CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2019; 54(05): 597-600
DOI: 10.1016/j.rbo.2017.09.020
Relato de Caso | Case Report
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. Published by Thieme Revnter Publicações Ltda Rio de Janeiro, Brazil

Laceração da artéria ilíaca externa por migração de prótese da anca[*]

Article in several languages: português | English
1   Serviço de Ortopedia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
,
Mário Moreira
2   Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
,
Luís Antunes
2   Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
,
Alfredo Gil Agostinho
3   Serviço de Imagem Médica, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
,
Manuel Fonseca
2   Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
,
António Albuquerque
2   Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
› Author Affiliations
Further Information

Endereço para correspondência

Diogo Lino Moura
Serviço de Ortopedia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Praceta Prof. Mota Pinto
3000-075, Coimbra
Portugal   

Publication History

27 July 2017

13 September 2017

Publication Date:
27 August 2019 (online)

 

Resumo

A artroplastia da anca é uma intervenção frequente e segura na cirurgia ortopédica. No entanto, a proximidade dessa articulação com vasos de grande calibre faz com que a ocorrência de lesão vascular maior seja uma complicação rara, mas grave e possivelmente letal, dessa técnica cirúrgica. As lesões vasculares agudas no contexto de uma artroplastia da anca têm etiologia e apresentação clínica variáveis e são mais frequentes em cirurgias de revisão e situações de migração medial intrapélvica e de infecção crônica de próteses da anca. No presente artigo, os autores apresentam um caso com complicação vascular maior aguda e tardia em contexto de revisão de prótese da anca. Trata-se de um paciente que desenvolveu uma laceração aguda da artéria ilíaca externa em contexto de migração acetabular intrapélvica crônica progressiva da prótese da anca associada a infecção crônica.


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Introdução

A artroplastia da anca é um procedimento frequente e seguro na cirurgia ortopédica. No entanto, a proximidade dessa articulação com vasos de grande calibre faz com que esteja associada a algum risco, ainda que mínimo (incidência de 0,1 a 0,25%) de lesões. Apesar de ser uma complicação rara, os seus efeitos podem ser devastadores, podendo colocar em risco a vida do paciente.[1] [2] Os vasos mais frequentemente atingidos são as artérias e veias femorais comuns, obturadoras, ilíacas externas, ilíacas comuns, glúteas superiores e femorais profundas.[3] [4] [5]

Relato de caso

Apresentamos um paciente de 75 anos referenciado ao nosso serviço de urgência devido a drenagem hematopurulenta abundante através de cicatriz operatória localizada na anca esquerdo. O paciente estava internado em outra instituição havia 4 dias por quadro clínico de febre, prostração e anemia aguda, cujo valor de hemoglobina tinha descido de 12 para 7,6 g/dl em apenas uma semana, com necessidade de apoio transfusional e fluidoterapia. Na admissão na nossa instituição, apresentava-se hemodinamicamente estável, prostrado, febril, com edema moderado da coxa esquerda e drenagem hemática por cicatriz cirúrgica na anca. O exame neurovascular do membro estava normal, apresentava pulsos femorais e distais palpáveis e temperatura mantida. O paciente tinha sido submetido em outra instituição a artroplastia total cimentada da anca esquerdo havia 2 anos, a qual foi seguidamente revista com reorientação do componente acetabular por instabilidade. Após essa revisão, verificou-se o desenvolvimento de uma deiscência da ferida cirúrgica e o paciente foi diagnosticado com infecção periprotésica com isolamento de Staphylococcus aureus em drenagem purulenta por fístula. As radiografias da bacia mostravam descolamento do componente acetabular e migração cefálica e medial acentuada da prótese da anca além da linha de Kohler ([Fig. 1]). Face ao contexto e à suspeita de lesão vascular, foi solicitada uma angiotomografia computadorizada ([Fig. 2]), que revelou um hematoma que ocupava a maior parte da fossa ilíaca esquerda e da região inguinal, condicionando desvio e compressão do eixo ilíaco esquerdo. Superficialmente a esse hematoma, verificou-se que a artéria ilíaca externa estava patente, mas laminada e em proximidade à prótese da anca, com irregularidade ao nível da bifurcação da ilíaca primitiva, de natureza traumática.

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Fig. 1 Radiografias da anca esquerda que revelam prótese da anca esquerda migrada superomedialmente.
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Fig. 2 Tomografia computorizada. Hematoma que ocupa a maior parte da fossa ilíaca esquerda e região inguinal.

Admitiu-se o diagnóstico de laceração aguda da artéria ilíaca externa por migração erosiva da prótese da anca. Procedeu-se então a uma angiografia, na qual se verificou claramente um extravasamento de contraste com origem no segmento inicial da artéria ilíaca externa esquerda ([Fig. 3A]). Fez-se exclusão da lesão com colocação de dois stents cobertos expansíveis por balão Atrium Advanta V12 (Getinge Australia Pty Ltd., Macquarie Park, NSW, Australia) de dimensões de 6 × 59 mm e de 5 × 59 mm ([Fig. 3B]), e conseguiu-se assim paragem da hemorragia e estabilização hemodinâmica do paciente com fluidoterapia e transfusão de concentrados eritrocitários e hemoderivados. O paciente, estabilizado do ponto de vista hemodinâmico, prosseguiu seguidamente a cuidados de tratamento da infecção crônica da artroplastia, que incluíram antibioticoterapia dirigida e tratamento cirúrgico com extração dos componentes protésicos e limpeza cirúrgica. Em virtude do ocorrido, dos riscos acrescidos, e por vontade do paciente, optou-se por não se efetuar reconstrução artroplástica.

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Fig. 3 Angiografia A, extravasamento de contraste com origem na artéria ilíaca externa esquerda; Angiografia B, angiografia após colocação de stents cobertos, com paragem da hemorragia.

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Discussão

Apesar da sua raridade, as consequências das lesões vasculares maiores no contexto de uma artroplastia da anca são aquelas com maior potencial de ser letais, e apresentam taxas de 7% de mortalidade e de 5% de amputação do membro.[6] [7] Face a isso, o ortopedista deve ter em conta que essas lesões podem ocorrer em qualquer artroplastia da anca e manter elevado nível de suspeição na identificação de casos de elevado risco de lesão vascular maior, em particular em cirurgias de revisão de migração acetabular medial intrapélvica. A combinação entre infecção crônica profunda de prótese da anca com migração medial intrapélvica do componente acetabular constitui uma situação de elevado risco para lesão vascular, na medida em que a infecção torna os tecidos perivasculares friáveis, portanto mais susceptíveis a lesões.[4] [5] [7] [8]

Todos esses fatores de risco de lesão vascular maior acima mencionados estão presentes no caso descrito. Devemos ter em mente que a anca está próximo de artérias maiores, e que a migração de material metálico nos tecidos é imprevisível. Como tal, uma prótese descolada e migratória tem elevado risco de poder lesar tais artérias, tal como aconteceu neste raro caso.

A etiologia e a apresentação clínica de lesões vasculares agudas no contexto de uma artroplastia da anca são variáveis, podem ir desde compressão mecânica a lesão térmica por cimento, desde inserção a extração de afastadores e de componentes (sobretudo acetabulares), ou desde choque hipovolêmico por hemorragia pulsátil súbita de elevado débito a uma hipotensão progressiva, isquemia do membro, dor, ou pseudoaneurisma.[2] [4] [5] [7] [8] [9] Neste caso, a migração medial crônica progressiva da prótese da anca provocou uma laceração erosiva aguda por contato da artéria ilíaca externa e condicionou uma hemorragia arterial aguda, que terá sido tamponada e contida pela formação de um grande hematoma na fossa ilíaca que comprimia e desviava o eixo ilíaco esquerdo. Esse hematoma permitiu conter a hemorragia e manifestou-se por anemia aguda e por drenagem para o exterior através da fístula da infecção periprotésica. Trata-se, portanto, de uma complicação vascular maior aguda e tardia, uma forma rara de lesão arterial maior em contexto de próteses da anca, na qual uma migração protésica crônica provocou uma laceração erosiva aguda.

A extração e a revisão da prótese da anca em migração devem ser feitas o mais precocemente possível, de modo a evitar o risco da migração contra estruturas neurovasculares maiores, cuja lesão pode colocar em risco a vida do paciente. A própria extração do componente acetabular tem risco de provocar essas lesões intraoperatoriamente, pelo que a equipe cirúrgica deve ir preparada para lidar com essa complicação. O tratamento das lacerações de grandes vasos com stents cobertos é eficaz, no entanto deve ser evitado em contexto de infecção devido ao risco de esse material externo também infectar. No entanto, em face à dimensão do hematoma e à expectável friabilidade excessiva do vaso que provavelmente impediria a sua reparação direta, consideramos que se tratou da opção mais adequada para parar a hemorragia.[10] [11]

Em conclusão, a migração medial progressiva crônica da prótese pode provocar lesões arteriais agudas graves potencialmente letais, cujos diagnóstico precoce e tratamento emergente podem salvar a vida do paciente. Na presença de próteses da anca com elevado risco de lesão vascular maior, e em particular na presença de migração intrapélvica, essa deve ser removida o mais precocemente possível de modo a evitar lesões vasculares graves.[9]


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Conflitos de Interesses

Os autores declaram não haver conflitos de interesses.

* Trabalho desenvolvido no Serviço de Ortopedia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal. Publicado originalmente por Elsevier Ltda.


  • Referências

  • 1 Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res 1979; (141) 122-133
  • 2 Parvizi J, Pulido L, Slenker N, Macgibeny M, Purtill JJ, Rothman RH. Vascular injuries after total joint arthroplasty. J Arthroplasty 2008; 23 (08) 1115-1121
  • 3 Wasielewski RC, Cooperstein LA, Kruger MP, Rubash HE. Acetabular anatomy and the transacetabular fixation of screws in total hip arthroplasty. J Bone Joint Surg Am 1990; 72 (04) 501-508
  • 4 Ratliff AH. Arterial injuries after total hip replacement. J Bone Joint Surg Br 1985; 67 (04) 517-518
  • 5 Bergqvist D, Carlsson AS, Ericsson BF. Vascular complications after total hip arthroplasty. Acta Orthop Scand 1983; 54 (02) 157-163
  • 6 Shoenfeld NA, Stuchin SA, Pearl R, Haveson S. The management of vascular injuries associated with total hip arthroplasty. J Vasc Surg 1990; 11 (04) 549-555
  • 7 Barrack RL. Neurovascular injury: avoiding catastrophe. J Arthroplasty 2004; 19 (04) (Suppl. 01) 104-107
  • 8 Wera GD, Ting NT, Della Valle CJ, Sporer SM. External iliac artery injury complicating prosthetic hip resection for infection. J Arthroplasty 2010; 25 (04) 660 , e1–4
  • 9 Wasielewski RC, Crossett LS, Rubash HE. Neural and vascular injury in total hip arthroplasty. Orthop Clin North Am 1992; 23 (02) 219-235
  • 10 el-Massry S, Saad E, Sauvage LR. , et al. Femoropopliteal bypass with externally supported knitted Dacron grafts: a follow-up of 200 grafts for one to twelve years. J Vasc Surg 1994; 19 (03) 487-494
  • 11 Angle N, Freischlag JA. Prosthetic graft infections. In: Moore WS. , ed. Vascular surgery: a comprehensive review. 6th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2002: 741

Endereço para correspondência

Diogo Lino Moura
Serviço de Ortopedia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Praceta Prof. Mota Pinto
3000-075, Coimbra
Portugal   

  • Referências

  • 1 Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res 1979; (141) 122-133
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  • 11 Angle N, Freischlag JA. Prosthetic graft infections. In: Moore WS. , ed. Vascular surgery: a comprehensive review. 6th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2002: 741

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Fig. 1 Radiografias da anca esquerda que revelam prótese da anca esquerda migrada superomedialmente.
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Fig. 2 Tomografia computorizada. Hematoma que ocupa a maior parte da fossa ilíaca esquerda e região inguinal.
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Fig. 3 Angiografia A, extravasamento de contraste com origem na artéria ilíaca externa esquerda; Angiografia B, angiografia após colocação de stents cobertos, com paragem da hemorragia.
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Fig. 1 Radiographs of the left hip revealing superomedially migrated left hip prosthesis.
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Fig. 2 Computed tomography. Hematoma occupying most of the left iliac fossa and inguinal region.
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Fig. 3 Angiography A, extravasation of contrast with origin in the left external iliac artery; Angiography B, angiography after placement of covered stents, with hemorrhage stopped.