma diferença de seu estudo foi que a reabsorção
foi avaliada através de tomografias tridimensionais com análise volumétrica. Não houve
menção de implicações clínicas ou de complicações devido à reabsorção. Recentemente,
Zhu et al.[26] publicaram um estudo comparativo prospectivo entre o Latarjet aberto e artroscópico
e observaram menor reabsorção do enxerto no grupo artroscópico. Ambos os grupos não
apresentaram diferença significativa quanto à perda óssea pré-operatória da glenóide.
Os autores atribuíram esse resultado a uma causa multifatorial de reabsorção e acreditavam
que a melhor proteção dos tecidos moles durante a cirurgia artroscópica poderia aumentar
a preservação do suprimento sanguíneo do coracoide. Uma das principais preocupações
sobre a osteólise do processo coracoide é a possível associação a piores resultados
clínicos, mas, até o momento, não há consenso.[4]
[25] Um total de 11 pacientes (29%) da nossa série teve reabsorção maior (graus II e
III), mas isso não foi correlacionado a qualquer diferença nos desfechos funcionais
ou ao risco de recidiva da instabilidade em comparação a pacientes sem reabsorção
ou com reabsorção menor. Lunn et al.,[27] em uma série de pacientes nos quais o procedimento de Latarjet foi ineficaz, identificaram
a lise do enxerto como um fator de risco para recorrência da instabilidade. Isso pode
gerar uma discussão sobre a importância do bloqueio ósseo em comparação com ao efeito
tirante do tendão conjunto na estabilidade após o procedimento de Latarjet.[28]
[29] Nossos resultados clínicos demonstraram que a presença de reabsorção não estava
relacionada à maior incidência de recidiva. Di Giacommo et al.[14]
[15] sugerem que o efeito do bloqueio ósseo pode não ser o principal devido à enorme
osteólise observada em seus pacientes. Poderíamos especular que a contribuição óssea
para a estabilidade após o procedimento de Latarjet é mais importante em casos com
defeitos ósseos maiores na glenóide porque esses são os pacientes com menos osteólise,
como já demonstrado.
O número limitado de pacientes e o curto período de acompanhamento são algumas das
limitações do presente estudo. Embora não tenhamos identificado um efeito negativo
no desfecho clínico dos pacientes com reabsorção mais grave do enxerto, ainda existem
preocupações sobre este assunto. Portanto, recomendamos cautela ao realizar os procedimentos
de Latarjet em casos sem perda óssea significativa da glenóide, considerando a maior
chance de reabsorção da parte superior do enxerto; além disso, a posição ideal do
parafuso deve ser assegurada.
Conclusão
O presente estudo mostra que reabsorção óssea do enxerto coracoide está presente em
pelo menos 50% dos pacientes submetidos à cirurgia de Latarjet, e que a ausência de
defeito significativo pré-operatório da glenóide parece ser o único fator de risco
associado à osteólise mais grave do enxerto, apesar da ausência de importância clínica
significativa nesses casos.