Palavras-chave
osteointegração - banco de tecidos - enxertos ósseos - artroplastia
Introdução
No Brasil, os tecidos ósseos homólogos humanos são os mais transplantados em comparação
com outros transplantes, tais como os de pele, de córnea e de medula óssea. Eles são
utilizados nas reconstruções ortopédicas e odontológicas, e sua demanda cresceu na
última década.[1]
Os tecidos ósseos autólogos são considerados o “padrão-ouro” quando utilizados nas cirurgias de reconstrução. Isso se deve às suas propriedades
osteogênicas, osteoindutoras e osteocondutoras, e por não causarem reação imunológica.
Porém, os tecidos ósseos homólogos têm vantagens quando comparados aos autólogos,
tais como a redução da morbidade, por evitar uma segunda incisão cirúrgica com menor
perda sanguínea durante a cirurgia, além de possibilitar reconstruções que requerem
maior quantidade de enxerto.[2]
[3]
[4]
Na ortopedia, os enxertos ósseos são utilizados principalmente nas cirurgias de escoliose,
ressecção de tumores musculoesqueléticos, no tratamento das pseudartroses, e nas revisões
de artroplastias do quadril e joelho, que apresentam números crescentes de procedimentos.[2]
[4] O aprimoramento dos bancos de tecidos no preparo e oferta de diferentes tipos de
enxertos proporcionaram progressos na eficácia dos transplantes ósseos e nas cirurgias
de revisão de artroplastia com perda grave de estoque ósseo.[5]
[6]
[7]
Existe grande preocupação em garantir a qualidade dos tecidos ósseos e promover a
segurança dos pacientes receptores em relação à transmissão de doenças infectocontagiosas.[4]
Somente o processo de esterilização por radiação ionizante dos tecidos promove nível
de segurança de 10−6, ou seja, probabilidade de 1:1.000.000 de encontrar microorganismos viáveis, e este
método apresenta vantagens com relação a outros métodos de esterilização, tais como:
boa penetrabilidade, não deixa resíduos tóxicos, e pode ser utilizado como uma esterilização
final, ou seja, evitando o risco de contaminação por manipulação após a esterilização.[8] A aplicação da radiação gama com fontes de 6°Co na esterilização de tecidos biológicos tem sido utilizada há anos; porém, diversos
autores demonstram que este procedimento pode acarretar alterações estruturais e biológicas,
conforme a dose aplicada.[9]
[10]
[11]
O presente estudo avalia e compara a osteointegração dos enxertos ósseos congelados
irradiados e não irradiados utilizados em pacientes submetidos a revisão de prótese
do quadril.
Materiais e Métodos
Trata-se de um estudo retrospectivo com 21 pacientes submetidos a revisão de artroplastia
do quadril pela técnica Exeter, com utilização de tecidos ósseos tratados ou não com
radiação gama no período entre 2013 e 2014. Um total de 14 pacientes eram do sexo
masculino, e 7, do sexo feminino, com idade entre 48 e 85 anos (média de 67,7 anos).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética, e foi realizado no banco de tecidos em
conjunto com o grupo do quadril, ambos da nossa instituição.
As avaliações radiológicas de rotina no pré-operatório e pós-operatório imediato,
e depois de 6 e 12 meses, foram realizadas para a interpretação da osteointegração
dos enxertos, conforme podemos observar na [Figura 1].
Fig. 1 Radiografias de incidência ântero-posterior do quadril esquerdo. (A) Radiografia
pré-operatória com avaliação de perda óssea no acetábulo e fêmur esquerdo. (B) Radiografia
do pós-cirúrgico imediato à cirurgia de revisão da prótese com o uso de enxerto ósseo
irradiado no acetábulo e no fêmur. (C) Radiografia do pós-cirúrgico de 12 meses, em
que se nota a integração óssea do enxerto irradiado ao acetábulo e ao fêmur.
Reunimos os critérios radiográficos propostos por Coon et al[12] e Azuma et al[13] para a interpretação da integração óssea durante o acompanhamento do pós-cirúrgico
dos pacientes nos períodos de 6 e 12 meses, e estratificamos, conforme a [Tabela 1].
Tabela 1
Classificação de osteointegração
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Condições propostas para a classificação de osteointegração
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1–Osteointegração total do enxerto
|
Formação total de molde trabecular contínuo na região de interface entre o enxerto
ósseo e o osso do receptor, denotando o aparecimento de novo padrão trabecular semelhante
à estrutura óssea normal em todas as áreas do enxerto impactado, seguida de reorganização
óssea, desaparecimento da linha esclerótica presente na interface enxerto–receptor,
e radiodensidade idêntica entre o enxerto e o osso do receptor.
|
2–Osteointegração parcial do enxerto
|
Formação parcial de molde trabecular contínuo na região de interface entre o enxerto
ósseo e osso do receptor, denotando o aparecimento de novo padrão trabecular semelhante
à estrutura óssea normal parcialmente nas áreas do enxerto impactado, seguida de reorganização
óssea, desaparecimento parcial da linha esclerótica presente na interface enxerto–receptor,
e radiodensidade idêntica entre o enxerto e o osso do receptor.
|
3–Ausência de osteointegração
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Não houve osteointegração do enxerto.
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4–Inviabilidade de avaliar a osteointegração
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Impossibilidade de visualizar os enxertos devido à presença de tela ou outros dispositivos
protéticos.
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Dividimos os pacientes em dois grupos, de acordo com o uso do enxerto tratado ou não
com radiação ionizante (raios gama), e eles foram, portanto, classificados como: grupo
irradiado e não irradiado.
Os tecidos foram irradiados por radiação gama na dose de 25 kGy, com taxa de dose
de 0,00138 kGy/s e temperatura aproximada de -70°C, pois estas condições reduzem os
efeitos indesejáveis da radiação, tais como: altas doses, alta taxa de transferência
de energia e o aquecimento, respectivamente, com o intuito de manter a integridade
das propriedades biológicas dos tecidos.[4]
Os resultados foram analisados e comparados entre os grupos estudados. Foram excluídos
3 pacientes durante a comparação dos grupos irradiados e não irradiados com classificação
de osteointegração número 4. A análise estatística foi realizada por comparação dos
resultados pelo teste de Mann-Whitney não pareado e não paramétrico para diferenças
estastísticas (p < 0,05).
Resultados
Dos 21 pacientes estudados, 7 pertenciam ao grupo irradiado (uso de enxerto ósseo
congelado irradiado), e 14, ao grupo não irradiado (uso de enxerto ósseo congelado
não irradiado). Os diagnósticos iniciais dos pacientes que motivaram a artroplastia
primária do quadril foram: artrose do quadril (71,4%); fratura do colo femoral ou
do acetábulo (14,2%); necrose da cabeça femoral (4,8%); displasia do desenvolvimento
do quadril (4,8%); e espondilite anquilosante (4,8%). Nenhum dos casos avaliados apresentou
infecção.
A quantidade em gramas de enxertos ósseos utilizados nos pacientes apresentou uma
variação de 50 a 266 g (média de 128,4 g).
Na [Tabela 2], podemos observar que 8 pacientes tiveram osteointegração parcial com avaliação
radiográfica no pós-cirúrgico de 6 meses, e, após 12 meses, evoluíram para osteointegração
total do enxerto, e 4 pacientes com avaliação de ausência de osteointegração no pós-cirúrgico
de 6 meses apresentaram osteointegração parcial após 12 meses. No entanto, 6 pacientes
não apresentaram osteointegração no pós-cirúrgico de 6 meses e 12 meses, e não foi
possível avaliar 3 pacientes quanto à osteointegração devido à presença de tela ou
de outros dispositivos protéticos. Houve diferença significativa entre as avaliações
de 6 e 12 meses (p = 0,031).
Tabela 2
Grupos
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Pacientes
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Classificação de osteointegração
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6 meses de pós-cirúrgico
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12 meses de pós-cirúrgico
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Irradiado
|
Paciente n° 1
|
2
|
1
|
Paciente n° 2
|
3
|
2
|
Paciente n° 3
|
2
|
1
|
Paciente n° 4
|
4
|
4
|
Paciente n° 5
|
3
|
3
|
Paciente n° 6
|
2
|
1
|
Paciente n° 7
|
3
|
3
|
Não irradiado
|
Paciente n° 8
|
3
|
3
|
Paciente n° 9
|
2
|
1
|
Paciente n° 10
|
2
|
1
|
Paciente n° 11
|
3
|
2
|
Paciente n° 12
|
2
|
1
|
Paciente n° 13
|
3
|
3
|
Paciente n° 14
|
2
|
1
|
Paciente n° 15
|
3
|
2
|
Paciente n° 16
|
3
|
2
|
Paciente n° 17
|
4
|
4
|
Paciente n° 18
|
3
|
3
|
Paciente n° 19
|
2
|
1
|
Paciente n° 20
|
4
|
4
|
Paciente n° 21
|
3
|
3
|
Nas [Figuras 2] e [3], observamos a comparação do percentual de osteointegração entre os dois grupos.
Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas (p = 0.804).
Fig. 2 Comparação do percentual da osteointegração dos grupos estudados no pós-cirúrgico
de seis meses dos pacientes submetidos a revisão de artroplastia do quadril com enxertia
óssea pela técnica Exeter. Classificação da osteointegração: 1- Osteointegração total
do enxerto; 2- Osteointegração parcial do enxerto; 3- Ausência de osteointegração;
4- Inviabilidade de avaliar a osteointegração.
Fig. 3 Comparação do percentual da osteointegração dos grupos estudados no pós-cirúrgico
de12 meses dos pacientes submetidos à revisão de artroplastia do quadril com enxertia
óssea pela técnica Exeter. Classificação da osteointegração: 1-Osteointegração total
do enxerto; 2- Osteointegração parcial do enxerto; 3- Ausência de osteointegração;
4- Inviabilidade de avaliar a osteointegração.
Discussão
A técnica Exeter vem sendo aplicada no grupo do quadril da nossa instituição nas últimas
décadas. Embora não seja o objetivo deste estudo, esta técnica foi bem descrita por
Wilson et al,[14] que avaliaram 705 casos com alta taxa de efetividade (98,8%).
Na resposta biológica que ocorre após o transplante ósseo nas revisões de artroplastia
do quadril, espera-se primeiramente a ocorrência do evento de consolidação do enxerto,
conforme relatado por Jasty e Harris.[15] O enxerto pode apenas se consolidar, e existem situações em que o enxerto consolidado
pode se integrar ao osso hospedeiro. Portanto, consolidação e osteointegração são
processos distintos. Na consolidação, temos a união do enxerto ao osso hospedeiro
pela formação de osso entre estes, e na osteointegração ocorre a substituição do enxerto
por tecido ósseo do receptor por eventos de reabsorção e recolonização celular, resultando
em uma substituição progressiva de um por outro.[16]
O tempo do processo de osteointegração depende da estabilidade mecânica e da quantidade
do enxerto utilizado, e, também, da resposta biológica do receptor. A osteointegração
é de extrema importância para a restauração do estoque ósseo e para uma maior durabilidade
da prótese.[17]
Foram realizadas avaliações retrospectivas pós-cirúrgicas em 21 pacientes submetidos
a revisão de artroplastia do quadril pela técnica Exeter com o uso de enxerto irradiado
e não irradiado. Os dados epidemiológicos dos pacientes, tais como idade, sexo, entre
outros, são dados apenas descritivos, pois o nosso número de casos era insuficiente
para que se fizesse uma análise estatística nessa amostra. Entretanto, Böhm e Bischel[18] afirmaram que não houve diferença na integração dos enxertos quando foram comparados
idade, o sexo, o peso corporal, e o diagnóstico, entre outros critérios.
Existe uma intensa preocupação em garantir a qualidade dos tecidos e promover a segurança
dos pacientes receptores de tecidos homólogos com relação à transmissão de doenças
infectocontagiosas. Com o propósito de diminuir possíveis contaminações, são realizados,
no doador de tecidos ósseos, triagem sorológica, avaliação do histórico e comportamento
social, assim como testes de biologia molecular para detecção de RNA viral de vírus
da imunodeficiência humana (HIV) e de vírus da hepartite C (HCV), exames clínicos
e controles microbiológicos, além de serem aplicadas técnicas assépticas durante os
procedimentos.[10] Entretanto, existe a possibilidade de contaminação por microorganismos durante a
captação, o processamento, a preservação e o armazenamento dos tecidos.[19]
A segurança microbiológica dos tecidos musculoesqueléticos pode ser aumentada com
o emprego da esterilização dos enxertos.
A radiação gama é a mais utilizada nos bancos de tecidos, e é um método eficaz para
proporcionar a esterilização terminal do tecido biológico; porém, há relatos sobre
os possíveis efeitos deletérios das propriedades mecânicas e biológicas dos tecidos,
dependendo da dose de radiação aplicada.[10] Por este motivo, usualmente são aplicadas doses menores de radiação, entre 15 kGy
a 25 kGy, e, com menor frequência, doses mais altas (> 25 kGy).
A análise da osteointegração por exame radiográfico de acompanhamento foi proposta
por Conn et al,[12] que consideraram o enxerto integrado quando a radiodensidade entre o enxerto e o
osso receptor era idêntica, com formação de um molde trabecular contínuo na interface
enxerto–receptor, denotando um novo padrão trabecular, segundo as cargas que foram
aplicadas nesta região, ocorrendo então uma reorganização óssea. Posteriormente, Azuma
et al[13] consideraram o enxerto incorporado quando a linha esclerótica presente na interface
enxerto–receptor desaparecia, com restauração da densidade normal do enxerto. O nosso
grupo decidiu associar estas definições para avaliar melhor a integração óssea. Contudo,
esta análise por avaliação radiográfica pode ser subjetiva e de difícil interpretação,
principalmente na presença de material de síntese, como telas metálicas, anel de reforço
acetabular, e parafusos, entre outros.
A melhor técnica de comprovação da osteointegração é o estudo histológico do enxerto
transplantado; entretanto, esta técnica não é realizada rotineiramente, principalmente
por ser invasiva.[20] Comparando a avaliação da osteointegração no período de 6 meses com o de 12 meses
após o transplante, os resultados indicam diferenças significativas (p = 0,031), o que pode ser explicado por maiores evidências radiológicas de osteointegração
na avaliação de 12 meses.
Quando comparamos a osteointegração dos grupos que utilizaram enxertos irradiados
e não irradiados em nosso estudo, não observamos diferenças estatisticamente significativas;
porém, sugerimos mais estudos para afirmar que o uso de ossos irradiados com doses
controladas de radiação gama (25 kGy) é tão eficaz nas reconstruções ósseas realizadas
nas revisões de artroplastias do quadril quanto o uso dos enxertos não irradiados.
Estes resultados também foram descritos por Emms et al,[21] que estudaram o uso de enxerto irradiado em reconstruções acetabulares em médio
e longo período de tempo (de 2 e 12 anos) em 110 pacientes que relataram bons resultados
no acompanhamento pós-cirúrgico, resultados comparáveis ao uso de enxertos não irradiados.
Conclusão
Não houve diferença significativa no uso de enxerto irradiado e não irradiado nas
revisões de artroplastias do quadril pela técnica Exeter.