Subscribe to RSS

DOI: 10.1016/j.rbo.2017.06.029
Desartrodese de anca – relato de três casos[*]
Article in several languages: português | EnglishAddress for correspondence
Publication History
20 May 2017
06 June 2017
Publication Date:
01 March 2019 (online)
Resumo
A desartrodese de anca, isto é, a conversão da artrodese ou fusão óssea cirúrgica em uma artroplastia de substituição articular da anca, é uma intervenção difícil e desafiante, na medida em que é preciso reconstruir uma articulação perante uma consolidação óssea e uma imobilização muitas vezes de longa duração entre fêmur e acetábulo, já com importantes alterações anatômicas e retrações dos tecidos moles adjacentes, com encurtamento do membro associado. Visto que a artrodese de anca é uma cirurgia cada vez mais raramente aplicada, consequentemente a desartrodese é cada vez menos frequente. Nesse artigo, os autores apresentam três casos raros de pacientes com artrodeses da anca de longa duração submetidos a conversão para artroplastia total e descrevem a técnica de desartrodese usada e seus resultados clínico-funcionais.
#
Introdução
O aumento das exigências funcionais dos pacientes e do tempo de sobrevivência da artroplastia total da anca, bem como o desenvolvimento de cirurgias conservadoras da anca dolorosa, fez com que a artrodese da anca se tornasse uma intervenção de recurso e uma opção de revisão de última linha.[1] [2] [3] [4] Apesar de permitir alívio álgico, a perda da mobilidade articular tem como consequência biomecânica cargas compensatórias excessivas nas articulações adjacentes que provocam alterações degenerativas sintomáticas, em particular da coluna lombar, do joelho homolateral e da anca contralateral. Além disso, os pacientes ficam limitados na marcha e muitos são incapazes de se sentar. A cirurgia que pode resolver essas limitações é a desartrodese, isto é, a conversão da fusão óssea numa artroplastia.[2] [5] [6] Visto a artrodese da anca ser uma cirurgia cada vez menos indicada, a desartrodese é também por consequência cada vez menos frequente. Apresentamos três raros casos de desartrodeses da anca efetuadas pelo mesmo cirurgião.
#
Relato dos Casos
Técnica de Desartrodese
Inicialmente procede-se ao planejamento pré-operatório, em particular do grau de dismetria a corrigir e as características do material de artrodese a extrair. Através de via de abordagem posterior, procede-se à osteotomia do colo femoral in situ. A identificação da grande chanfradura ciática, U radiológico, colunas acetabular anterior e posterior e orifício obturador permite localizar a cavidade acetabular original. Para saber até onde avançar na fresagem acetabular, os autores perfuram o centro da cavidade acetabular progressivamente com uma brocafina até deixar de sentir consistência óssea. O comprimento da broca em posição intraóssea corresponderá à quantidade óssea remanescente no acetábulo até posição intrapélvica, deve a profundidade da fresagem ser inferior a esse comprimento. A fluoroscopia intraoperatória poderá também ser útil na identificação do nível de osteotomia do colo femoral e do verdadeiro fundo acetabular. Nessa fase procura-se corrigir o encurtamento do membro e garantir uma amplitude de movimentos aceitável à custa de libertação de tecidos moles retraídos (entre as quais tenotomia do psoasilíaco, retofemoral, ísquio-tibiais e adutor longo). Em seguida, faz-se a fresagem femoral e aplicação dos componentes protésicos após provas de estabilidade. Uma vez que a maioria das desartrodeses é efetuada em idades relativamente jovens, que estão associadas a bom capital ósseo, a fixação protésica preferida é a não cimentada, reforçada com parafusos no acetábulo. O par articular de escolha é o metal-polietileno. A duração da cirurgia está entre as duas e três horas e a perda sanguínea é aproximadamente de 1.000 mL. O pós-operatório consiste em marcha com canadianas com carga parcial durante dois meses, seguida de período prolongado de reabilitação com foco no aparelho abdutor.
#
Caso 1
Paciente, sexo masculino, aos 18 anos foi submetido a artrodese da anca direita com placa cobra devido a artrose dolorosa em contexto de espondilite anquilosante ([Fig. 1]). Passados 15 anos com artrodese, foi submetido a desartrodese por queixas de reduzida funcionalidade. Ao contrário dos outros casos, nesse paciente foi usado um par metal-metal. Após oito anos de seguimento, o Hip Harris Score é de 78,7, faz marcha com uma canadiana com Trendelenburg ligeiro e refere um índice de satisfação com a cirurgia de 4 em 5 (escala de 0 a 5). Esse paciente desenvolveu uma reação metal-metal, resolvida com substituição da interface por metal-polietileno.


#
Caso 2
Paciente, sexo masculino, aos 14 anos foi submetido a artrodese da anca esquerda com placa devido a fratura da anca ([Fig. 2]). Passados 59 anos com artrodese, foi submetido a desartrodese por queixas de dismetria, dor axial na coluna lombar e no joelho homolateral. Devido à pobre função da musculatura abdutora e à estabilidade da neoarticulação insuficiente verificadas intraoperatoriamente, aplicou-se uma prótese com dupla mobilidade. Após três anos de seguimento, refere melhoria das queixas álgicas ainda que de forma incompleta, o Hip Harris Score é de 89,3, faz marcha autônoma com Trendelenburg ligeiro e refere um índice de satisfação de 5 em 5.


#
Caso 3
Paciente, sexo feminino, aos 15 anos foi submetida a artrodese da anca esquerda com parafusos devido a fratura da anca ([Figs. 3] e [4]). Passados 31 anos com artrodese, foi submetida a desartrodese por queixas de reduzida funcionalidade. Por fissura femoral na aplicação da haste, reforçou-se o fêmur proximal com cerclage. Após dois anos de seguimento, o Hip Harris Score é de 94,6, faz marcha autônoma com Trendelenburg ligeiro e refere um índice de satisfação de 5 em 5.




Não se registaram mais complicações e em todos os casos conseguiram-se membros isométricos.
#
#
Discussão
A desartrodese da anca é uma intervenção desafiante, na medida em que se tem de reconstruir uma articulação perante uma fusão óssea e uma imobilização de longa duração entre fêmur e acetábulo, já com importantes alterações anatômicas e retrações dos tecidos moles, com encurtamento do membro associado.[1] [2] [5] [7] [8] [9] A alteração da biomecânica da anca, a existência de uma cirurgia prévia (a artrodese) e a complexidade da intervenção fazem com que esteja associada a taxas importantes de complicações, entre as quais insuficiência do aparelho abdutor, instabilidade, descolamento protésico e infecção.[1] [2] [3] [6] [8] [10] A única complicação verificada nos casos descritos foi uma reação metal-metal, algo não relacionado com a desartrodese, mas com o par articular usado e que atualmente está em desuso. O uso de uma cúpula de dupla mobilidade no caso 2 permitiu provavelmente evitar uma instabilidade por insuficiência dos abdutores e garantir bons resultados funcionais nesse paciente. O maior desafio cirúrgico da desartrodese é o reconhecimento e a criação da cavidade acetabular no centro de rotação da anca, enquanto o maior desafio no pós-operatório é a reabilitação da musculatura abdutora atrofiada, desvascularizada e sem função durante décadas com a anca artrodesada.[3] [4] [7] [9] [10] Ainda assim, consegue-se uma recuperação importante da função abdutora, o que confirma pelo sinal de Trendelenburg presente ser apenas ligeiro após período reabilitaçãoo progressiva. Apesar de a desartrodese ser uma intervenção exigente e com elevado índice de complicações relatado na literatura, esses casos mostram que através duma técnica cirúrgica e reabilitação adequadas essa pode ter resultados funcionais satisfatórios e reduzida taxa de complicações, permite melhorar substancialmente a qualidade de vida dos pacientes com artrodese da anca.
#
#
Conflitos de Interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
* Trabalho desenvolvido no Departamento de Ortopedia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal. Publicado originalmente por Elsevier Editora Ltda. © 2018 Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.
-
Referências
- 1 Stover MD, Beaulé PE, Matta JM, Mast JW. Hip arthrodesis: a procedure for the new millennium?. Clin Orthop Relat Res 2004; (418) 126-33
- 2 Jain S, Giannoudis PV. Arthrodesis of the hip and conversion to total hip arthroplasty: a systematic review. J Arthroplasty 2013; 28 (09) 1596-602
- 3 Joshi AB, Markovic L, Hardinge K, Murphy JC. Conversion of a fused hip to total hip arthroplasty. J Bone Joint Surg Am 2002; 84-A (08) 1335-41
- 4 Reikerås O, Bjerkreim I, Gundersson R. Total hip arthroplasty for arthrodesed hips. 5- to 13-year results. J Arthroplasty 1995; 10 (04) 529-31
- 5 Beaulé PE, Matta JM, Mast JW. Hip arthrodesis: current indications and techniques. J Am Acad Orthop Surg 2002; 10 (04) 249-58
- 6 Neumann D, Thaler C, Dorn U. Femoral shortening and cementless arthroplasty in Crowe type 4 congenital dislocation of the hip. Int Orthop 2012; 36 (03) 499-503
- 7 Swanson MA, Huo MH. Total hip arthroplasty in the ankylosed hip. J Am Acad Orthop Surg 2011; 19 (12) 737-45
- 8 Kilgus DJ, Amstutz HC, Wolgin MA, Dorey FJ. Joint replacement for ankylosed hips. J Bone Joint Surg Am 1990; 72 (01) 45-54
- 9 Amstutz HC, Sakai DN. Total joint replacement for ankylosed hips. Indications, technique, and preliminary results. J Bone Joint Surg Am 1975; 57 (05) 619-25
- 10 Harris WH, McCarthy Jr JC, O'Neill DA. Femoral component loosening using contemporary techniques of femoral cement fixation. J Bone Joint Surg Am 1982; 64 (07) 1063-7
Address for correspondence
-
Referências
- 1 Stover MD, Beaulé PE, Matta JM, Mast JW. Hip arthrodesis: a procedure for the new millennium?. Clin Orthop Relat Res 2004; (418) 126-33
- 2 Jain S, Giannoudis PV. Arthrodesis of the hip and conversion to total hip arthroplasty: a systematic review. J Arthroplasty 2013; 28 (09) 1596-602
- 3 Joshi AB, Markovic L, Hardinge K, Murphy JC. Conversion of a fused hip to total hip arthroplasty. J Bone Joint Surg Am 2002; 84-A (08) 1335-41
- 4 Reikerås O, Bjerkreim I, Gundersson R. Total hip arthroplasty for arthrodesed hips. 5- to 13-year results. J Arthroplasty 1995; 10 (04) 529-31
- 5 Beaulé PE, Matta JM, Mast JW. Hip arthrodesis: current indications and techniques. J Am Acad Orthop Surg 2002; 10 (04) 249-58
- 6 Neumann D, Thaler C, Dorn U. Femoral shortening and cementless arthroplasty in Crowe type 4 congenital dislocation of the hip. Int Orthop 2012; 36 (03) 499-503
- 7 Swanson MA, Huo MH. Total hip arthroplasty in the ankylosed hip. J Am Acad Orthop Surg 2011; 19 (12) 737-45
- 8 Kilgus DJ, Amstutz HC, Wolgin MA, Dorey FJ. Joint replacement for ankylosed hips. J Bone Joint Surg Am 1990; 72 (01) 45-54
- 9 Amstutz HC, Sakai DN. Total joint replacement for ankylosed hips. Indications, technique, and preliminary results. J Bone Joint Surg Am 1975; 57 (05) 619-25
- 10 Harris WH, McCarthy Jr JC, O'Neill DA. Femoral component loosening using contemporary techniques of femoral cement fixation. J Bone Joint Surg Am 1982; 64 (07) 1063-7















