CC BY-NC-ND 4.0 · Arquivos Brasileiros de Neurocirurgia: Brazilian Neurosurgery 2020; 39(01): 033-034
DOI: 10.1055/s-0038-1639498
Miscellaneous | Artigo de Atualização
Thieme Revinter Publicações Ltda Rio de Janeiro, Brazil

Resenha do livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia

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1   Universidade Federal de Integração Latino-Americana do Brasil (UNILA), Foz do Iguaçu, PR, Brasil
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2   Sociedade Brasileira de Neurocirurgia do Brasil (SBN), Universidade Federal de Integração Latino-Americana do Brasil (UNILA), Foz do Iguaçu, PR, Brasil
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Gilvan Aguiar da Silva
Universidade Federal de Integração Latino-Americana do Brasil (UNILA)
Foz do Iguaçu, PR, 85870901
Brasil   

Publication History

10 November 2017

05 January 2018

Publication Date:
16 March 2018 (online)

 

Resumo

Nesse artigo, elaboramos uma resenha sobre o livro: Sem causar mal - histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Dr. Henry Marsh, uma obra que pode ser de contribuição significativa para a educação médica no que se refere à ética e à vocação para neurocirurgia.


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Introdução

Médicos são falíveis, e embora tentem se manter blindados sob uma armadura de superioridade e distanciamento, também podem sentir ansiedade e medo antes de uma cirurgia. Neste livro,[1] o Dr. Henry Marsh, um conceituado neurocirurgião britânico, com uma abordagem especialmente realista e desprovida de qualquer visão apaixonada sobre a profissão, desnuda os mitos que os pacientes têm a respeito dos médicos, revelando a face humana e também falível da profissão, além dos dilemas éticos e do desgaste emocional que esses profissionais sofrem no decorrer da carreira.

Essa incrível saga de histórias emocionantes da neurocirurgia que Dr. Marsh enfrentou durante sua carreira possibilita uma profunda imersão no que é a vida de um neurocirurgião, e é contada com alguns trechos de relatos técnicos explicativos de como são feitas as cirurgias ou como surgem os problemas a serem operados, e há também a presença dessas comoventes histórias de vida dos pacientes que operou ao longo de sua carreira.

Ao contrário de algumas biografias ou livros de não ficção que mostram uma visão mítica a respeito do neurocirurgião, como sendo o típico aluno que sempre foi o melhor na escola, inteligente e quase um ser iluminado, logo nas páginas iniciais do livro, Dr. Marsh conta como se deu o início de sua carreira e com humildade enfatiza que não foi nenhum superaluno durante o ensino médio, mas ao contrário, praticamente não tendo recebido educação científica, foi rejeitado pela maioria das escolas de medicina na Inglaterra, e acabou conseguindo o ingresso no curso de medicina junto a uma turma de alunos com resultados ruins no Ensino Médio (p.82), e conta também as experiências em seu trabalho anterior como enfermeiro em um asilo para idosos, onde realizava as mais diversas tarefas, as quais a maioria das pessoas consideraria desagradáveis (p. 84), e como tudo isso foi importante para sua carreira: “Tenho menos medo do fracasso; consegui aceitar sua existência e sentir-me menos ameaçado por ele” (p. 92).

Nesse sentido, enfrentando dilemas morais e éticos de inefável complexidade no seu dia-a-dia, o autor demonstra seu ponto de vista de que não é difícil saber quando operar, mas o difícil é decidir quando não operar, pois em alguns casos as cirurgias têm chances muito altas de fracasso, e as pessoas operadas podem ter uma sobrevida muito curta, extremamente dependente, dolorosa, dramática e sofrida, o que torna relativo o conceito de sucesso. Assim, declara que: “O problema é quando não há certeza entre operar ou não, é fácil ser sábio em retrospecto” (p. 242-243), ou ainda, de forma polêmica diz: “Em alguns casos, é melhor deixar alguém morrer do que operar” (p. 131).

Essa forma de raciocínio pode deixar a falsa impressão que o autor seja desprovido de qualquer ética ou sentimentos para com seus pacientes, e logo se percebe que isso é um terrível engano, principalmente quando exemplifica seu raciocínio, com alguns pacientes que sabia serem terminais, mas acabou decidindo operar por covardia de enfrentar a família e dizer a verdade (p. 145), e de como essas experiências foram desagradáveis para todos, ou ainda um caso pessoal de bastante emoção, quando sua própria mãe foi diagnosticada com um câncer incurável e foi mandada para casa para morrer, uma experiência muito menos dolorosa do que poderia ter sido no ambiente de um hospital (p. 203).

No decorrer das histórias, facilmente se percebe que embora Dr. Marsh tenha se tornado ao longo de sua carreira um profissional extremamente pragmático e racional, que não acredita em milagres, é justamente essa característica que permite que ele desenvolva um comovente e profundo envolvimento com seus pacientes, por exemplo, quando enfatiza sua visão de que não se sente recompensando com um paciente agradecido, que retorna várias vezes ao seu consultório com presentes ou elogios, mas apenas se sente realmente recompensado quando seus pacientes se esquecem dele, pois isso significa que ficaram curados (p. 42).

Fácil seria escrever uma bibliografia somente com os casos de sucesso e felicidade, mas é preciso ter muita autoconfiança e coragem para assumir os fracassos que são inevitáveis ao longo da vida de qualquer pessoa. Dessa forma, ao promover esse choque de realidade e demonstrar que médicos também são humanos e por isso, também erram, Dr. Marsh nos faz refletir sob a pressão à qual esses profissionais são submetidos, precisando tomar decisões rápidas e cercados pelo constante risco de cometer erros, pois quando ocorrem erros na neurocirurgia, geralmente os resultados são catastróficos (p. 163). Um desses casos é o de um jovem atleta que acabou tendo a raiz de um nervo cortado devido a um erro de seu residente (mas no qual ele também teve a sua parcela da culpa) e que tornou esse paciente incapaz de levantar o pé, tornando-se manco e impossibilitado de correr ou pedalar (p. 161, 180 e 183). Há ainda casos de pacientes que sofreram AVC (acidente vascular cerebral) durante operações e que se tornaram incapazes de falar e de entender o que é dito, ficando quase que desconectados do mundo real (p. 192), ou ainda o arrependimento que carrega consigo de ter sido convencido no passado de realizar uma psicocirurgia (p. 125).

Outros casos de erros ou de complicações mais dramáticas são narrados, e neles o autor expõe como o termo “complicações” é às vezes utilizado como eufemismo para verdadeiras cenas caóticas de hemorragias descontroladas ou que beiram o desespero (p. 108 e 244).

Em vários trechos, o autor demonstra os ônus que se recebe junto com a profissão; declara que se comportava de forma exultante antes de uma cirurgia no início de sua carreira, mas como é difícil manter o otimismo e o entusiasmo após muitos anos na profissão, tendo presenciado histórias de desespero, de complicações cirúrgicas, e de resultados pífios (p. 11). Portanto, é de se esperar que tenham ansiedade e medo antes de operar (p. 47), a diferença é que não podem demonstrar isso, nem para equipe nem para os pacientes, é um peso que precisam carregar sozinhos.

De fato, alguns neurocirurgiões, ao final de sua carreira, podem sofrer de problemas psicológicos, como ansiedade ou depressão, devido a esse grande estresse ao qual são submetidos, numa rotina de pouco tempo para a família e muito tempo cercado por histórias trágicas. Isso fica bem claro, por exemplo, no dia que Dr. Marsh teve que interromper um passeio em seu raro horário de folga para dar a um paciente a terrível notícia de que ele iria inevitavelmente morrer, ficando assim, abalado durante todo o restante do dia (p. 158), ou ainda como toda essa rotina de falta de tempo e estresse levaram ao fim do seu primeiro casamento (p. 21).

Muitos jovens estudantes de medicina se sentem seduzidos pela especialidade de neurocirurgia, que por alguns, inclusive, é vista como a posição de mais alto status médico, mas poucos podem imaginar o quão pode ser dramática e sofrível uma vida inteira dedicada a neurocirurgia quando se lida com a realidade em si: “Uma típica carreira de neurocirurgia, envolve morte, discussões e sequelas” (p. 137), por isso, não basta ter vocação para a profissão, é necessário também ter uma visão realista do ambiente no qual terá que conviver: “A neurocirurgia é um trabalho horrível, cheio de tristezas e decepções, não siga por esse caminho” (p. 194), aconselha o autor.

Portanto, concluímos que essa obra, além de permitir ao leitor ter uma noção de como são feitas algumas neurocirurgias, traz incríveis lições e histórias emocionantes dessa profissão, culminando numa profunda reflexão a respeito da ética médica. Logo, do ponto de vista da educação médica, e vocação para neurocirurgia, esta obra pode ser um referencial de realidade a subsidiar a tomada de decisão de estudantes que ainda têm dúvidas sobre a carreira que querem seguir. De fato, o formato adotado pelo autor do livro, ao contrário das literaturas acadêmicas tradicionais do meio científico, torna o texto extremamente acessível, leve e agradável, promovendo uma avidez pela leitura, e que por isso, também faz dessa obra um instrumento de divulgação científica que pode ser utilizado até mesmo como leitura complementar nos cursos de pós-graduação ou de iniciação científica nas áreas das ciências da saúde.


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Conflict of Interests

The authors have no conflict of interests to declare.

  • Reference

  • 1 Marsh H. Do No Harm: Stories of Life, Death and Brain Surgery. São Paulo, SP: Editora Nversos; 2017

Address for correspondence

Gilvan Aguiar da Silva
Universidade Federal de Integração Latino-Americana do Brasil (UNILA)
Foz do Iguaçu, PR, 85870901
Brasil   

  • Reference

  • 1 Marsh H. Do No Harm: Stories of Life, Death and Brain Surgery. São Paulo, SP: Editora Nversos; 2017